Educação Sentimental, o novo filme de Julio Bressane é uma fábula sobre a
impossibilidade do ato amoroso
Diretor usa
filosofia, arte, mitologia e psicanálise para fazer um filme de ideias
Luiz Zanin Oricchio - O Estado de S. Paulo
No plano inicial do filme, um rapaz banha-se numa piscina. Em
seguida, estamos numa estradinha deserta, diante de um panorama magnífico – o
Mirante Sétimo Céu, no Morro Dois Irmãos, no Rio de Janeiro. Estão lá o rapaz e
uma mulher mais velha. Eles se apresentam: Áureo e Áurea. Ela recita (o termo é
esse) uma passagem da mitologia. Endimião, jovem pastor, um dia foi admirado
pela Lua. Ora, a Lua é um deus, ou deusa. Andrógino(a). Não pode se relacionar
com um mortal. Como castigo, Zeus impõe a Endimião o sono eterno. Mas toda
noite a Lua aparece para contemplá-lo.Estamos portanto na atmosfera dos mitos,
neste que é mais um filme de Júlio Bressane cheio de poesia, alusões, citações.
A começar pelo título, Educação
Sentimental, que um incauto
pode referir à obra de Gustave Flaubert. É verdade que existe um ensaio desse
processo entre o rapaz (Bernardo Marinho) e a mulher (Josie Antello). Na casa
onde os dois passam a se encontrar dá-se um processo que se poderia chamar
pedagógico não fosse o abuso do termo. Ela é uma mulher culta, que discorre
sobre seus gostos literários, a família, a música, os romances que deixou
inacabados. Estamos no reino da cultura, um epicurismo não estranho à própria
persona estética de Bressane.
Mas daí a afirmar que se trata de uma pedagogia amorosa, seria dar
um passo a mais. E talvez um mau passo, pois a proposta transcende a simples
troca de ensinamentos eróticos entre um corpo e outro.
Mesmo porque a “relação” entre os dois será marcada pela
impossibilidade. Será, portanto, uma não relação. E, nesse ponto, Bressane
dialoga tanto com a mitologia quanto com a psicanálise lacaniana. “Não existe
relação sexual”, dizia o psicanalista francês, simplesmente porque não se pode
estabelecer um termo médio, de contato total entre um homem e uma mulher. Na
tentativa de fusão imaginária, os amantes estão sempre condenados ao não
encontro. Daí a fantasia recorrente de que a fusão perfeita só se dará com a
morte. Isto é, com a aniquilação dos corpos físicos.
É nesse grau de
profundidade que se arrisca o cinema de Júlio Bressane, sempre dançando na
borda, equilibrando-se no vazio. Não é um cinema que imponha sentido, mas é um
cinema que pede sentido. Enigmático, pois não se entrega de maneira imediata,
funciona como verdadeira máquina de gerar interpretações. É preciso decodificar
as notações eruditas espalhadas pela superfície da obra. Notar a maneira como
são rearranjadas pelo artista, ganhando assim sentidos novos. E prestar atenção
na maneira como são trabalhadas visualmente, porque um filme, por erudito que
seja, não é um tratado de filosofia, filologia ou mitologia. É um complexo
abraço entre palavras, sons e imagens que produz certa sensação em quem
assiste.
Com esse estilo, Bressane vem, já há muito, ocupando posição excêntrica no
contexto do cinema brasileiro. Seu diálogo com o saber universal e com a
tradição brasileira é notável. Tudo conversa com tudo. Do mito helênico relido
pela psicanálise ao samba refinado de Vassourinha.
Ele concorda, discordando. Está feliz com a
acolhida a Educação
Sentimental, que passou com sucesso em festivais no exterior. Não chega a
se queixar do mercado – sabe que tem seu nicho –, mas lamenta que Rua Aperana 52, que mostrou
na Semana do ano passado, tenha ido diretamente para o Canal Brasil, sem passar
pelos cinemas. O Batuque dos
Astros, sobre o universo de Fernando Pessoa, terá o mesmo destino? O
cinema dele possui características próprias. Um filme que, como todos os de
Bressane, faz a síntese de todas as artes para falar de um amor impossível. “É
um filme sobre o mito da Lua”, ele conta. “Uma deusa não pode se apaixonar por
um mortal, mas é o que acontece, e é um amor fadado ao fracasso.”
Interessado em debater o mistério da luz
nos filmes, Bressane fala de sentimentos
Nada a ver com A
Educação Sentimental do
francês Gustave Flaubert. Mas foram anos elaborando o que viria a ser o novo
filme de Júlio Bressane, que estreia sexta-feira no Rio e em São Paulo. “Já
tenho experiência suficiente para saber que não devo me meter com o filme.
Tenho sempre alguma coisa que me é dada, uma cena, uma imagem. No caso de Educação,
era uma imagem arcaica, Endimião adormecido e seu corpo banhado pela Lua.
Depois me veio essa mulher dançando. Imaginei-a madura e ligada a um garoto,
mas um garoto que possui uma qualidade essencial. Ele sabe ouvir...”
Como Bressane gosta de dizer,
ele vai atrás daquilo que o intriga, mas procura não se meter com o filme.
“Existe uma coisa básica que é a questão do enfraquecimento das palavras, do
discurso básico. Evito direcionar coisa alguma porque parto do princípio de que
é precioso falar algo. As coisas são ditas para serem compreendidas.” E foi
assim que se construiu a figura de Áurea em Educação
Sentimental. É melhor falar na personagem que na história, porque, se a
gente insistir muito na trama, o espectador verá o novo Bressane esperando uma
linearidade que ele não vai dar.
“Devo
esse filme, mais até que os outros, ao produtor Marcello Maia. Educação tem algo parecido com a pintura
antiga, de ateliê. Foi feito por muitas mãos e o Marcelo foi quem organizou
todas essas forças para trabalhar no filme. Quem me conhece, sabe que faço
cinema de improviso. Mas, para chegar aí, você tem de fazer as coisas contra
você, evitar as coisas de que gosta. Se fosse para fazer só aquilo de que se
gosta, não seria necessário fazer. É como ir para uma terra desconhecida.”
Áurea, a protagonista de Educação Sentimental, é uma
mulher com um dom humano arcaico. “Ela consegue colocar as entranhas em contato
com as estrelas, e isso se faz através da dança.” Por isso, Bressane procurou
não exatamente uma atriz, mas uma dançarina.
“Existem cerimônias religiosas que colocam o participante numa
relação cósmica. Ou melhor, existiam. Criavam um elo entre você e o cosmo, mas
essa foi uma força que se perdeu e que o cinema pode ajudar a recuperar. O
filme tem um pouco a sonoridade desse atrito das entranhas com as estrelas. Tem
uma mancha de fundo que é a questão da divindade, do amor proibido, do amor de
um imortal pelo mortal. Áurea fala, seduz pela palavra, e o garoto escuta. E aí
surge a questão da mãe, que cria o desacerto. A mãe é o humano. Tudo o que ela
diz e pensa são as coisas humanas. A mãe quer comer o filho, quer comer a
empregada. Isso é coisa humana, e é o que quebra o encanto, revela que o menino
é humano. O filme é sobre o encantamento e a sua perda.”
Há um aspecto aparentemente secundário no cinema de Bressane,
mas que ele sabe que é vital. Está em Educação
Sentimental. “O cinema sofre
de uma hipertrofia imensa. Você imagina um fotograma, com centenas de milhares
de grãos. Cada grão é uma luz. Só que há hoje uma deformação. Você vai buscar
uma coisa no filme que ele pode ser que não tenha. A história, o enredo. Isso
não é da natureza do filme, que é luz. A questão de fundo é a passagem da
transparência para a opacidade. Cinema até ontem foi feito em película. A
complexidade do mecanismo do cinema é que se trata da projeção de uma
transparência. O filme é um fotograma transparente, uma pasta granulada onde se
imprime a luz. É para ser visto a partir do fotograma, não do enredo. O
princípio da ocupação da transparência pela sombra é uma forma de organizar o
nada.”
O diretor
conta que ‘nós’ – a produção de Educação
Sentimental – “recebemos uma
carta do laboratório nos cumprimentando por sermos o último filme feito em
película por lá. Desmontaram o laboratório e doaram tudo para a Cinemateca”. E
ele prossegue refletindo – a película hoje não tem mais razão para existir. O
cinema está todo passando da transparência para a opacidade. “O digital é
opaco. Como foi o vídeo, que também já era opaco. Não vejo isso como uma perda.
A opacidade é importante, é o inconsciente e o sujeito.” E ele conclui que o
campo de exploração da opacidade é tão interessante quanto o de exploração da
transparência.
Claro que não se trata de uma história linear nem com começo, meio e
fim. Desde que se iniciou na direção de longas, em 1967, comCara a Cara,
Bressane firmou-se como um autor singular do cinema brasileiro. Um dos mais
persistentes – um filme por ano, todos os anos – e o mais erudito. Walter Carvalho,
grande diretor de fotografia e narrador de prestígio, com filmes elogiados no
currículo, larga tudo, até os próprios filmes, para fotografar para Bressane.
“Com ele, filmar é um aprendizado contínuo”, explica. Bressane gosta de dizer
que filmar é uma viagem. O diretor propõe, o espectador dispõe (ou não). Ao
iniciar sua viagem, o primeiro não sabe muito bem aonde quer, ou se vai chegar.
“Nunca se sabe direito o que é o filme. Uma parte do processo a gente controla,
a outra parte domina a gente.” O cinema e a interpretação dos sonhos, de Freud,
são contemporâneos. Difícil não encarar a psicanálise com Bressane. “O que se
faz é uma porção mínima do que a consciência permite”, prossegue. E a
dificuldade é justamente impedir que a outra parte, a que escapa, “o contradiga
e negue o que você pretende fazer”. Todo filme nasce dessa tensão. Quem fala é
o mestre.Quando fala de luz, Bressane retoma uma discussão sobre cinema que
remonta às origens – e do lendário Abel Gance chega a outro autor não menos mítico,
Andrei Tarkovski, um escultor do tempo. Como a gestação de suas obras é lenta,
o ato de filmar termina sendo rápido, como consequência de toda uma depuração.
Quanto tempo Bressane trabalhou o outro filme que já tem pronto, O Batuque dos Astros? “Quem
me deu a possibilidade de retomar esse projeto foi meu amigo Zelito Viana (o produtor e diretor). Nos
anos 1970, e de maneira muito intuitiva, havia escrito um roteiro sobre
Fernando Pessoa. Chamava-seNinguém, construindo-se na ideia de que, à
força de se multiplicar em tantos heterônimos, o autor terminara por se
anular.”Durante seu exílio em Londres, naquela época, Bressane assistiu à
descoberta e valorização do grande – e misterioso – escritor português. Com a
cumplicidade de Zelito Viana, ele partiu em busca da Lisboa de Pessoa,
investigando o espaço – e a linguagem – como fizera em Rua Aperana 52. O repórter
arrisca (psicanalisa?) – o que sempre o atraiu em Pessoa foi a multiplicidade?
Talvez o fato de ele próprio se sentir um estrangeiro na Inglaterra? “Pode ser,
mas a verdade é que, por minhas preocupações, sou meio autista e termino sempre
me sentindo estrangeiro em toda parte, até no Rio.” Houve outro exílio mais
recente, quando Bressane, acompanhando a mulher psicanalista, Rosa Bastos,
ficou cerca de um ano em Paris, e trabalhou na montagem desses filmes no
próprio computador. Incansável, anuncia que filma em março outro projeto que
acalenta há tempos – O Sheik.
Vai filmar em estúdio, com Alessandra Negrini, que já foi sua Cleópatra.
Bressane pensa, reflete – e executa. Como ele diz, o cinema é, para ele, fator
de sobrevivência. “Fazendo filmes é que consigo me conhecer.”
Com esse estilo, Bressane vem, já há muito, ocupando posição excêntrica no contexto do cinema brasileiro. Seu diálogo com o saber universal e com a tradição brasileira é notável. Tudo conversa com tudo. Do mito helênico relido pela psicanálise ao samba refinado de Vassourinha.
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