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quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Um Conto de Reis

A PORNOGRAFIA DA LARINGE E O BUREAU SECRETO NAS ALTURAS
 Fábio Carvalho

Ontem à noite ainda no ano passado, dormi no sofá da sala e sonhei que estava dentro de um quadro do Guignard cercado por mulheres de todos os tipos, raças e medidas vestidas apenas com calcinhas da cor lilás. Elas estavam por todos os lados e no céu também, pulavam, nadavam, voavam e dançavam rindo, felizes e exuberantes, na quase total liberdade da nudez. Eu sabia que o quadro era do Guignard, embora lembrasse um Renoir, em especial As Banhistas, a não ser pelas calcinhas lilases. O aflitivo era que eu queria a todo custo encontrar a saída daquele quadro e não conseguia de jeito nenhum. Tentava escapar por várias direções e elas não me davam espaço, fechando com os corpos molhados de suor a minha passagem. Sentia um cheiro agradável que lembrava o cheiro das penteadeiras das minhas tias e primas enquanto elas se aprontavam, momento que quando criança, eu gostava de observar escondido. Sentia ainda o cheiro de um bolo de abacaxi que estava no forno. Acordei e dormi de novo e até agora este sonho não saiu da minha cabeça ou eu não saí dele, como queria o Borges. Continuo sonhando. Ao virar a equina ouvi alguém me chamar baixinho do outro lado da rua, olhei para o som e nitidamente vi o Helinho Quirino sorrindo pra mim. Que coisa confortante depois de bastante tempo rever um amigo. Escondido dentro do seu corpanzil de Asterix e da cabeça de prata pulsava uma doçura indecifrável e secreta, que só quando ele tocava o violão sofisticado a francesa, se deixava pelas bordas transparecer. 
Figura insurgentemente amorosa, por assim dizer. Ninguém conheceu igual. O Big me levou até ele. O gorgonzola desembrulhado do papel cinza foi bem comido como testemunha daquelas noites na nave em que chegamos ao bairro do aeroporto. Depois disso só encontrei com ele quando me deu seu único CD gravado chamado: Maestro da Paixão. Passado algum tempo soube que havia morrido, a sua voz de cantor afinado e original misturada com a mágica do seu violão de baixo, marcaram eternamente minha retina. Então sem permissão transcrevo aqui a letra de uma música que ele compôs e cantou.
Eu canto só pra mim. Canto assim pra minha solidão. O seu coração vai desprezar minha canção. Ao me ouvir, nem vai saber o que o cantor tenta esconder. A nota é falsa, o verso ilude e a voz procura um lugar pra se guardar. Refugiar o som. Eu não vou me arriscar perguntar: é bom? Não pode ser. Que meu canto vá trazer a paz. Não dá mais. O que é mesmo paz? Eu canto só pra mim, e assim nasce a composição. O seu coração vai esquecer essa canção. Pra que cantar?  Por que razão? Baby suporte. Incontinenti fui me aprofundando na nossa curta relação amorosa. Supimpa! Surpreendentemente o Estevão buscou essa palavra, ninguém sabe de onde, sabendo que foi da cartola do passado. Pode ser que não venhas mais, que não venhas nunca mais. Fiz então uma ligação interestelar para o Espirito-Santo, foi bastante estranho com perguntas irrespondíveis e respostas inaudíveis, tipo quando você não sabe se o que ouve, são vozes humanas ou de outras estações desconhecidas. Tudo é possível. Errar é humano, acertar é muçulmano, disse o Tralalá, naquela tarde noite em que ele estava bastante inspirado pela movimentação das saias coloridas, pra lá e pra cá, em frente da padaria. O negão ria satisfeito com todos os seus dentes branquíssimos e seu cabelo pixaim pintado de preto com os olhos tapados pelos óculos escuros também preto brilhante. Uma peça rara naquela esquina, meu! Voltemos a pensar então. Fora do alcance das minhas vistas.
Hoje já no ano que vem fui meio que a contragosto, depois de várias escapadas dessa obrigação, assistir ao filme da hora: Azul é a Cor Mais Quente. Vida louca vida leve. Cada um chora por onde sente saudade. Fui subindo a rua em direção ao Cine Belas no horário de verão com o sol a pino. Tentei. Era a primeira sessão, que pensei estaria vazia, qual nada! Mais uma vez me enganei. Lá de baixo já deu para ver que a fila entrava pela calçada afora, com direito a pipoqueiro e tudo mais, simplesmente o que eu queria evitar. Bom também. Comecei a andar em câmera lenta. De repente hoje, um Domingo, ouvi inteira a Tosca na Rádio Cultura de São Paulo, enquanto comia uma lingüiça recheada com alho poró. Como se vê, não tenho do que reclamar. Quando me postei no último lugar da fila, notei que curiosamente a minha frente só tinham mulheres. Eu era o primeiro homem daquela fila. Continuaram chegando outras mulheres que se puseram atrás de mim, algumas mais jovens usavam piercing e cabelo pintado de azul. Seria possível que iria assistir ao filme com uma plateia só de mulheres? Já deviam ter entrado outros homens, conjecturava. A fila foi andando e quando a bilheteria estava a duas mulheres de mim, apareceu o gerente e disse que haviam esgotado os lugares para aquela sessão. Não vi o filme nem a plateia. Fui para as alturas e tirei um cochilo no sofá de frente para o céu azul.    


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