Lorenzato e o artista holandês Cornelius Keesman
AMADEO LUCIANO LORENZATO
Paulo Laender
São aproximadamente oito horas da manhã de um dia de semana qualquer.
Na casa
do bairro Cabana do Pai Tomás aquele senhor de idade repete seu ritual
diário:carregando sua pasta, como um executivo se dirigindo ao trabalho,
atravessa o portão que separa sua casa do mundo exterior
Uma vez
do lado de fora escolhe uma direção e, com seu caminhar cadenciado por um leve
mancar , sequela de um acidente de trabalho da época em que pintava paredes, se
distancia penetrando no movimento matinal da rua.
Naquela
maleta leva seu equipamento de trabalho: seus lápis e cadernos de anotações .
Vai em
busca dos motivos que o mundo em volta lhe apresentará e ele os colherá como
imagens a serem trabalhadas depois, na intimidade e mistério do seu ateliê.
Ao rever
essas imagens no documentário que realizamos sobre sua pessoa e obra, por volta
de 1983, recordamos, com emoção, essa rotina, tão simples na sua essência ao
mesmo tempo que profunda e marcante no
seu significado, que Lorenzato durante os muitos anos em que ali residiu,
diariamente obedeceu com a fidelidade e dignidade que a sua alma dedicou `a
arte.
Amadeu
Lorenzato nasceu em Belo Horizonte em
1900 e aqui faleceu em 1995 deixando uma obra e história de vida pouco comuns.
A
história desse brasileiro , que se iniciou com a de Belo Horizonte , filho de
pais italianos que aqui chegaram para trabalhar na construção da nova capital,
revelaria acontecimentos pouco comuns `a maioria dos mortais.
Após uma
infância de criança daquele tempo, entre estudos e brincadeiras no bairro
Barreiro,`aquela época local de chácaras e sítos, chega à juventude e começa a trabalhar como pintor de paredes
Aos vinte
anos Lorenzato foi para a Itália acompanhando os pais que para lá retornaram.
Em Roma
exerce seu ofício de pintor de paredes e, `a noite, frequenta uma escola de
arte onde aprende as técnicas da pintura decorativa ( estuque, “tromp l’oeil”
etc.) e se inicia na pintura artística, de cavalete.
Torna-se
esperantista o que, aos olhos da época equivaleria a grosso modo a um tipo de
“hippismo” dos anos 60/70.
As fotos
de então mostram sua bela face com os cabelos abaixo dos ombros e o olhar de
sonho a vislumbrar a utopia.
Viaja por
toda a Itália e parte da Europa e empreende, de bicicleta, junto com outro amigo artista e também
esperantista, uma viagem de estudos através do leste europeu cujo objetivo
final seria a China.
A viagem
se interrompe na Turquia por força de um conflito armado que aí os surpreende.
Na
precipitação da fuga a dupla se separa e Lorenzato jamais volta a ter notícias
deste companheiro.
Ainda
nesse período Europeu presencia vários conflitos e revoluções e viria a suportar os horrores da segunda
guerra que o marcaram, e `a sua esposa, profundamente. Esta vindo a sofrer
permanentemente de crises nervosas em função da lembrança dos bombardeios por
que passaram.
Apesar de
todas essas atribulações Amadeu Lorenzato jamais deixa de pintar
artisticamente.
Mesmo
quando, em Florença, uma bomba destroi sua casa ateliê e toda a sua produção
que aí estava.
Enfim
,passada a guerra, em 1948 ele retorna
ao Brasil.
Chega
pelo Rio de Janeiro e lá consegue seu primeiro trabalho na obra da construção
do Hotel Quitandinha em Petrópolis.
Alí
permanece por breve período e logo vem para Belo Horizonte onde se
estabeleceria até o final de sua vida.
Lorenzato
estava então com 48 para 49 anos.
Narramos
esses episódios de maneira breve , e certamente incompleta, na intenção de
apresentar-lhes um pouco da riqueza de vivências e atribulações que esse sereno
senhor enfrentou em seu percurso sem que, pelo que dele pudemos conhecer, em
momento algum tais percalços, por mais dolorosos que possam ter sido, o
afastaram do seu caminho e amor `a arte.
Uma vez
aqui estabelecido voltou a trabalhar como pintor de paredes e a realizar
reformas e construções para empresas especializadas da época até que um
acidente de trabalho (a queda de uma escada ocasionando fratura múltipla de uma
perna ) o impossibilitaria de trabalhar levando–o `a uma aposentadoria precoce.
A partir
de então ele se entregou integralmente `a pintura artística vindo a realizar sua primeira
exposição individual aos 54 anos de
idade com Palhano Jr., revelado por Sérgio Maldonado e apresentado por
Mari’Stella Tristão.
Tornou-se
conhecido e admirado por um público pequeno e seleto na sua maioria composto
por artistas e colecionadores atentos .
Passou a
exercer ,e ainda exerce, tanto fascínio a ponto de aqueles que o admiram o
transformarem, com toda justiça, num artista cultuado.
Desde
1977 quando, através da Galeria Memória, da qual fazíamos parte como sócio,
realizamos ali uma memorável exposição de suas obras temáticas, já
acompanhávamos e cultuávamos seu trabalho.
A essa
época ele era considerado, classificado, pela crítica menos avisada, como
pintor primitivo, “naif”, em vista das suas pinturas de favela ou do casario
suburbano.
Galeristas
de então, equivocadamente, lhe encomendavam quadros desse casario e das favelas
imputando-lhe tal especialidade.
Lorenzato,
dentro da sua simplicidade os realizava não deixando no entanto de pintar
também aquelas outras telas que retratavam o cotidiano popular que o
sensibilizava ou ainda, revelar as histórias e os mitos que seu conhecimento
universal, agora passando pela ótica popular/brasileira, comparava com o que a
vida ao seu redor lhe mostrava.
Surgiram
, a nosso ver,dessa segunda experência os seus melhores trabalhos.
Essa
exposição realizada então na Galeria Memória por volta de 1977, era composta
por telas aos poucos adquiridas durante várias visitas a seu ateliê quando
pedíamos-lhe que nos mostrasse esse outro lado do trabalho que não o do
“casario”.
Através
desses encontros e convívio nos tornamos
mais íntimos da sua pessoa e passamos a conhecer um pouco da sua vida e admirar
sua personalidade, sua obra.
Lorenzato
pintou de tudo foi um artista cuja sensibilidade e conhecimento captaram, de
maneira e estilo particularíssimos ,a expressão da cultura popular em toda sua
profundidade.
Foi capaz
de, através das coisas mais simples como um varal de roupas, uma colcha de
retalhos ou uma fachada policromada, revelar a riqueza artística da gente comum
dos bairros periféricos.
Suas
pinturas oníricas expressam os acontecimentos e as histórias que ecoam naqueles
rincões.
Variados
foram os temas em que ele se inspirou para realizar sua obra.
No
noticiário cotidiano como por exemplo quando da conquista do espaço pelos
astronautas; na flora e fauna brasileiras; na devastação da paisagem, sendo
talvez dos primeiros artistas da sua época a manifestar uma preocupação com a
ecologia; na figura da mulher através das suas vênus sedutoramente retratadas,
pousadas nuas em seus leitos; nos parques de diversão da periferia ou no parque
municipal; nos inúmeros e diferenciados pôres de sol; nas marinhas quando de
suas viagens ao Espírito Santo e em muitos outros .
As
estampas dos tecidos de chitão ou mesmo as pinturas decorativas que o
imaginário popular lhe revelaram, foram
parte de inspiração para a criação de telas de um primoroso e estranho
abstracionismo geométrico como também as intrincadas tramas que as árvores e a
vegetação, como veias ou redes, se interpunham `a sua frente e ele as captou
como histórias íntimas, reveladoras de um similaridade inconsciente.
Por fim registramos a beleza das suas pinturas de flores, suas cores tropicais, o lirismo com que as anotou, o sentimento de delicada sensibilidade por esse brincos da natureza talvez só encontrado por aqui em outro mestre, o maior mestre, Guignard.
Por fim registramos a beleza das suas pinturas de flores, suas cores tropicais, o lirismo com que as anotou, o sentimento de delicada sensibilidade por esse brincos da natureza talvez só encontrado por aqui em outro mestre, o maior mestre, Guignard.
Mas ao
contrário de Guignard, cuja imprevisão e a tristeza do abandono junto com o
alcoolismo precipitaram a sua morte, Lorenzato viveu bastante.
E
esta longevidade é uma das suas lições mais importantes que , a nós artistas
principalmente, ele passou. A serenidade com que precavidamente administrou sua
sobrevivência e a capacidade de adaptação a cada nova situação para que pudesse
sempre , de maneira independente, conduzir sua obra.
Lorenzato
jamais atingiu valores elevados no mercado, porque?
Acreditamos
que sua postura foi sempre de indiferença com o comércio da arte.
Teve a
segurança garantida pela aposentadoria dos anos de trabalho como pintor de
paredes.
Morou em
boa casa e pôde dar aos seus uma relativa qualidade de vida.
Pintou
então por verdadeiro prazer e amor `a arte.
Para ele
as especulações do mercado não lhe diziam muito.
Jamais
imputou valores excessivos`as suas obras.
Essas ,
`as vezes vendidas por preços irrisórios, para quem quer que demonstrasse gosto
e vontade de possui-las.
Assim
viveu e morreu sem gerar disputas e sem depender do dinheiro das vendas de suas
obras.
E essa é mais uma das razões pelas quais
acentuamos a importância e o fascínio de Lorenzato sobre nós.
Por tudo
que foi, e ainda será capaz de nos passar, pela sua serenidade, seu espírito
puro e pela obra que, a cada dia , se torna mais reconhecida e merecedora de
livros e catalogação completa além, de uma avaliação crítica`a altura da sua
importância.
Se os
paulistas foram capazes de reconhecer e venerar Volpi como um de seus mestres,
o nosso Lorenzato, como aquele ,artista do mesmo sangue brasileiro/italiano e
trajetória similar ( pintor de paredes por sobrevivência, morador do subúrbio,
e observador da cultura popular como fonte de informação e inspiração para a
sua obra) merece sem a menor dúvida o mesmo reconhecimento e o título de
mestre, embora conheçamos a tradicional indiferença e economia de aplauso
mineiras.
O Centro
de Arte Popular - CEMIG,á Rua Gonçalves Dias 1608, belo Horizonte, MG, inicia
sua programação de 2014 com a exposição LORENZATO/AMADEO - Celebração do
Cotidiano com curadoria e peças do acervo do colecionador Antonio Carlos
Martins.
Lá se
poderá ver uma coleção primorosa do melhor de sua pintura e uma visita a essa
mostra é tudo que recomendamos a todos aqueles que o admiram e aos que ainda
não o conhecem.
A esse
velhinho de olhar profundo, caminhar meio capenga e sorriso de anjo a nossa
gratidão pelo ensinamento e pela existência como artista maior.
Paulo
Laender
Janeiro
de 2014 (Paulo Laender é arquiteto/escultor/designer)
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