VOU BEIJAR-TE AGORA
Fabio Carvalho
Partiu cinema a chave perdida. Senti-me atravessando
uma espécie de júbilo, no centro desse organismo ultra–sensorial com apenas
cento e poucos anos, enquanto os imemoriais fundamentalistas explodiam
catedrais na cidade luz. O cinema é jovem. Este é meu presente com um pouquinho
de antecipação. Maracas tonificadoras para você entrar no ritmo.
Quando Olofim criou a luz inicial, veio Eleguá
vibrar toda tensão vital. Diz Oduduá, sou de quem? Sou do mar? Sou do chão? Diz
se é um mal ou um bem? Diz Oduduá, quem me deu este ar tão leve assim? (Solo).
Segundo o nosso diplomata Arnaldo Carrilho, Pier
Paolo Pasolini ainda nos anos 70, sentenciou o seguinte: “vivemos o que chamo
de mutação antropológica homologada, que é o poder do neo capitalismo
consumista, matando as raízes críticas do pensamento, a fim de não provocar
opções não consumísticas em você. Porque você tem como ser humano civilizado
que consumir aquilo que se fabrica e que se faz. Você tem que consumir aquilo
que eles querem.” É o sistema avassalador. Minha ambição continua sendo
prejudicada pela preguiça e também pela madorna nas tardes ao forno desse verão
inóspito que está apenas começando. Na mesma noite que ela sonhou comigo, de
sexta para sábado, sonhei um sonho em longa metragem narrativo, então senta que
lá vem estória. Pois bem, desembarquei em uma cidade histórica que era uma
mistura de Tiradentes, Diamantina, Ouro Preto e Baependi. Tinha sido contratado
a peso de ouro por jovens alunos que moravam na república Necrotério para dar
um show na festa da música que estava acontecendo por lá. Eu deveria cantar e
tocar acompanhado por dois amigos que não vejo há anos, Bigú e Magoo. Depois
que me instalaram numa pensão com um colchão no chão, fomos comer caranguejo na
carroceria de um caminhão. Amarrei minha câmera fotográfica Nikon no encosto da
cadeira e fiquei tentando beber algo. Para minha tristeza não consegui nem uma
aguinha. Voltei para pensão para tomar um banho e trocar de roupa, quando
percebi que esquecera a câmera. Desci a ladeira e ela ainda estava lá junto da
florista lourinha e sorridente que tinha ficado vigiando. Retornei para a
pensão, assim que me despi para entrar embaixo do chuveiro, meus alunos
chegaram para me buscar, já estava na hora do show. Fomos descendo a escadaria
de madeira, quando comecei a me inquietar com a aproximação do momento da
subida ao palco. Como vou tocar e cantar para uma platéia se eu nunca
tinha tocado nenhum instrumento muito menos cantado na vida? Pensei que única
solução seria a seguinte: eu falaria com o Bigú e o Magoo para fazermos muito
barulho, já que nenhum de nós era músico, faríamos tipo o Sex Pistols, no meio
da quebradeira eu inventaria uma letra e a gritaria, ou seja, uma tremenda
picaretagem. Fiquei grilado pela possibilidade contumaz do Bigú com suas
teorias subterrâneas, inverter minha estratégia de dirigir aquele engodo
canastrão em que nos metemos. Segundo Jaques Lacan, “o momento em que o desejo
se humaniza é também aquele em que a criança nasce para a linguagem”. Eu aqui
agora me lembrando do Ricardo Miranda. Enquanto ia caminhando pelas ruas de
pedra pensando como seria a não decantada magnificência, avistei logo ali em
frente, várias vans com grande parte da minha família, vivos e mortos, me
olhando através do vidro fumê, muitos conhecidos e desconhecidos ao redor.
Todos vieram para meu espetáculo. Aproveitei que alguns seguiriam a pé para o
local que eu não sabia onde era, fui junto com esses me concentrando no meu
“repertório”. Profunda foi minha penetração em adágio longe que se ouve daqui.
Perdi meus acompanhantes e descobri que também estava perdido na cidade, não
sabia mais onde seria meu show. Passei por um grande bar cercado por uma
arquibancada, lá uma dupla bastante conhecida já se apresentava. Pior do que
não saber tocar é não comparecer ao local contratado. A debacle se abateu sobre
mim. Esse momento foi muito aflitivo. Não sabia para onde ir, procurava alguma
referência e não encontrava. Por fim era apenas um sonho, minha vitória foi
conseguir acordar. Eram exatamente seis horas da manhã, a hora em que nasci
mais uma vez. Desde meu nascimento sempre acordo às seis da manhã, sei que
nunca saberei por quê. Em cada dia tenho a natureza me esperando, nova luz em
meu caminho e toda noite pra ficar sozinho. Funk até o caroço. Na cultura
cigana roubar pérolas é proibido, ouro, dinheiro ou outras jóias não. Em nenhum
lugar existe tempo algum, disse o velho cineasta de um filme só. Marinas
Ilhoas. No obelisco da memória como células dormentes, muitas palavras são
jogadas fora diuturnamente, uma hora ou outra serão descobertas novamente.
Tinha uma coisa para te contar, mas prefiro deixar para outra ocasião.
Vagueando lépido feito um gato malhado vira lata na noite do centro da cidade
descobri o dom da invisibilidade. Nem bons nem maus olhos conseguiram me ver.
Escapei, invés de triste fosse alegre de partir, se invés de ver só minha
sombra nessa estrada eu visse ao longo dessa estrada outra sombra a me seguir.
É preciso que eu volte a cantar. Meu samba espera nova chance pra sorrir.
Este ano em que estamos em andamento sem clareza desnecessária, com
avassaladora pujança, ainda depois de um dia com o diplomata, o filme, me
recolhi ao meu esconderijo. Ouvi tudo que já sabia sem saber e sem poder
esquecer, encontrei-me com aqueles necessários durante toda noite alta no Natal
das meditações sob a luz de velas em volta do caldeirão das mulheres adoradoras
de Jesus Cristo. Voltando para as artes plásticas, nu descendo a escada. E Deus
criou a mulher a abordagem em profundidade, uma análise de Insanos Dezembros me
veio da letra de uma música. Aninho que foi ao mesmo tempo esquisitinho e
bastante interessante, bom também passou demorando rapidamente. Dizem que o
fato causador do tremendo tersol que apareceu no meu olho direito, foi o desejo
de uma mulher grávida de comer o que ela viu que eu estava comendo, e sem me
pedir ou sem poder comer aquilo também, ficou aguada e desejosa. Assim
desabrochou o meu tersol, a vontade insatisfeita do olho da grávida. Sabedoria
popular e lei da natureza: o olho grande atinge o outro olho. Na manhã daquele
dia fui mais cedo do que de costume, enquanto esperava o elevador, fotografei o
fotógrafo despistando não sei o quê no balcão da portaria. Do outro lado do
salão vi uma mulher baixinha de turbante branco e túnica marrom fazendo sinais
para mim. Logo entendi que ela estava me chamando para pegar o elevador de
serviço que estava parado ali no térreo. Subimos juntos, ela se
posicionou à minha frente, assim observando-a detalhadamente percebi que era
islâmica. Um sorridente e baixinho bom dia nos separou, quando ela saltou antes
de mim, para meu alívio não sei também de quê. Aparentemente ela era menos
violenta do que muitos franceses que conheci. Eu estava embriagado pela falta
de mar, não havia nenhum bar aberto no dia 25 e já cansado do teclado
desobediente, depois de ter perdido todas as esperanças, Murilo Mendes veio me
salvar. Por isto repito: quando o vazio do nada se aproximar chame o Murilo
Mendes. Novamente Murilo Mendes. O fecho-eclair estava encrencado. A
sensualidade do cinema sempre presente, mesmo que o assunto seja a morte porque
ainda assim tratamos da vida. Sou um homem sem aplicativos, por isto quase me perco
na recepção do Museu Cassino da Pampulha, só em plano sequência encontrei o
inflamável branquinho no degrau da vitrine da loja A Serenata. Atravessei a rua
e continuei andando em outros batimentos coronários. Vendo outras coisas das
mesmas que já vi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário