Internet dos horrores
Por Orlando Senna
Uma revolução tecnológica como a que estamos
vivendo, com essa intensidade, revela os melhores e os piores sentimentos nas
pessoas, revela os anjos e os demônios mais íntimos, a beleza e o hediondo do
ser humano. Como todas as grandes revoluções. Podemos exemplificar o lado
sombrio do ciberespaço com a Internet Profunda, a Deep Web, onde se pode
aprender a fazer artefatos bélicos , comprar qualquer tipo de droga ou arma ou
trabalhadores escravos, contratar matadores de aluguel. Mas se trata de uma
zona difícil de ser acessada, não faz parte da internet navegável, da Surface
Web, são “domínios invisíveis” desconhecidos pelos usuários comuns, é o
território do crime, totalmente fora de qualquer lei ou possibilidade de punição.
Na internet de superfície, essa que todo mundo pode
acessar e usar, o lado sombrio revela-se principalmente no âmbito da ausência
da privacidade. Pontualmente, nos muitos suicídios de adolescentes vitimadas
pela postagem de fotos íntimas em redes de estudantes, de escolas, e daí
facilmente alastradas pela imensidão cibernética. São fotos ou vídeos feitos
apenas para duas pessoas, namorados transando, e um deles põe na rede por
qualquer motivo torpe. Ou um selfie que uma menina manda para outra. Ou uma
montagem de imagens reais de alguém com trechos de filmes pornôs. Ou o roubo de
um celular. Ou vingança de um familiar. Maiormente, o motivo dessas postagens é
vingança, tanto que também se chama “vingança pornô”.
É o cyberbullying. A consequência dessas vinganças
virtuais no lado de cá da realidade, fora das telinhas, pode ser devastadora.
As vítimas passam a ser réus, são acusadas de indecência, imoralidade. No
mínimo, são culpadas pela mania de exposição, pela necessidade dos adolescentes
atuais de se mostrarem, serem elogiados, ter um milhão de
“amigos”. Ficam sozinhas. O primeiro suicídio resultante disso que
repercutiu forte na mídia e na opinião pública foi o da canadense Amanda Todd,
15 anos, em 2012. Antes do ato extremo gravou um vídeo onde mostra várias
cartelas com palavras escritas à mão. Em uma das cartelas está escrito “I have
nobody, I need someone” (não tenho ninguém, preciso de alguém). Muitas seguiram
seu trágico exemplo.
No Brasil, final de 2013, após serem moralmente
linchadas por aparecerem despidas na internet, Giana Laura Fabi, 16 anos,
matou-se em Veranópolis, Rio Grande do Sul; Francielly Santos, 19 anos, deu fim
à vida em Goiânia; Júlia Rebeca, 17 anos, fez o mesmo no Piauí. Na
despedida de Júlia, no Twitter, está escrito: “é daqui a pouco que tudo acaba,
eu te amo, desculpe não ser a filha perfeita, mas eu tentei”. Os suicídios
chamaram a atenção do país, a importância do assunto foi evidenciada, as
pessoas se chocaram com os três enforcamentos quase ao mesmo tempo. Logo o assunto
foi esquecido pelos meios de comunicação, raramente vejo notícias sobre os
muitos suicídios que se seguiram a esses, inclusive porque não interessa à
maioria das famílias das vítimas divulgá-las.
Um atitude diferente dessa está acontecendo em
Encantado, Rio Grande do Sul, onde diversas mulheres tiveram fotos íntimas
expostas e, no mês passado, uma adolescente cortou os pulsos. Ela sobreviveu e
foi criado na comunidade um Coletivo Feminista para cobrar punição, dar apoio
às vítimas e parentes e manifestar-se contra o machismo. Sim, porque se trata
até agora de crime machista, as mulheres são a grande maioria das vítimas. Na
verdade, tenho conhecimento de apenas uma vítima fatal masculina em todo o
mundo e aconteceu no Brasil: o instrutor de fitness Leonardo Stronder, que se
matou com uma overdose de anabolizantes em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, em
março deste ano.
Ao contrário do que acontece com a Internet
Profunda, os crimes na internet comum são puníveis, ou seja, podem ter uma
legislação específica e serem detectados e julgados. Há projetos em tramitação
no Congresso Nacional brasileiro focando tipos de punição ao bullying no
ciberespaço. Um deles é do senador Romário, apresentado quando era deputado
(enquadrar esses atos como crime contra a dignidade sexual, passível de
detenção de um a três anos), outro do deputado João Arruda (enquadramento na
Lei Maria da Penha, que pune crimes domésticos). São projetos que, além de
estarem parados no Congresso há uns três anos, não refletem a gravidade de um crime
que leva à morte da vítima. Algo tem de ser feito.
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