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domingo, 5 de agosto de 2012

CINEMA

PARÁBOLA DO VÔO LIVRE


Fábio Carvalho

Um cineasta tem basicamente dois desejos:

Filmar o homem morrendo


e o homem fazendo amor.

Nagisa Oshima
Comecei de novo, depois de um breve hiato necessário para reconstituições internas, a deambular pela trilha sonora abismal a qual me entreguei. Sem delongas, vamos lá. Eu era a câmera e a câmera era eu. No sábado à noite subi novamente e pela última vez, os três longos lances da escadaria em zigue-zague, que levam ao quintal da casinha de fundos perto da Arena do Independência, onde morava a Mariana. Acontecia uma festinha de despedida daquele endereço, já que ela estava de mudança para o Santo Antonio. Depois que o Tadeu me deu um copo com cerveja, sentei numa cadeira embaixo da jabuticabeira e fiquei conversando com o João Flores sobre a bela cidade de Cataguases. Meu ponto de visão era de noventa graus em suave movimento panorâmico. Nada mais inquietante que a luz vermelha montada num pedestal dentro de um secador antigo de salão de beleza, incidindo sobre o muro descascado. Quatro amigas modernetes conversavam e riam sem parar no contraluz. Gesticulavam muito e ensaiavam umas reboladas ao som de um DJ latino que tocava um baticum insuportável, que todos pareciam conhecer de cor. A visão me agradava. Mudaram para um samba e a lua minguante apareceu no pedaço de céu que nos restava. Já não bebo mais cachaça. Melancólico pensamento, mas a vontade continua. Gradualmente o ruído ambiente foi abaixando e pude ouvir o piano do Bill Evans. No grau. Registrei toda música em filme reversível. Há poucos dias estava me produzindo para fugir da ilha de montanhas onde habito, rumo ao meu Rio de Janeiro citando a Bebel, quando inesperadas forças ocultas me mantiveram ilhado. O inesperado tem sempre lugar. Por raras vezes ficando parado no mesmo lugar me senti bem. Aqui, concentrado no jardim da infância, descobri outras possibilidades muito atraentes. Voltei à música. Ela voltou a mim. É doce viver no mar. Hoje de manhã, ela me disse o que o Léo Maciel tinha postado no facebook: a casa que o Guignard morou na Serra vai ser demolida. Era a casa dos Meinberg na rua Santa Helena. A casa bem desenhada foi construída pelo marido alemão da Lisete, artista plástica que tinha sido aluna do mestre. Reza a lenda que depois da Lisete ter passado para Guignard um dinheirinho advindo da venda de uns cartões que ele desenhara, o grande artista fanhoso sumiu por uns três dias. Quando voltou, maltrapilho, sujo e sem um tostão, a anfitriã, no sermão da recepção, deixou escapar uma pérola semântica: “Guignard! Você pintou comigo, hein!” O hóspede ajoelhou-se e clamou: “perdão minha senhora!” A harmonia se restabeleceu. Chamamos o João Diniz e vamos filmar a casa e sua demolição para o filme O ANJO GUIGNARD da Isabel. Claro e evidente sempre contando com o tempo. Tudo tempo. No confiteor da nossa estória foi impresso os anos-luz manualmente esculpidos na tridimensionalidade deste trabalho: a dor do crescimento. Chega de rocamboles. Novamente tenho caminhado muito pelas ruas da Serra. Coisa de cabrito Montanhês. Os encontros e as topadas me estimulam. Continuo como era. Agora com nova mudança para a velha Rua do Ouro. Tecnicamente ainda no meio da festinha ela interrompeu bruscamente o piano do Bill Evans citando o que estava escrito no caderninho de notas que mora na bolsa: “se a gente deixar essa argentina doidona e porra-louca escolher a música nós estamos ferrados”. Trocamos o canal para melhor. Viver a vida. Vou aprender a escrever sobre O $ANTO E A VEDETE, o filme sem adjetivos do nosso mestre Rosemberg. Vento louco. O adjetivo é o cancro da língua. Incêndio no circo. Peguei variadas boas ondas no espaço daquele principio de noite no quintal. Chegado o tempo desço pela última vez a escadaria em zigue-zague. Deixo a luz do olhar no teu luar cantou o Lamartine. O Rosemberg escreveu:

... debruça-se sobre um outro cinema contrário à

obediência. Filma, então, depoimentos, festa, espaços, palavras,

beleza, liberdade, sonhos, amigos, potência, esforço, encontros,

desacordos, diferenças, expressões, música, mãos, embriaguez,

vontades, abnegações, gozo, experiências, textos, livros, poesia,

natureza, incertezas, alternativas, razão, a cidade, o mar, a praia,

reflexões, o cinema vivo, trilhas, raciocínios, sentimentos, afetos,

amigos... é um pouco a história de um saber que se negou a

envelhecer. A luta continua!


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