Têmpera sobre papel
ARTE DE FURTAR
Neste momento em que o mundo caminha inexoravelmente para o abismo econômico é hora de observar o pensamento debochado dos trechos escolhidos de um clássico da literatura muito pouco conhecido do leitor brasileiro. A sua primeira edição se deu no ano de 1652 em Amsterdã. João Ribeiro no seu estudo crítico acerca deste livro reeditado por Garnier em 1907 diz que sempre se considerou ao Padre Antônio Vieira a paternidade da Arte de Furtar.
Espelho de Enganos, Teatro de Verdades
Mostrador de Horas Minguadas
Ab Unguibus leo
Diz o provérbio:
- Pelas unhas se conhece o leão; eu digo:
- E pelas mesmas se conhece o ladrão.
Como para furtar há arte, que é ciência verdadeira.
As artes, dizem seus autores, são emulações da natureza: E dizem pouco; porque a experiência mostra que também lhe acrescentam perfeições.
Deu a natureza ao homem cabelo e barba para autoridade e ornato; e se a arte não compuser tudo, em quatro dias se fará um monstro. Com arte faz o escultor do tronco inútil uma imagem tão perfeita que parece viva. Com arte tiram os cobiçosos das entranhas da terra e centro do mar, a pedraria e metais preciosos que a natureza produziu em tosco e aperfeiçoando tudo, lhe dão outro valor. Não perde a arte seu ser por fazer mal quando o faz bem e a esse mesmo mal que professa, para tirar dele para outrem algum bem, ainda que seja ilícito. E tal é a arte de furtar, que todas se ocupam em despir uns para vestir outros.
Con arte y con engãno, vivo la mitad del año: Y con engãno y arte, vivo la otra parte.
Se os ladrões não tiverem arte busquem outro ofício; e quando os vejo continuar no ofício ileso, não posso deixar de o atribuir à destreza de sua arte que os livra até da justiça mais vigilante, deslumbrando-a por mil modos, ou obrigando-a que os largue e os tolere; porque até para isso tem os ladrões arte. Assim se prova que há arte de furtar, e que esta seja ciência verdadeira.
Como a arte de furtar é muito nobre.
Mais fácil achou um prudente que seria acender dentro do mar uma fogueira, que espetar em um peito vil fervores de nobreza. Contudo, ninguém me estranhe de chamar nobre a arte cujos professores por leis divinas e humanas são tidos por infames. A nobreza das ciências colhe-se de três princípios: o primeiro, é o objetivo ou a matéria em que se ocupa; o segundo, as regras e preceitos de que consta; o terceiro, os mestres e sujeitos que a professam. Pelo primeiro princípio, é a teologia mais nobre que todas; porque tem a Deus por objeto. Pelo segundo, é a filosofia; porque suas regras e preceitos são delicadíssimos e admiráveis. Pelo terceiro, é a música; porque a professam anjos no céu e na terra príncipes. E por todos estes três princípios é a arte de furtar muito mais nobre; porque o seu objeto e a matéria em que se emprega, é tudo o que tem nome de precioso: as suas regras e preceitos são sutilíssimos e infalíveis e os sujeitos e mestres que a professam, ainda o mal, são os que mais prezamos, os mais nobres senhores.
Não pode haver maior desgraça no mundo que converter-se a um doente em veneno a triaga que tomou para vencer a peçonha que o vai matando, é fortuna muito mal de sofrer. E tal é que acontece em muitas repúblicas do mundo e até nos reinos mais bem governados, os quais para se livrarem dos ladrões, que é a pior peste que os abrasa, fizeram varas, que chamam de justiça, isto é, meirinhos, almotaceis, alcaides; puseram guardas, rendeiros e jurados; e fortaleceram a todos com provisões, privilégios e armas, mas eles, virando tudo do carnaz para fora, tomam o rasto às avessas, e em vez de nos guardarem as fazendas, são os que maiores estragos fazem nelas; de sorte não se distinguem dos ladrões que lhe mandam vigiar, em mais senão, que os ladrões furtem nas charnecas e eles, os nobres, no povoado.
Dos leões contam os naturaes, que de tal maneira faz suas presas, que juntamente as defende e que lhes não toque nenhum outro animal, por fero que seja! Ladrões há piores que estes animais, e são como eles os poderosos. Todos são como os leões; que não deixam que os outros animais se cevem na sua presa. Não admitir companhia no trato de que se pode tirar proveito, é ambição e é interesse, a que podemos dar o nome de furto.
Que quien todo lo quiere todo lo pierde.
Ofereceu-se o chimango à galinha para ser seu enfermeiro em uma doença e em cada visita lhe mamava um pinto pela calada, até que a galinha se deu fé, pela diminuição de sua família, que a mercê que lhe fazia o seu médico, tinha mais de furto que de misericórdia.
Dos que furtam com unhas reais.
Quando Alexandre Magno conquistava o mundo, repreendeu a um corsário por andar infestando os mares da Índia com seus dez navios. O corsário respondeu-lhe discreto: - Eu, quando muito, dou alcance e saco a um ou dois navios, se os acho desgarrado por esses mares; e vossa alteza com um exército de quarenta mil homens, vai levando a ferro e fogo toda a redondeza da terra, que também não é sua: Eu furto o que me é necessário, vossa alteza o que lhe é supérfluo. Diga-me agora, qual de nós é maior pirata, e qual merece melhor essa repreensão?
Dos que furtam com unhas temidas.
A Excelência é de todas as unhas a que deve ser mais temida, e tanto mais quanto mais fero é o animal que as maneia. Quem há que não teme as unhas de um tigre assanhado e as garras de um leão rompente? Até as de um gato teme qualquer homem de bem, por valente que seja, quanto mais as de um ladrão que escala o que mais alto se guarda, e o que muito mais se estima. Temidas, pois são todas as unhas militares, porque as acompanha a potência e a violência das armas fulminando favor. Contudo, armas ofensivas nas mãos de um pigmeu não as temem; e há soldados pigmeus que não passam de formigueiros; livre-nos Deus das que movem gigantes!
E assim são as suas unhas tão agigantadas, que nada lhes para adiante e por isso, com razão, todos as temem e tremem.
Toda unha que arranha, é aguda; e toda a unha que furta, arranha até o fundo do ser: logo todas as unhas que furtam são agudas. Bom está o argumento, e bem conclui o silogismo. Mas falo dessa agudeza pela sutileza com que alguns furtam, sem deixarem rasto, nem pegadas de que lhes pegue.
Unhas bentas parecerá coisa impossível, porque todas são malditas e peçonhentas, como as dos gatos. E entre tantas unhas não há dúvidas que há algumas bentas, não porque tirem almas do purgatório com perdão das contas bentas; mas porque lançadas as contas, laçando benções e apoiando virtudes, e chamando misericórdia e amores de Deus, purgam as bolsas que encontram.
A raposa, quando salteia um galinheiro faminta, ceva-se bem nos primeiros dois pares de galinha que mata: e como se vê farta degola as demais, e vai-lhes lambendo o sangue. São como as sanguessugas, que chupam até que arrebentam.
A máxima desta arte é que todo ladrão seja diligente e apressado, para que não o apanhem com o furto na mão.
Com tudo isso, há unhas que em serem vagarosas tiram o máximo de seu proveito: São como o fogo lento, que por isso mesmo se sente, e melhor se ateia.
Do áspide escrevem os naturaes que morde e mata com tamanha suavidade que não se sente; e por isso Cleópatra escolheu essa morte, enfadada da vida, pelo repúdio de Marco Antônio.
Tais são as unhas insensíveis. Tiram a vida aos reinos mais robustos, e esgotam a alma aos tesouros mais opulentos, com tamanha suavidade que não se sentem o dano, se não quando está tudo morto.
Ver o mal, antes que chegue, é grande bem para escapar dele: Mas o raio, que não se vê, a bala que não se enxerga senão quando vós sentis ferido, são males irremediáveis.
Mais unhas há; mas as que temos visto neste tratado, bastam para as conhecermos todas e para entendermos quão perniciosas e desarrazoadas são.
ARTE DE FURTAR
Neste momento em que o mundo caminha inexoravelmente para o abismo econômico é hora de observar o pensamento debochado dos trechos escolhidos de um clássico da literatura muito pouco conhecido do leitor brasileiro. A sua primeira edição se deu no ano de 1652 em Amsterdã. João Ribeiro no seu estudo crítico acerca deste livro reeditado por Garnier em 1907 diz que sempre se considerou ao Padre Antônio Vieira a paternidade da Arte de Furtar.
Espelho de Enganos, Teatro de Verdades
Mostrador de Horas Minguadas
Ab Unguibus leo
Diz o provérbio:
- Pelas unhas se conhece o leão; eu digo:
- E pelas mesmas se conhece o ladrão.
Como para furtar há arte, que é ciência verdadeira.
As artes, dizem seus autores, são emulações da natureza: E dizem pouco; porque a experiência mostra que também lhe acrescentam perfeições.
Deu a natureza ao homem cabelo e barba para autoridade e ornato; e se a arte não compuser tudo, em quatro dias se fará um monstro. Com arte faz o escultor do tronco inútil uma imagem tão perfeita que parece viva. Com arte tiram os cobiçosos das entranhas da terra e centro do mar, a pedraria e metais preciosos que a natureza produziu em tosco e aperfeiçoando tudo, lhe dão outro valor. Não perde a arte seu ser por fazer mal quando o faz bem e a esse mesmo mal que professa, para tirar dele para outrem algum bem, ainda que seja ilícito. E tal é a arte de furtar, que todas se ocupam em despir uns para vestir outros.
Con arte y con engãno, vivo la mitad del año: Y con engãno y arte, vivo la otra parte.
Se os ladrões não tiverem arte busquem outro ofício; e quando os vejo continuar no ofício ileso, não posso deixar de o atribuir à destreza de sua arte que os livra até da justiça mais vigilante, deslumbrando-a por mil modos, ou obrigando-a que os largue e os tolere; porque até para isso tem os ladrões arte. Assim se prova que há arte de furtar, e que esta seja ciência verdadeira.
Como a arte de furtar é muito nobre.
Mais fácil achou um prudente que seria acender dentro do mar uma fogueira, que espetar em um peito vil fervores de nobreza. Contudo, ninguém me estranhe de chamar nobre a arte cujos professores por leis divinas e humanas são tidos por infames. A nobreza das ciências colhe-se de três princípios: o primeiro, é o objetivo ou a matéria em que se ocupa; o segundo, as regras e preceitos de que consta; o terceiro, os mestres e sujeitos que a professam. Pelo primeiro princípio, é a teologia mais nobre que todas; porque tem a Deus por objeto. Pelo segundo, é a filosofia; porque suas regras e preceitos são delicadíssimos e admiráveis. Pelo terceiro, é a música; porque a professam anjos no céu e na terra príncipes. E por todos estes três princípios é a arte de furtar muito mais nobre; porque o seu objeto e a matéria em que se emprega, é tudo o que tem nome de precioso: as suas regras e preceitos são sutilíssimos e infalíveis e os sujeitos e mestres que a professam, ainda o mal, são os que mais prezamos, os mais nobres senhores.
Não pode haver maior desgraça no mundo que converter-se a um doente em veneno a triaga que tomou para vencer a peçonha que o vai matando, é fortuna muito mal de sofrer. E tal é que acontece em muitas repúblicas do mundo e até nos reinos mais bem governados, os quais para se livrarem dos ladrões, que é a pior peste que os abrasa, fizeram varas, que chamam de justiça, isto é, meirinhos, almotaceis, alcaides; puseram guardas, rendeiros e jurados; e fortaleceram a todos com provisões, privilégios e armas, mas eles, virando tudo do carnaz para fora, tomam o rasto às avessas, e em vez de nos guardarem as fazendas, são os que maiores estragos fazem nelas; de sorte não se distinguem dos ladrões que lhe mandam vigiar, em mais senão, que os ladrões furtem nas charnecas e eles, os nobres, no povoado.
Dos leões contam os naturaes, que de tal maneira faz suas presas, que juntamente as defende e que lhes não toque nenhum outro animal, por fero que seja! Ladrões há piores que estes animais, e são como eles os poderosos. Todos são como os leões; que não deixam que os outros animais se cevem na sua presa. Não admitir companhia no trato de que se pode tirar proveito, é ambição e é interesse, a que podemos dar o nome de furto.
Que quien todo lo quiere todo lo pierde.
Ofereceu-se o chimango à galinha para ser seu enfermeiro em uma doença e em cada visita lhe mamava um pinto pela calada, até que a galinha se deu fé, pela diminuição de sua família, que a mercê que lhe fazia o seu médico, tinha mais de furto que de misericórdia.
Dos que furtam com unhas reais.
Quando Alexandre Magno conquistava o mundo, repreendeu a um corsário por andar infestando os mares da Índia com seus dez navios. O corsário respondeu-lhe discreto: - Eu, quando muito, dou alcance e saco a um ou dois navios, se os acho desgarrado por esses mares; e vossa alteza com um exército de quarenta mil homens, vai levando a ferro e fogo toda a redondeza da terra, que também não é sua: Eu furto o que me é necessário, vossa alteza o que lhe é supérfluo. Diga-me agora, qual de nós é maior pirata, e qual merece melhor essa repreensão?
Dos que furtam com unhas temidas.
A Excelência é de todas as unhas a que deve ser mais temida, e tanto mais quanto mais fero é o animal que as maneia. Quem há que não teme as unhas de um tigre assanhado e as garras de um leão rompente? Até as de um gato teme qualquer homem de bem, por valente que seja, quanto mais as de um ladrão que escala o que mais alto se guarda, e o que muito mais se estima. Temidas, pois são todas as unhas militares, porque as acompanha a potência e a violência das armas fulminando favor. Contudo, armas ofensivas nas mãos de um pigmeu não as temem; e há soldados pigmeus que não passam de formigueiros; livre-nos Deus das que movem gigantes!
E assim são as suas unhas tão agigantadas, que nada lhes para adiante e por isso, com razão, todos as temem e tremem.
Toda unha que arranha, é aguda; e toda a unha que furta, arranha até o fundo do ser: logo todas as unhas que furtam são agudas. Bom está o argumento, e bem conclui o silogismo. Mas falo dessa agudeza pela sutileza com que alguns furtam, sem deixarem rasto, nem pegadas de que lhes pegue.
Unhas bentas parecerá coisa impossível, porque todas são malditas e peçonhentas, como as dos gatos. E entre tantas unhas não há dúvidas que há algumas bentas, não porque tirem almas do purgatório com perdão das contas bentas; mas porque lançadas as contas, laçando benções e apoiando virtudes, e chamando misericórdia e amores de Deus, purgam as bolsas que encontram.
A raposa, quando salteia um galinheiro faminta, ceva-se bem nos primeiros dois pares de galinha que mata: e como se vê farta degola as demais, e vai-lhes lambendo o sangue. São como as sanguessugas, que chupam até que arrebentam.
A máxima desta arte é que todo ladrão seja diligente e apressado, para que não o apanhem com o furto na mão.
Com tudo isso, há unhas que em serem vagarosas tiram o máximo de seu proveito: São como o fogo lento, que por isso mesmo se sente, e melhor se ateia.
Do áspide escrevem os naturaes que morde e mata com tamanha suavidade que não se sente; e por isso Cleópatra escolheu essa morte, enfadada da vida, pelo repúdio de Marco Antônio.
Tais são as unhas insensíveis. Tiram a vida aos reinos mais robustos, e esgotam a alma aos tesouros mais opulentos, com tamanha suavidade que não se sentem o dano, se não quando está tudo morto.
Ver o mal, antes que chegue, é grande bem para escapar dele: Mas o raio, que não se vê, a bala que não se enxerga senão quando vós sentis ferido, são males irremediáveis.
Mais unhas há; mas as que temos visto neste tratado, bastam para as conhecermos todas e para entendermos quão perniciosas e desarrazoadas são.
FOTOS DA BELA MULHER E EXTRAORDINÁRIA ATRIZ
MARIA GLADYS EM LONDRES.
2 comentários:
olá José Sette,
Gostaria que visse:
http://www.flickr.com/photos/soniabacha_sb/3227983809/
gostei muito do texto!! Nem tanto pelo o título, mais precisamente pelo o que diz a respeito das unhas.
Postar um comentário