Violência budista
Por Orlando Senna
A migração de refugiados no Mediterrâneo é um acontecimento angustiante e marcante da atualidade. Milhares de pessoas fugindo de seus países em barcos precários, tentando escapar de conflitos bélicos, perseguições étnicas e religiosas e da fome. O destino sonhado é a Europa e estão à mercê de organizações de traficantes de gente, que lucram milhões de dólares com o negócio e tratam os migrantes como gado descartável. Como mercadoria que, já tendo sido paga e sem credor para recebê-la, pode ser jogada fora, afogada. O número de mortos é impressionante e não para de crescer no que está sendo classificada como a “rota migratória mais letal” que se tem notícia.
O trânsito criminoso também acontece no Oceano Índico, mas fiquemos com o Mediterrâneo, um mar interior com uma estreita saída para o Atlântico, entre a Europa, a África e a Ásia. Os refugiados são majoritariamente provenientes da Líbia, Síria, Iraque, Sudão, Eritreia e Bangladesh, países islâmicos, e Mianmar, controlado pelo budismo. A União Europeia, assustada, está realizando operações de resgate de barcos à deriva e de combate aos traficantes e apresentou uma nova agenda sobre migração, com programas de asilo em todos os países do bloco e rapidez na legalização dos asilados. Espero que os programas sejam implementados imediatamente, pois a cada meia hora alguém morre afogado ou assassinado nas águas mediterrâneas.
A partir desse cenário horripilante uma informação antiga e meio escondida ganhou destaque, as mídias manchetaram e discutiram o assunto, milhões de pessoas ficaram sabendo e, em consequência, milhões de surpresas foram vividas. Refiro-me a Mianmar, ex-Birmânia, um país com maioria budista, governo budista e extrema intolerância religiosa. Os 500 mil monges budistas de Mianmar se dedicam a expulsar do país o grupo étnico Rohingya, praticante do islamismo, “devolvendo-os” a Bangladesh, que seria seu lugar de origem. A campanha de expulsão, que está dando resultados, é lastreada por uma gama de desumanidades que vai dos castigos físicos a leis que controlam a natalidade dos muçulmanos e lhes vetam os serviços públicos.
Refiro-me, pois, à violência budista, algo impensável para a maioria dos budistas espalhados pelo mundo e para milhões de não budistas que têm uma noção de tranquilidade e elevação espiritual quando pensam nessa religião, a quinta maior da humanidade, 380 milhões de adeptos. Surgiu meio milênio antes de Cristo, com as reflexões de um nepalês chamado Sidarta Gautama, um avatar, um homem transcendente. Seus ensinamentos essenciais são focados nos caminhos para a plena realização da natureza humana, para a eliminação do sofrimento, que é causado pelo desejo. Os caminhos da paz interior, da não violência, de uma relação sacralizada com o próximo e com o mundo.
Sidarta, também chamado Buda (Iluminado em sânscrito), fundou uma religião sem Deus, sem Deuses. A divindade está na relação do humano com a natureza material e imaterial. É a única grande religião sem Deus, não-teísta. A esse diferencial, soma-se outro: o nome Buda não se refere apenas a Sidarta, mas sim ao conjunto de todos os iluminados, dos seres com inteligência e sensibilidade superiores à normalidade humana que ajudam seus semelhantes a dialogar com os grandes mistérios da existência.
Sabemos que todas as grandes religiões protagonizaram guerras e matanças ao longo da História, inclusive o budismo em antigos conflitos no Japão. Mas na Idade Moderna do Ocidente (ou seja, a partir de 1500) sua imagem para a humanidade é a da busca da paz, um entendimento respaldado pela aproximação das percepções de Sidarta às tradições filosóficas chineses da meditação zen e do pacifismo tao. Os monges de Mianmar desmentem isso e, chafurdando na intolerância e na brutalidade, nos chocam e entristecem.
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