PÉ DE PATO MANGALÔ TRÊS VEZES
Fábio Carvalho
Novamente na esquina das três
portas a personagem Deus outorga sua pregação para seus mais fiéis asseclas com
os seguintes dizeres: informo, para os devidos fins, que a erva processada,
após ser fumada, degustada e curtida, foi completamente absolvida e abençoada
com louvor! Na sequência, todos aplaudiram de pé. Na despedida do B.B.King,
passei a noite inteirinha com a Susan Tedesch sem mini saia, no andar mais alto
do edifício Astral, de frente para o mar. Derek Trucks, o sobrinho do Alman
Brothers, nunca desconfiou de nada. Era nossa atividade secreta, em que ela
nunca levava a guitarra como de outras vezes, ademais, ele também não tinha
nada a ver com isto, era uma questão só minha e dela. Isto posto, na noite
seguinte tive um sonho bastante estranho. Eu estava num apartamento térreo, de
onde via através de duas grandes janelas na altura do olho, bem de perto, a
Praça Da Liberdade, minhas filhas ainda pequenas faziam a maior algazarra pelos
cômodos vazios, vestidas apenas com fraldas descartáveis. Um computador no chão de uma das salas
me incomodava, pois tinha que ligá-lo e não sabia como. As paredes estavam
limpas como se tivessem sido pintadas naquele momento, e não ofereciam barreira
nenhuma para minhas caminhadas de um lado para o outro. Eu era um translúcido.
O grande mestre cineasta Alberto Cavalcante andava ao meu lado apoiado em uma
bengala, dizendo coisas agradáveis e interessantes, pensava em dar-lhe de
presente meu livro, mas não sabia onde estava. Sentia a presença de minha
mulher da vida inteira, só que não a via, nem sabia quem era. Num determinado
momento o Cavalcante estava sentado numa poltrona com uma senhorinha de cabelos
bem brancos vestida com vestido de lã colorida, no seu colo, abraçada ao seu
pescoço. Ela olhava para mim e sorria, balançando os pés descalços no ar como
se estivesse nadando. Virei-me na direção da área de fundos do apê, e vi a
motoqueira que trabalha na loteria ajudando sua namorada a subir no muro para
olhar o que estava acontecendo lá fora. Ouvi um som profundo e surdo vindo do
infinito das catástrofes. Vozes de desespero misturadas a um burburinho
estridente foram gradativamente aumentando de volume. Da janela maior pude ver
uma multidão de pessoas bonitas e bem vestidas, parecendo num desfile de modas,
correndo assustadas em direção ao nada, algumas eram chutadas e pisoteadas em
câmera lenta. Uma bola de fogo vinha se aproximando e tomando conta do céu e da
praça, como um efeito especial bastante tosco feito no tempo do chroma-key
analógico. Sentei-me em outra poltrona de frente para a janela sem nenhum medo,
ao contrário, com prazer, para esperar, quando percebi que chegaria o
fim. A bola de fogo vinha
feroz destruindo e engolindo tudo e a todos. Pensei nas pessoas que amo e fui
ficando emocionado com a idéia de que talvez não as visse mais. Ao mesmo tempo
estava muito curioso para saber como seria a passagem desta para a outra.
Prestes ao fogo entrar pela janela, sem me conter, falei para que meus amores
ouvissem: um beijo para todos! A imagem foi frisada, como se alguém tivesse
dado uma pausa num aparelho de DVD, o som também cessou por completo. Num breve
instante perguntei com eco: então é isto o nada? Assim acordei com o dia
clareando e fui ao banheiro olhar-me no espelho para ver se ainda era eu mesmo,
um Bem Te Vi cantava como sempre na árvore da frente. A lembrança deste sonho
vem me perseguindo há dias; talvez hoje, depois de escrever, me livre dela.
Tristezas não pagam dívidas, nem esperanças perdidas, para a vida continuar é
preciso que eu volte a cantar. A alma do violino é uma peça dentro desse
instrumento. A dádiva do
instrumentista é saber tocar com o coração, deixando suas mãos livres sob o
comando do além-cérebro, corpo em expansão a te desvirtuar em zonas
multi-sensuais, cantava Johnny Alf no filme do João Carlos Rodrigues que ainda
não vi. Jade a spalla. O maestro de brancos cabelos desgrenhados sinaliza aos
seus músicos para tocarem de forma mais arrastada, já que se trata de uma
marcha rancho. Assim eu e você, nós dois juntos, chegaremos ao fulgor das
estrelas. Um conceito tridimensional. No entanto não sou de reclamar e ainda
trafego num refúgio de luz. Claro está, lembrei-me do Lupicínio Rodrigues, por
conseguinte do Paulo Saraceni, meu carinhoso professor, sem contar que o
Fluminense tomou de quatro do Galo, merecidamente, podendo ter sido de mais.
Hosana nas alturas. Doralice eu bem que lhe disse, olha essa embrulhada que eu
vou me meter. Agora amor, Doralice meu bem, como é que nós vamos fazer? Amar é
tolice, é bobagem, ilusão. Um belo dia você me surgiu, eu quis fugir, mas você
insistiu. A árvore de Ráfia crescia vertiginosamente no meio da sala de jantar
da Rua do Ouro, ainda em um vaso pequeno para sua magnitude. O outro maestro de
cabelos mais curtos elucida seus músicos aplicadíssimos com os seguintes
dizeres: esta peça fala da tragédia humana, portanto ela deve ser tocada em
fortíssimo e em pianíssimo, de novo, por favor! Uirapuru do Villa Lobos
indelevelmente tomou conta do som interior do filme que estou a fazer.
Exatamente JK Nas Alturas, que me foi presenteado pelo grande pesquisador do
cinema brasileiro contemporâneo Antônio Leão. Le lion cest le roi des animaux.
Logo em seguida, fui ao edifício da Providência na Rua da Salvação número 333 buscar
uma encomenda para a época da quaresma. Desta vez saí de lá com a nítida
impressão que era outro, embora continuasse eu mesmo em novo patamar. A
transferência do próprio mundo é uma questão de volatilidade, para não dizer de
voluptuosidade, palavra que gosto muito. Palavras são palavras, sons são sons e
homens são homens. Vocação é uma palavra religiosa. O escritor do Ricardo
Miranda, Gustav Flaubert, disse que para tornar qualquer coisa interessante
basta olhar para ela durante algum tempo. Os jovens não deveriam ser
pragmáticos como hoje em dia, deveriam se sonhadores. Tonho, o bombeiro, me
contou hoje pela manhã que na noite de ontem tomou duas doses cavalares da
marrom, cachaça do Grotão, apelidada de Alcione, e quando estava indo para casa
sentiu suas orelhas crescendo. Tenho impressão que certamente foram mais de
duas. O céu azul e o friozinho de Abril só chegou ao fim de Maio, bom também.
Escrevo para não conseguir descobrir nada, fico tentando. Paradise Now.
Recordei-me de vestígios de harmonia na mesma praça que mamãe me levava para
tomar banho de sol no carrinho de bebê. Estou no terceiro ciclo de experiências
nessa mesma localidade e no mesmo jardim, que ficam no coração da cidade
província que nasci, agora vistos de cima, também por vezes em linha reta nas
caminhadas das idas e das vindas. O ciclo atual, desconfio com quase certeza,
não é o último. Quando adolescente fiz várias investidas no hoje extinto Cine
Candelária, que no início de sua decadência, foi o primeiro a exibir comédias
italianas com mulheres em nu frontal. Uma beleza para olhos ávidos por ver
imagens proibidas. Depois já adulto filmei por duas ou três vezes,
utilizando-me desta praça como locação e cenário. Agora quase todos os dias ela
me revela alguma coisa curiosa. Ontem, ao voltar do botequim da Loura, onde
comi uma Merluza com legumes, me deparei com a porta entreaberta de uma casa
toda pintada de preto, que sempre estava completamente fechada. Sem placas que
indicassem o que funcionava ali, eu já tinha imaginado várias possibilidades,
todas no território do submundo. Não resisti e entrei. Surpreendentemente lá
dentro era tudo muito amplo e claro, atravessei uma espécie de recepção onde
não havia ninguém, e cheguei a um salão com o piso todo coberto por tatame,
cercado por espelhos, no canto uma mulher morena muito bonita, vestida com um
quimono preto e vermelho, ensaiava uma dança com leques sem música alguma.
Fiquei observando extasiado por alguns minutos seus movimentos leves e rápidos,
sem nenhum outro som a não ser o do abrir e fechar dos leques, e o de sua
respiração. Saído de uma
porta do outro lado, veio em minha direção um chinês magrinho, também de
quimono, rindo para mim. Com muito sotaque, ele me explicou que ali é uma
academia de Tai Chi Chuan e Kung Fu e deu as coordenadas para me inscrever.
Pedi licença para assistir durante mais um tempo o ensaio da mulher, ele
prontamente me ofereceu uma cadeira de rodinhas para ficar mais bem acomodado,
delicadamente recusei preferindo ver de pé. Não tive tempo até hoje de assistir
Virgens Suicidas, filme da Sophia Copolla, embora o nome me atraia muito,
tentarei conseguir qualquer dia destes, pirateei junto com o F For Fake do
Orson Welles e o coloquei na estante. Nem sei se é mentira ou verdade o que
digo aqui, sei que a vida não é fácil, só sabemos dessa que temos, então vamos
lá. Essa vivência é a minha, portanto não posso falar o que farei amanhã, já
que ainda não sei.
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