A PORNOGRAFIA DA LARINGE E O BUREAU
SECRETO NAS ALTURAS
Fábio
Carvalho
Ontem à noite
ainda no ano passado, dormi no sofá da sala e sonhei que estava dentro de um
quadro do Guignard cercado por mulheres de todos os tipos, raças e medidas
vestidas apenas com calcinhas da cor lilás. Elas estavam por todos os lados e
no céu também, pulavam, nadavam, voavam e dançavam rindo, felizes e
exuberantes, na quase total liberdade da nudez. Eu sabia que o quadro era do
Guignard, embora lembrasse um Renoir, em especial As Banhistas, a não ser pelas
calcinhas lilases. O aflitivo era que eu queria a todo custo encontrar a saída
daquele quadro e não conseguia de jeito nenhum. Tentava escapar por várias
direções e elas não me davam espaço, fechando com os corpos molhados de suor a
minha passagem. Sentia um cheiro agradável que lembrava o cheiro das
penteadeiras das minhas tias e primas enquanto elas se aprontavam, momento que
quando criança, eu gostava de observar escondido. Sentia ainda o cheiro de um
bolo de abacaxi que estava no forno. Acordei e dormi de novo e até agora este
sonho não saiu da minha cabeça ou eu não saí dele, como queria o Borges.
Continuo sonhando. Ao virar a equina ouvi alguém me chamar baixinho do outro
lado da rua, olhei para o som e nitidamente vi o Helinho Quirino sorrindo pra
mim. Que coisa confortante depois de bastante tempo rever um amigo. Escondido
dentro do seu corpanzil de Asterix e da cabeça de prata pulsava uma doçura
indecifrável e secreta, que só quando ele tocava o violão sofisticado a
francesa, se deixava pelas bordas transparecer.
Figura insurgentemente amorosa,
por assim dizer. Ninguém conheceu igual. O Big me levou até ele. O gorgonzola
desembrulhado do papel cinza foi bem comido como testemunha daquelas noites na
nave em que chegamos ao bairro do aeroporto. Depois disso só encontrei com ele
quando me deu seu único CD gravado chamado: Maestro da Paixão. Passado algum
tempo soube que havia morrido, a sua voz de cantor afinado e original misturada
com a mágica do seu violão de baixo, marcaram eternamente minha retina. Então
sem permissão transcrevo aqui a letra de uma música que ele compôs e cantou.
Eu canto só pra
mim. Canto assim pra minha solidão. O seu coração vai desprezar minha canção.
Ao me ouvir, nem vai saber o que o cantor tenta esconder. A nota é falsa, o
verso ilude e a voz procura um lugar pra se guardar. Refugiar o som. Eu não vou
me arriscar perguntar: é bom? Não pode ser. Que meu canto vá trazer a paz. Não
dá mais. O que é mesmo paz? Eu canto só pra mim, e assim nasce a composição. O
seu coração vai esquecer essa canção. Pra que cantar? Por que razão? Baby
suporte. Incontinenti fui me aprofundando na nossa curta relação amorosa.
Supimpa! Surpreendentemente o Estevão buscou essa palavra, ninguém sabe de
onde, sabendo que foi da cartola do passado. Pode ser que não venhas mais, que
não venhas nunca mais. Fiz então uma ligação interestelar para o
Espirito-Santo, foi bastante estranho com perguntas irrespondíveis e respostas inaudíveis,
tipo quando você não sabe se o que ouve, são vozes humanas ou de outras
estações desconhecidas. Tudo é possível. Errar é humano, acertar é muçulmano,
disse o Tralalá, naquela tarde noite em que ele estava bastante inspirado pela
movimentação das saias coloridas, pra lá e pra cá, em frente da padaria. O
negão ria satisfeito com todos os seus dentes branquíssimos e seu cabelo pixaim
pintado de preto com os olhos tapados pelos óculos escuros também preto
brilhante. Uma peça rara naquela esquina, meu! Voltemos a pensar então. Fora do
alcance das minhas vistas.
Hoje já no ano
que vem fui meio que a contragosto, depois de várias escapadas dessa obrigação,
assistir ao filme da hora: Azul é a Cor Mais Quente. Vida louca vida leve. Cada
um chora por onde sente saudade. Fui subindo a rua em direção ao Cine Belas no
horário de verão com o sol a pino. Tentei. Era a primeira sessão, que pensei
estaria vazia, qual nada! Mais uma vez me enganei. Lá de baixo já deu para ver
que a fila entrava pela calçada afora, com direito a pipoqueiro e tudo mais,
simplesmente o que eu queria evitar. Bom também. Comecei a andar em câmera
lenta. De repente hoje, um Domingo, ouvi inteira a Tosca na Rádio Cultura de
São Paulo, enquanto comia uma lingüiça recheada com alho poró. Como se vê, não
tenho do que reclamar. Quando me postei no último lugar da fila, notei que
curiosamente a minha frente só tinham mulheres. Eu era o primeiro homem daquela
fila. Continuaram chegando outras mulheres que se puseram atrás de mim, algumas
mais jovens usavam piercing e cabelo pintado de azul. Seria possível que iria
assistir ao filme com uma plateia só de mulheres? Já deviam ter entrado outros
homens, conjecturava. A fila foi andando e quando a bilheteria estava a duas
mulheres de mim, apareceu o gerente e disse que haviam esgotado os lugares para
aquela sessão. Não vi o filme nem a plateia. Fui para as alturas e tirei um
cochilo no sofá de frente para o céu azul.
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