Outro dia um amigo meu, em tom de
acusação, bradou nas minhas ventas: “-Você não aparece na sua obra! Não
reconheço nos seus livros a pessoa com quem eu converso há anos! Quando
acharemos João Carlos Rodrigues na obra de João Carlos Rodrigues?!”
Fiquei uma arara. Mas, depois, pensando
bem, vi que tinha uma parte de razão. Uma parte apenas, mas uma parte
essencial. Não estou falando de estilo, fluência ou ponto de vista, mas algo
maior, indefinível. A minha alma, a minha persona. Aquele texto onde mesmo quem
nunca me viu possa me (re)conhecer até quase a intimidade total. Evidentemente
há limites muito claros para o autor de uma biografia, um ensaio ou uma crítica
de cinema, pois falam de temas que não foram criados por ele. Mesmo assim há
momentos na biografia que escrevi do João do Rio, onde estou lá, é só procurar.
Mas um autor só se revela mesmo na
ficção, quando sua técnica fica a serviço da imaginação, sem passar necessariamente
pela racionalidade. Escrevi um pouco, e gostaria de fazer mais, ficção.
Roteiros de cinema, roteiros para televisão, contos. Quem me conhece bem pode
me achar em certos diálogos do filme “Rio Babilônia” e, principalmente, num
programa Você Decide intitulado “Molambo de gente”, de 1996, dirigido pelo Ari
Coslov.
E nos contos, alguns publicados on line
sob o pseudônimo Jango Rodrigues, inventado pelo Glauber Rocha. Foi neles que
cheguei a uma forma própria, interessante e muito irônica, não muito comum na
literatura brasileira atual. Quase todos são contos homoeróticos (não confundir
com auto ajuda gay), ambientados no baixo mundo carioca nos anos 1970/80. Estão
reunidos no livro “Criaturas que o mundo esqueceu”, que desejo publicar. Todos
os pareceres das editoras são favoráveis, mas todas as portas se fecham, como
se eu fosse um iniciante. Botei até agente. Não tenho padrinho. E agora?
Estarei com a síndrome do autor maldito? Ui! Sai pra lá, carcará! Pé de pato
mangalô!
Por questão de princípio, não vou bancar
a edição do meu próprio bolso. No momento esta é minha maior preocupação, e
também o meu objetivo principal: publicar o “Criaturas”, obra da qual gosto
muito, e a que mais me revela, numa editora “normal”. Será que vou conseguir?
(*) Nunca editei ficção. O romance
“Memorial do inferno” (belo título), editado na década de 1990 pela Escritura
Editoras, não é meu. É de um homônimo. Ignoro se é bom ou não.
Abaixo três mini narrativas de ficção,
que não fazem parte do livro, cujos contos são bem mais longos e burilados, mas
tem temática e estilo afins. Divirtam-se (ou não).
DOIS HOMENS QUE CHORAM
para Dalva de
Oliveira e Herivelto Martins
Eu vi um homem chorar.
Foi há muito tempo, num botequim da
Praça Tiradentes. Disse que se chamava Douglas. Era bem jovem, muito moreno,
como o jogador Romário. Parecia marroquino. Morava lá pras bandas de Alcântara,
além Niterói. Um amigo me cochichou: “Herivelto tem profissão, é metalúrgico do
estaleiro Iskawajima”. Assim descobri seu nome verdadeiro.
Era um homem com H.
Mas na algaravia do boteco, entre
gargalhadas e trincar de copos e garrafas, ele confessou que tinha sido vetado
na seleção de aspirantes do Botafogo, por causa de um defeito imperceptível em
uma das pernas. “Mas no tempo do Garrincha isso podia”, reclamou, lágrimas nos
olhos.
Era uma pessoa maravilhosa. Sumia por
uns tempos, depois voltava. Numa dessas desaparecidas, tive de me mudar de
apartamento e o número do telefone foi trocado. Percorri os bares e as
esquinas, inutilmente. Herivelto, nunca mais.
Hoje quem chora sou eu.
ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA
Numa quarta-feira, cinco da matina, mal
raiava o dia, X fechou com cuidado a porta do quarto depois de deixar o bilhete
de despedida (onde não disse nem a metade do que pretendia desabafar) em cima
da cômoda, esgueirou-se pela porta da cozinha, trancou com cuidado a porta dos
fundos, jogou a chave por debaixo da porta, pegou o elevador e ganhou a
liberdade da rua. Levava a carteira de identidade e uma leve impressão que já
ia tarde.
Quando Y acordou, por volta das onze, já
abriu o olho gritando impropérios com sua voz de maritaca, rogando pragas e
amaldiçoando o companheiro de tantos anos. Frustrado por não avistar seu saco
de pancadas, percorreu todo o apartamento enrolado num lençol, espumando de
raiva. Só depois de meia hora encontrou o bilhete, que leu, lívido de decepção.
Então “ele” escapara na calada da noite, abandonando mesmo as roupas caras que
lhe dera, e que eram cobradas com ironias ferinas, dia sim, outro também. “ –
Covarde!” esbravejou diante do espelho oval do banheiro, enquanto escovava os
dentes. “Que não se atreva a querer voltar!”
Quando, no correr dos próximos dias, viu
que X não ia mesmo retornar, nem telefonar, nem ao menos dar notícias, sentiu o
vazio monstruoso dos desertos gelados. Um fofoqueiro telefonou dizendo que o
tinha visto numa praia do Ceará, em ótima companhia, numa boa. Dilacerou o
rosto com as próprias unhas. Com quem iria agora contracenar o psicodrama que
interpretava no inferno cotidiano?
Para relaxar, seu único divertimento
virou alimentar as rolinhas que brincavam na varanda. Mas até essas, impacientes
e impiedosas, em pouco tempo preferiram a janela da vizinha.
BRIGAS NUNCA MAIS
De repente, o encontro semanal entre os
dois virou um inferno.
Chicão estava com a macaca. Reclamava da
vida, como sempre, mas dessa vez em voz alta, agitado. Armou o maior piti,
exigiu dinheiro na frente dos fregueses e garçons do bar favorito que
frequentavam há mais de dez anos. Entrou em detalhes da vida sexual a dois,
xingou o outro de viado velho, de filho da puta, coisas ainda piores. Terminou
saindo aos gritos de “tudo acabado entre nós” e quebrando no chão o prato de
lasanha.
Houve um silêncio constrangedor.
Ronaldo
a princípio não entendeu, fragilizado. Ouviu tudo calado, pedindo que o chão
abrisse e o engolisse, livrando de tanta vergonha. Não chorou, nem levantou a
voz. Pagou a conta. Depois, já no metrô de volta pra casa, filosofou sobre a
luta de classes, usufruindo os primeiros minutos de sua nova liberdade.
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