Um pequeno diálogo doentio
Duas pessoas caminham a beira-mar. O dia está chuvoso e frio. Ambos estão agasalhados até o pescoço. Caminham em silêncio olhando para a areia molhada pelas águas geladas do oceano acinzentado. O primeiro, parando de caminhar, olhando sério para o outro, diz em tom desesperado:
- O Senhor é médico?
- Diga-me com franqueza: você poderia imaginar que em 2009 o nosso mundo estaria assim?
- Assim como? Não estou entendendo! Responde o segundo continuando o caminhar.
- Milhares de crianças morrendo de fome todos os dias. Milhões de pessoas ainda analfabetas. Milhões de homens desempregados, marginalizados. Bilhões de escravos, autômatos, alienados, vivendo sua miséria existencial...
- Não sobra ninguém?
- Sobrar? Quem sabe se o mundo inteiro praticamente se afunda no substrato da sua merda industrial! Guerras e mais guerras pipocam pelos quatro cantos da telinha da tevê.
- Pipocam doces ou salgadas? Ora o Senhor é ou não o médico...
- Você está brincando com fogo! A violência, cada vez maior, impera em todas as classes sociais. Deus e todas as teologias brigam entre si, muitos se consomem pelo fanatismo de poucos.
- Qual é a razão de tamanha angústia? O mundo não mais nos pertence? O que somos ou o que nos tornamos meu amigo. Preciso de um médico... Pelos nossos rostos já não somos tão jovens e podemos morrer... Vamos deixar os jovens vivos seguirem os seus caminhos...
- Os jovens educados, antes rebeldes e revolucionários, hoje infelizes, se contentam e se guardam pelos apelos fáceis do consumo tecnológico, vivem o atraso do dia a dia de suas vidinhas acomodadas. Ungidos pela necessidade de se dar bem se esquecem que o protesto intelectual, pela necessidade de buscar o novo e do que não foi ainda experimentado, faz parte da evolução do homem, do equilíbrio universal, de todas as coisas que habitam o eterno caos planetário. Os jovens deseducados, antes nobres e cordiais, filho dos operários do campo que se mudou para a cidade, atraídos pelo dinheiro farto dos grandes centros financeiros do país, hoje estão enganados e esfomeados, marginalizados pedem por uma chance de entrar no mercado comum do consumo, de se parecer com os milhares de desejos exposto pelos meios de comunicação. Jovens que dançam e cantam nas baladas enlouquecedoras dos barracos eletrônicos espalhados pelos bairros da periferia, extravasam suas neuroses e apelos sexuais em um doentio e violento bacanal consumindo a sua liberdade nas garras de um traficante associado às forças de repressão do estado dito democrático.
- Ninguém está a salvo deste mundo hostil?
- Só os boçais, os que nada sabem daqueles que nada temem, pois são dominados pelos solitários das estepes, homens músculos que movimentam montanhas com suas armas poderosas, atômicas, digitais, presos aos interesses dos majestosos grupos de capitalistas predadores que fazem de tudo para atrasar o processo transformador e evolucionista dos humanos de boas intenções, podem sobreviver a todas essas mazelas...
- Meu caro senhor! E os que estudam, se formam e tornam-se profissionais de sucesso, cientistas, intelectuais, ou seja: a nata da sociedade acadêmica, não se esquecendo o grupo dos artistas, não está na certa sendo contemplado por sua análise radical?
- A classe de trabalhadores que estudaram e se encaixaram em bons empregos, com bons salários, só querem mais e mais, não se contentam jamais com o que já tem possuido.
- Você está exagerando meu amigo! Imperialismo? Submissão ao sistema capitalista predador? Teorias antigas que quando foram postas em prática deu no que deu...
Os dois param de andar. O sol avermelhado aparece tímido por traz das nuvens. Eles se olham demoradamente.
- Não estou exagerando nada! Não acredito em ideologias, como não acredito no sistema de domínio do homem pelo homem. Nada existirá se o homem não se libertar do vício da ganância. A única arma que eu conheço é o livre pensar, ela é a possibilidade de me libertar, é o meu caminho para uma nova vida, livre de tudo e de todos.
- Um lobo solitário das estepes?
- Uma onça na mata fechada pronta para o próximo ataque!
- Estamos em paz! Mas quem pode nos atacar meu amigo?
- Antes foi a gripe espanhola, hoje é a gripe mexicana. Sempre existirá um ataque frontal entre os grandes interesses do mundo capitalista e pode ter a certeza de quem paga a conta é a população indefesa, mal informada e doméstica.
- Você não acha que se todos sucumbirmos, com o fim da história, quem ficará para dourar o defunto, meu amigo?
- Não sou seu amigo! Conhecemo-nos hoje na praia! Você me perguntou se sou médico e não lhe respondi e você passou a caminhar comigo, provando da intimidade dos meus pensamentos chegando a dialogar com eles, o que mais posso lhe oferecer?
- O senhor é o médico que veio para a cidade combater o surto da gripe...
- Sim, sou o médico... E daí?
- É que minha família, os meus jovens filhos, estão todos doentes e precisam do senhor com urgência...
- Olhe meu caro, estou andando para descansar da desgraça que se abateu na cidade... As filas são fenomenais e falta o remédio nos hospitais... Muitos vão morrer!
- Não doutor, o senhor não está entendendo. Sou o homem mais rico da região e o senhor sabe das prioridades...
- Não sei não! Só sei que saio daqui novamente de volta ao inferno por um bom bocado de dinheiro.
- Dinheiro doutor? Até o senhor mudou?
- Nada mudou! Só se luta contra a força poderosa do capital com as mesmas armas que eles vêm nos atacar... Vamos ver sua família.
Os dois continuam a andar a beira-mar quando começa uma nova chuva fina a cobrir a paisagem do anoitecer na cidadezinha da costa brasileira.
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