Tolstói: a literatura que não é literatura
Em conflito permanente com a sua arte, Tolstói nos mostra como o nexo
inevitável entre literatura e vida social pode se transformar numa vantagem
artística Rubens Figueiredo Nos 60 anos que vão do início da década de 1850 até
1910, data de sua morte, Liev Tolstói sempre escreveu contos e romances. Ao
contrário do que se repete tantas vezes, Tolstói jamais parou de escrever
ficção e, ao morrer, deixou inéditas ou em andamento obras-primas como
Hadji-Murat ou Padre Sérgio. O mal-entendido resulta, em grande parte, das
objeções que o próprio Tolstói, desde jovem, levantou contra a atividade e
contra o papel de um escritor no quadro da sociedade russa e do mundo moderno
em geral. Se Tolstói nunca fez segredo do seu desconforto no convívio com
escritores nem do seu mal-estar por ser autor de romances e contos, suas
críticas só se tornaram mais veementes e mais elaboradas a partir do romance
Anna Kariênina. Ao redigí-lo (na década de 1870), Tolstói chegou a declarar
numa carta: “Nosso ofício é horrível. Escrever corrompe a alma”. E daí para
frente, construiu uma verdadeira rede de questionamentos dirigidos não só
contra a literatura, mas contra a arte ocidental, em particular, mais tarde
reunidos no livro O que é arte? Drasticamente censurado pelo governo czarista e
tratado, ainda hoje, com desdém ou perplexidade, esse livro, no entanto, contém
hipóteses que merecem mais atenção. Sobretudo quando Tolstói põe em dúvida a
reivindicação, tão cara ao século 20, de uma autonomia para a arte e quando
expõe suas desconfianças sobre o significado de tal pretensão. E também quando
mostra, como que pelos bastidores das obras, que ao tentar se esquivar de seus efeitos
formadores e em última instância educadores, a arte abre espaço para a
manipulação e o autoritarismo, com um caráter de classe. A rigor, Tolstói acusa
a arte de servir como legitimadora das desigualdades sociais, reforçar as
distinções de classe e realimentar o mecanismo que reproduz as estruturas da
sociedade. Com isso em mente, podemos entender melhor, por exemplo, a marcante
tendência antiartística presente na prosa de Tolstói desde os seus primeiros
textos. Os Contos de Sebastópol, por exemplo, escritos na década de 1850,
recapitulam episódios da árdua campanha militar russa na Criméia e no Cáucaso,
da qual Tolstói participou como oficial. Sem respeitar fronteiras ou
hierarquias, esses três contos já misturam ficção, memória, reportagem,
etnografia, polêmica e relato de viagem, numa prosa que tende a ser despojada
de requintes poéticos e até bruta, na sua objetividade. “Nunca vi lábios cor de
coral, mas vejo lábios da cor de tijolo”, diz numa anotação, feita à margem de
seus rascunhos de Infância, livro de memórias escrito pouco antes. Em Contos de
Sebastópol, a exemplo de obras posteriores, Tolstói mergulha o leitor num
ambiente onde estão concentradas e em conflito convenções retóricas diversas.
Pois os contos querem ser lidos ora como ficção, ora como etnografia, ora como
narrativa de viagem, ora como polêmica política. Em suma, desde o início de sua
carreira, Tolstói recusa, tanto para o autor como para o leitor, o privilégio e
os prazeres da posição de um observador desinteressado, prazeres supostamente
reservados à arte. Em troca, lança sobre o autor e o leitor todo o peso da
responsabilidade daquilo que está sendo representado. A fim de minar a
autonomia e o distanciamento artístico, sua tática é a de uma arte que é e não
é arte, uma literatura que é e não é literatura. Portanto, dizer que Tolstói
abandonou a literatura parece uma forma de esquivar-se da consistente crítica
que ele formulou ao papel histórico da arte, em geral. Da mesma forma, à luz
das circunstâncias históricas, retratá-lo como um doutrinador religioso parece
um expediente destinado a neutralizar a potência da sua crítica ao mundo
moderno. Na verdade, não se pode fazer justiça a Tolstói, nem aos escritores
russos em geral, sem uma ideia da posição da Rússia no mundo, naquela época. O
trauma da modernização A introdução de modos de vida capitalistas e europeus na
Rússia foi especialmente traumática. Trata-se de uma sociedade que tinha
presentes formas de vida próprias, de feição e conteúdo orientais e medievais,
e que precisava modernizar-se aos saltos, e não gradualmente, como haviam feito
os países ocidentais dominantes, seus modelos. O choque foi ainda maior porque
a Rússia era um país orgulhoso de suas tradições, provido de uma religião
própria e de formas muito peculiares de organização social. Se a isso
acrescentarmos as ambições imperiais dos czares que, a partir do século 17,
levaram a Rússia a expandir as fronteiras e russificar populações vizinhas,
podemos ter uma ideia da intensidade do conflito vivido por aquela sociedade,
ao sentir-se em posição de inferioridade em face dos países ocidentais
dominantes. Em contrapartida, a consciência de que era preciso transformar a
fundo a sociedade russa gerou um debate intelectual de uma riqueza e de um
vigor talvez sem paralelo. Trata-se do confronto entre os projetos da
modernidade liberal e de modernidades alternativas (como o historiador Daniel
Aarão Reis bem definiu a situação). Em virtude da censura, mas também de
fatores culturais mais profundos, os canais de expressão desse debate não eram
os mesmos dos países ocidentais e incluíam, com grande peso, a literatura e a
teologia. Longe de se limitar às palavras, tal debate, em regra, desaguava numa
militância ferrenha, da qual os escritores participavam, sem dissociá-la de
cada uma de suas escolhas estéticas. Por outro lado, nesse debate, as
linguagens artística e a religiosa contêm muito mais do que aquilo que as
sociedades ocidentais estavam habituadas a atribuir a elas. Tais linguagens, na
Rússia, não eram um mero disfarce, tampouco uma metáfora, mas sim um veículo
poderoso em si mesmo. Pois permitiam pôr em questão os pressupostos não só do
discurso da ciência dos países dominantes – sentida como ponta de lança da sua
dominação -, como também dessas mesmas linguagens, em seu modelo ocidental.
Tolstói, portanto, foi um dos expoentes desse debate nacional e sua literatura,
assim como suas polêmicas, não podem ser bem entendidas na ausência desse
componente. Da mesma forma que pôs em questão a arte estabelecida, Tolstói foi
um crítico ferino da religião institucional. O rito ortodoxo é duramente
desmistificado no romance Ressurreição (de 1899), por via da técnica do
estranhamento (da qual Tolstói foi o mestre, segundo o teórico russo
Chklóvski). Mas já em Guerra e paz e Anna Kariênina, romances anteriores,
Tolstói se mostrou implacável com a piedade e a caridade religiosas das classes
privilegiadas e com seus modismos religiosos. Por outro lado, as últimas
páginas de Ressurreição dão prova de uma desenvoltura nada cerimoniosa com os dogmas,
ao emendar livremente as palavras de Cristo, no Evangelho. De resto, será muito
difícil encontrar algum teor sobrenatural, milagroso ou criador na forma como
Tolstói emprega a palavra “Deus” (a qual, aliás, está longe de ser frequente).
Por último, vale a pena sublinhar que Górki, em geral um observador muito
agudo, deixou registrada, em suas lúcidas memórias sobre Tolstói, a impressão
de que estava diante de um ateu. A ficção como experiência de pensamento De
todo modo, o que importa é que literatura e religião, no caso de Tolstói – como
em muitos escritores russos -, são linguagens apontadas para uma intervenção
concreta nas formas de vida presentes. E os três grandes romances de Tolstói
denotam a agudeza crescente da sua visão crítica. Guerra e paz tende a mostrar
uma imagem menos questionadora da nobreza russa: em face do inimigo externo –
as tropas de Napoleão -, as diferenças internas ficam um pouco na sombra. Por
outro lado, os expedientes mentais usados pelos países dominantes para
justificar sua agressão e sua superioridade, em relação aos russos, são postos
em relevo. Anna Kariênina já examina uma sociedade em crise – conjugal,
familiar, cultural e social. As classes populares aparecem como uma brecha, uma
janela: ou uma fonte de ar puro e renovador para o herói nobre, ou um índice do
conflito social subjacente. Já em Ressurreição, o conflito é aberto, declarado
e frontal. O romance trata do mundo prisional e judiciário, no qual as classes
populares são segregadas e eliminadas, sob a bênção do discurso racional e
humanista da justiça, da lei e do progresso. Todavia, seria enganoso supor um
fio de progressão contínua que uniria os três grandes romances. Em Guerra e
paz, há mais do que simples prenúncios de tudo aquilo que virá em Ressurreição.
Observando em retrospecto, percebe-se que as mesmas questões se apresentavam a
Tolstói desde o início e, no máximo, pode-se dizer que as suas hesitações
diminuíram com o correr dos anos. Mesmo no aspecto da linguagem, as
inquietações do escritor levaram-no, por exemplo, a escrever, quase ao mesmo
tempo, obras tão díspares como o conto O prisioneiro do Cáucaso e o romance
Anna Kariênina. No conto, Tolstói experimenta uma prosa de fortíssima concisão
e simplicidade, com marcante predominância do período simples e sem nenhuma
digressão. Um estilo elaborado a custo e com rigor, à luz das narrativas orais
populares e dos textos destinados à alfabetização de crianças camponesas –
textos que o próprio Tolstói criava, junto com seus pequenos alunos. Em
contraste, no romance Anna Kariênina, o autor lança mão de uma frase de
arquitetura complexa, longa, desdobrada em ramificações sintáticas de grande
fôlego. Qual dos dois escritores é Tolstói? Tudo indica que Tolstói – a quem
tantos acusam de doutrinário – não tinha resposta pronta e fixa para as
questões que ele mesmo formulava. Em troca, não se cansava de se impor
problemas, nem de arriscar respostas fortes. Em boa parte, seus romances e
contos constituem experiências de pensamento, testes e hipóteses, experimentos
para os quais convoca os seus leitores. As constantes hesitações e dúvidas de
seus personagens dão um bom testemunho desse processo. Isso faz mais sentido
ainda se pensarmos que, num célebre comentário a Guerra e paz, Tolstói afirmou
que todos os livros russos relevantes se desviavam dos modelos literários
europeus. Ou seja, os problemas estavam postos, à frente de todos, mas a forma
de pensar sobre eles tendia a vir pronta dos países dominantes, não só nos
modelos da arte, mas também nos modelos do próprio pensamento social. A
resistência de Tolstói à arte literária caminha em paralelo à hipótese de que
narrar compreende a possibilidade de criar formas específicas de pensar e de
conhecer. É bem possível que por isso ele nunca tenha sido capaz de abandonar a
literatura, a despeito das suas repetidas e sinceras objeções e queixas contra
a arte. Hoje, quando a literatura carece tanto de encontrar o seu caminho e de
renovar o seu papel crítico no mundo contemporâneo, pode ser de grande ajuda
reexaminar com olhos menos arrogantes todo o pensamento e o rico percurso de
Tolstói.
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