AS BANHISTAS
Neuzinha Chorona era a personagem que o Dr. Peters me descreveu do outro lado do balcão, naquela Segunda sem lei depois do natal. Nestes dias em que me lembrava de tudo, sentado em frente ao computador, fechava os olhos e sonhava, foi assim repetidas vezes, outro cochilo outro sonho, parecia que estava numa poltrona de avião. Segundo o Dr. Peters, que é um senhor grisalho de setenta e sete anos, a Neuzinha era a irmã de um amigo seu da juventude, muito bonita, rasgava os corações de todos por onde passava. Ela escreveu em bom português: estou a tentar a paz! Como o apelido entrega, Neuzinha tinha uma personalidade curiosa. Querida por todos, quando alguém lhe fazia um elogio, tipo: Neuzinha você está muito bonita, ela invariavelmente respondia: ah, tô muito bonita... neste momento sua boca começava a tremer e se debulhava em lagrimas, até fechar o chorador sorrindo, extasiada. Qualquer coisa que lhe dissessem o efeito era mesmo: Neuzinha hoje tá muito quente. Ela: ...é tá muito quente. Seus olhos castanhos vertiam cachoeiras cintilantes e seus canais lacrimosos se lubrificavam. Por onde andará Neuzinha Chorona? Nem o Dr. Peters sabe. Também muito bonita era a que chamávamos de Dama das Camélias, não me lembro do seu nome mais. Essa era filha única e adorava receber nossa turminha na parte da tarde, quando seus pais não estavam, para comermos bolo, brigadeiro ou pipoca, vermos a única televisão colorida do pedaço e queimarmos unzinho, que ela roubava na gaveta do criado mudo da mãe, que mantinha um estoque de reserva. Enquanto todos falavam sem parar, ela permanecia sempre calada e com olhar distante. Em algum momento da resenha ela punha as costas da mão na testa e falava com voz mansa: vou desmaiar. Desfalecia lentamente no colo de alguém ou em uma superfície macia. Assim ganhava a atenção de todos por alguns segundos, se restabelecia, ia ao banheiro e voltava para a roda na sua condição de coadjuvante. A sorrir você me apareceu e as flores que você me deu, guardei no cofre da recordação. Porém, depois que você partiu pra muito longe e não voltou a saudade que ficou não quis abandonar meu coração. A Calopsita Cara Branca, que assobiava o hino do Galo, morreu feito um passarinho, amanheceu durinha com os pezinhos pra cima, no canto da bandeja embaixo do poleiro onde morava nos fundos da casa dos árabes na Rua Amapá. Você tem que ter a imaginação paisagística e monumental para passar no texto a devoção a cruz. Esqueci onde coletei essa fala, ainda assim a coloquei aqui. Observei em panorâmica um jovem casal atravessando as duas esquinas do largo da Rua do Ouro. Ela com cara de choro e ele num tom meio irritado falavam bem alto: é medo, medo! Ela dizia e ele retrucava: que medo, qual o risco que você corre? Ela respondeu gesticulando: medo, medo! Biro-Biro, como bom apontador do bicho, acertou na mosca aplicando os senhores aposentados da esquina de cima. Meu coração por ti bate igual a um caroço de abacate. Estase total. Diálogos transcendentais sobre linhas douradas entre palavras que ainda não foram ditas. A porta secreta no fim do corredor estava aberta, não totalmente aberta, estava entreaberta, então entrei. Rápido, o raio risca o céu e ribomba. Enfim, conquistei a aliteração. Andréia3 foi minha colega no ginásio, era assim chamada pelo seu número na chamada, porque só na minha sala tinham cinco Andréias, nome muito comum na época. Nas rodinhas que se formavam no pátio do colégio na hora do recreio, prestes a tocar o sinal para o retorno às salas, depois que algum palhaço de plantão soltava uma gracinha, ela de tanto rir ficava bamba e caia no chão. Ria até ficar frouxa e perder as articulações. Era um amor de Andréia a 3. Numa manhã ensolarada, ela riu tanto, que quando caiu no chão, não se segurou e fez xixi ali mesmo, formando uma poça amarelada no pátio cinza irregular. As gargalhadas fininhas se transformaram em choro convulsivo. Deu início a sua tragédia, de 3 ela passou a ser chamada Andréia Mijona. Não suportando esse bullying, ela teve que mudar de escola e nunca mais foi vista nem pelos que encontro ainda hoje. Na matemática do meu desejo, eu sempre quero mais um mais um mais um beijo. Sempre ali no meu caminho quero sentir todo seu carinho. E assim vou vivendo na natureza selvagem dessa paixão, que é o império da beleza. Há muito não tomava ônibus, nesse dia no final da tarde, resolvi tomar o assim chamado cipó, do Centro para a Serra. Tranquilo, segui bem acomodado numa cadeira ao lado do corredor com visão em tela cheia. Na Savassi entrou no ônibus minha antiga conhecida, a professora de português, Sandra benta. Ela usa os cabelos grisalhos amarrados pra traz, óculos fundo de garrafa e sabida por todos aprecia uma caninha. Fiquei assistindo de camarote ela com uma mochila enorme no ombro, as duas mãos ocupadas, uma com um sorvete de morango no copinho e a pazinha envelopada, e na outra uma casquinha com sorvete de manga, parada em frente da catraca e do trocador. O ônibus arrancou e ela só não caiu porque os de traz a seguraram. Era pouca mão para muita coisa. Surpreendentemente, ela ofereceu o do copinho ao trocador que com um sorriso recusou. Levantei-me e fui lá ajudar para que ela tivesse uma mão para pegar a carteira e pagar a passagem. Sentei e continuei assistindo seus malabarismos pra consegui tirar o dinheiro, pagar, se segurar e conseguir atravessar a roleta com a carteira cheia da grana perigosamente debaixo do braço, para finalmente sentar-se ao meu lado. Com humor reclamou um pouquinho de ter que dar aulas na periferia, sempre lembrando que lá é o lugar onde é completamente aceita e cuidada bem assim como é. O fato é que nas escolas particulares da zona sul que lecionara, seus tombos em sala de aula, por causa do remedinho que tomava, não foram vistos com bons olhos. Foi defenestrada. O Velho mundo, Europa e Estados Unidos estão completamente exauridos de temas, de força, de virilidade. O Brasil, apesar de tudo, é um país de alma extremamente livre. Ele conduz à criação, ele é conivente com os grandes estados da alma. (Tom Jobim, em entrevista a Clarice Lispector). Ela emperrou.
O COMEÇO
Líquido amniótico, senti bem na macarronada? Meu Cristo saúda o Cristo que há em ti. É o que mamãe me diz toda vez que ligo para ela, passei até a gostar dessa saudação. Só não posso rir, porque tomo uma carraspana, pelo meu riso que há de ser irônico, pensar num Cristo revolucionário, impossível, temos que ter respeito. Rosas mimosas são rosas de ti, rosas a me confundir. Rosas formosas são rosas de mim, rosas a me confundir. A voz humana. Ai como a música me emociona, assim observo a cidade do alto, quem é homem de si não sai. O gol do Cazares, neguinho equatoriano pelo Galo, redimiu a humanidade desse aninho reacionário de 16, a obra de arte salvou todos nós, assim considero. Finalmente. Tudo o que eu mais quero, nós dois sozinhos no nosso mundo único e encantado. Só você me amacia e umedece. Assim ela me disse. Sonho meu, quem me dera, quimera. A esperança não é nem realidade nem quimera. É como os caminhos da terra: na terra não havia caminhos; foram feitos pelo grande numero de passantes. Pra que cantar, porque razão? Enfim um harpejo que lindo. Quem pensava em desenganos se enganou de vez. Meu amigo Helinho Quirino, saudade do seu violão. Uma luz sonífera preenchia aquele ambiente que cheguei sem muita certeza de saber o que me fizera chegar, desconfiava, afinal sempre caminhei de maneira irracional, intuitiva. Nunca também, pensei que fosse melhor assim ou não, apenas é. Como sabes que a terra não é o inferno de um outro planeta? Pensou perguntando Aldos Huxley. Passei por alguns sicofantas sem nem me despentear, além do que já sou despenteado, não me penteio há anos. Essa experiência me causou uma nova reação para a inércia em que me encontrava, atravessar paredes foi o que decidi fazer. O fazer é melhor do que o não fazer. Diante da minha usual falta de iniciativa entre milhares de passantes e ou transeuntes, duas belas palavras, reconheci um casal de atores, o que me fez minutos depois de discordar do Ferreira Gular, ter assistido com prazer o Haroldo de campos & Júlio Bressane. O corpo é o responsável pela expressão artística, como descuidar-se do papel do ator, da máscara, da interpretação seja de onde ecoa? O canto nasceu dessa prosódia inacessível aos que ficam engavetando com etiquetas de valores objetivos, isso é aquilo e aquilo é isso, de que valem comparações? Invenção, subversão, subvenção. Ela disse num tom áspero: mesmo que os romances sejam falsos como o nosso? Você acha mesmo que essa música tem a ver comigo? Well é bom saber, antes tarde do que nunca. Está mesmo falando grego com minha imaginação? Ele disse estupefato com a inferência pessoal e imediata que ela fez no amor dos dois: de jeito algum! Deixa de ilações realistas, era uma broma. Quando compus essa canção não pensei em mim nem em você, só na melodia e nas palavras. Não a fiz sobre você, a fiz para você e só te mostrei porque é bela. Pra mim é a beleza como a chuva criadeira que cai lá fora. Aqui dentro só cresce a saudade que sinto de você. Ela nada respondeu. Você nasceu pra mim, me leve até o fim. Essas mulheres cubanas... Você olha dentro de seus olhos pretos e vê que elas têm uma luz do sol quente dentro deles. Enquanto escrevo esses diálogos para o filme As Banhistas o arrastado e barulhento Dezembro começa a demonstrar que já poderia ter acabado com a aproximação de mais um enfadonho Natal. A atriz vem descendo a Rua dos Caetés em meio a uma multidão de consumidores em busca de promoções. Chove fininho, mesmo usando uma sombrinha, seus pés já estão inteiramente molhados e gelados. Também pra que usar sandálias de salto alto em um dia chuvoso? Fecha a sombrinha embaixo da marquise, entra num prédio antigo toma o elevador pantográfico sem ascensorista e sobe sozinha. Em que será que ela pensa durante toda a subida com os olhos perturbadoramente fixos no teto? Orgasmo nas artes, congraçamento harmonioso das sensações... Ah meu deus! Tanta coisa para não fazer hoje! Vaticinou alguém que me esqueci. Ela é vulcânica cheia de erupções caudalosas e imprevistas. Que coisa meu, diria o paulista. Naquela altura a polifonia que já era intensa tecendo um fio como Ariadne, se fez luminosa como um brilhante. O que eu poso dizer a você, bonita? Que palavras mágicas a capturariam? O que você quer me perguntar, bonita? Eu serei qualquer coisa que você disser! Bonita!
SOPRO BRISA E FURACÃO
Finalmente uma grande noite aberta, com nuvens improváveis. Borges disse o seguinte: a cópula e os espelhos são abomináveis. Explico: eles multiplicam e divulgam os seres humanos. Minha tentativa aqui é elucubrar sobre seres imprescindíveis: os filósofos da Serra. Começo pelo Biro-Biro, o apontador do bicho, que com a longa barba branca e cabelos também brancos, puxados para trás amarrados num pequeno rabinho, faz lembrar imediatamente do Sócrates. Ainda cumpre diariamente sua rota caminhando por todo bairro, com sua indefectível pastinha preta, com paradinhas rápidas em diversos pontos, onde profere suas palestras. Seus apontamentos prediletos são: biografias dos chamados Serraqueos, mais antigos e recentes, mulheres de todo mundo e as frutas, das quais conhece diversas espécies, com domínio de uma prosódia saborosíssima. Fala sempre com um leve sorriso no canto da boca, aparentando uma simpatia que se desfaz de maneira bastante abrupta ao ser questionado, invariavelmente muda a expressão e diz ao ouvinte do momento: era só isto que eu queria lhe dizer. Continua seu caminho sempre no mesmo ritmo. Um perfeito peripatético. Sou agora no mar desta vida um barco a vagar, onde está teu olhar, onde está teu sorriso e aquele lugar. Rimar com ar não dá. O Guará dizia: Freud morreu, Jesus morreu, Rosselini morreu, Glauber morreu, Marx morreu, Pasolini morreu, Saraceni morreu, Vadinho morreu, Soraya morreu, Buñuel morreu, Leila morreu, Ricardo morreu, Rogério morreu, Ronaldo morreu, Éolo morreu, Tom morreu, Fernando morreu, Pancho morreu e tantos outros como o próprio Guará que terminava essa ladainha assim: e eu não ando me sentindo muito bem. Também tenho morrido durante todo esse ano interminável, ao que parece tenho retornado só com alguns pequenos desconfortos, mas é só, tudo como dantes no quartel de Abrantes. Ou seja, sempre só. Dizem também que a vida é uma só, não concordo, tenho certeza que já vivi várias vidas nessa minha vidinha e sinto que tenho várias outras por vir. Ao mesmo tempo é triste e a alegria é a prova dos nove. Valha-me Deus, Ave Maria Nossa Senhora, sem me esquecer dos Eguns. Gosto quando escrevo assim sem titubear, também não devo satisfação a ninguém, que beleza! Mais uma mentirinha é claro, nunca tive que dar tantas satisfações, especialmente para a mamãe e para as minhas gengivas. Perdi outro poema que escrevi pra ela, a verdade é que detesto escrever poemas. Ando me sentindo meio bloqueado, olho e não vejo nada, tudo que queria era tocar piano, nem sinto meus pés no chão. Estou andando pelo calçadão da Atlântica, ali pelo posto cinco, e revejo a construção, até certo ponto arquitetonicamente ousada, futuro MIS, parada já há alguns anos. Lembro- me da extinta boate Help, exatamente ali localizada. Em frente à porta principal, no final do longo toldo vermelho, em um pedestal prateado, ficava um sino dourado e pontualmente à meia noite, algum dos cafetões de terno no plantão, tocava treze badaladas, em seguida uma horda de mulheres de salto alto se encaminhava para o interior do recinto. Estudiosos consideravam que todas as sociedades haviam evoluído a partir dessa horda. Para os antigos eram as mulheres da vida, hoje comumente são tratadas como garotas e senhoras de programa. Belo título seria: Mulheres da Vida. Na sequência em profusão adentraram no local, turistas de toda ordem e categorias. Era o tipo do ambiente que você deveria pagar para entrar e rezar para sair. Deu uma hora, deu duas horas, o silêncio no meu quarto é pavoroso. Na escuridão eu escuto seus passos, no meu delírio, ela volta aos meus braços. Ela abalou meu sistema nervoso. Ela toda noite aparece me beija e some através da vidraça, no meu delírio, eu me levanto abro a janela e só o vento, o vento frio é que me abraça. Doutor Sette revelou esta letra do Wilson Baptista para o Otávio Terceiro cantar no Quebranto. O Feijão veio descendo a Rua Palmira, vestido numa roupa social preta, debaixo de um leve sereno, carregando uma gaiola de madeira muito bem desenhada. Lá dentro, um Canário belga Pastinha, cantando campainha. Um topete preto se derramava em cima de seu biquinho. Feijão informou-me que nunca havia deixado aparar seu topete, pois isso poderia mudar a ordem natural das coisas. Disse-me que estava indo a Igreja Jesus Cristo dos Últimos Dias, para dar o pastinha de presente ao Padre Mascavo, que também era cantor, e o tinha ajudado muito com conselhos quando sua vida estava perdida no álcool e nas drogas. Já o Pancho Vila era como uma das enciclopédias do Rock da Serra e entorno, junto ao Kacowicz e o Falabela. Invariavelmente carregando uma sacola de feira listrada, como o grande Paula Lima, aparecia em todos os bares , em horários e dias variados. Sorria sempre com a cara rosada e bonachona. Prestativo disposto a resolver seu problema da hora, fosse do tipo que fosse. Bom amigo, também podia ser capaz de enormes grosserias, especialmente quando tomava whisky. Cumpria expediente à tarde na creche das Rosinhas, no alto da Rua Pouso Alto. Andava a pé, seu corpanzil foi tomando enormes proporções de forma que sua locomoção pelos morros do bairro foi ficando impraticável. A chamada obesidade mórbida. Depois de uma estadia no estaleiro, no mesmo período que o Eninho, grande amigo seu, finalmente conseguiu sua tão batalhada aposentadoria, muito antes dos sessenta anos. Nos três dias seguintes apareceu na hora do almoço no também extinto Bar da Tia, andando com muita dificuldade, puxando as calças, já que o cinto estava por um triz. Sentava e de dentro da sacola de feira tirava um saco plástico transparente, cheia de fotos de toda sua vida, de neném até aquele momento, de magro a obeso. Pegava um bolo e contava uma a uma o momento quando a foto aconteceu e quem eram os personagens ali retratados junto com ele. Almoçava, tomava uma coca- cola, e dizia que no dia seguinte mostraria novas recordações. Saïa bufando, tomava o ônibus amarelinho, que o deixava lá no alto bem perto da faixa de gaza, onde morava. No quarto dia não foi almoçar, já tinha partido para outra estação. Muito lembrado deixou saudades. A verdade não há. Assim se explica a grande fúria do mundo. Parece verdade o que acontece para nunca mais e sempre, enquanto a vida desatina. Quando num raro encontro, outro corpo, se conforma, engancha de maneira mental, sideral, transcendente e evolutivo, a expressão artística se vinga da civilização incongruente, como fosse um cataclismo. Jamais sejamos pusilânimes, ensinou meu avô. Quem semeia vento, diz a razão, colhe sempre tempestade. O Eleusis foi quem cantou o título desse texto canhestro, dos filósofos que refiro é o mais teórico de todos. Nos seus quase dois metros de altura, possui uma elegância ao se mover incomum aos grandalhões. Claramente da raça negra é de origem grega. Não se admite intelectual embora o seja muito mais do que os que se dizem na oportunidade. Tem métodos para tudo, quando você chega, ele já está no melhor canto, com o jornal aberto, para não ser incomodado por quem não quer. Mesmo estando bebendo com ele, não pode servi-lo, pois ele tem que se servir a meio copo, gira-lo em frente aos olhos até a cerveja esquentar e só assim beber. Só bebe cerveja, vez por outra pede um dedo da caninha, não mais que um dedo. Está ficando cada vez mais surdo, ainda assim, prefere sempre os pontos com muita gente e música, ou seja, gosta dos ruídos. Mestre na tática dos jogos de futebol, defensor do craque a todo custo em detrimento do resultado, fala das suas questões interiores, claro que só para um seleto grupo, como se fosse o único assunto que perturbasse o mundo. Fósforos e isqueiros não são com ele, escreve um romance mental há anos em homenagem ao seu pai e a sua mãe cantora, e nunca coloca no papel. Proclama a todos pulmões de forma macia que nunca vai se render aos computadores. Nunca vi outro surdo que fala baixo, só ele. É comum se ouvir ecoar pelas esquinas daquelas paragens o refrão: leva eu Leleu, Leleu leva eu! A rechonchuda Gal, o Sérgio e o Gê que o digam. Hoje é segunda sem lei com chorinho no bar das três portas, parou de chover, sem chapéu de palha eu vou, vou só, mas eu vou.DE NOVO NA MAIS PERFEITA CONFUSÃOFoi roubado o trombone de vara do Laércio, segundo me disse nosso querido amigo Lázaro, o negão, logo ali na mesma ambiência onde sempre nos encontrávamos. Assim começou mais uma profusão de sonhos. Vão-se os anéis ficam os dedos, era essa a expressão que sempre ouvi quando jovem. Na mesa do Lucas, com as garrafas por cima da cabeça, vi mais uma vez a mesma cena que eu mesmo escrevi e confesso que deu certa preguiça. Retrato do artista quando jovem cão. Dylan Thomas, este era o nome do poeta, que fora até então esquecido, embora sempre lembrado. A essa altura do final do ano 16, foi difícil de lembrar. Deveria ser fácil. Como o calor era tamanho, a pergunta que não quer calar seria como lembrarmo-nos do esquecido inesquecível? Mais uma vez não sei o porquê do plural. O difícil é uma de mão de não lembrar. Ainda assim temos a memoria seletiva. Vamos para a obra. Obra na boca e na cozinha. Amor humor, humor amor, pecúnia volat. No outro sonho eu andava no túnel em direção a Urca, seguia uma mulher muito morena de vestido alvinegro, que mesmo de costas pra mim, olhava-me constantemente com os olhos puxados brilhantes, como sempre, eu me equilibrava no beiral e logo em baixo os carros passavam em alta velocidade, por vezes buzinando. Ela me chamava e eu sabia que tinha que ir, ao mesmo tempo não conseguia. Embora andasse esse movimento nunca chegava ao fim. Depois ela mesma sonhava com a outra, se estrangulava e revirava os olhinhos. O trenzinho elétrico de faróis altos atravessava a mulher nua de quatro. Era a Sheila jogadora de vôlei, com dentes muito bem tratados. De novo vejo aquela atriz numa expressão extraordinária, se exibindo nua de sapatos prata de salto muito alto, jogando moedas no chapéu do ceguinho que estava sentado na poltrona do estúdio. Os sapatos dela emitiam sons. Depois de mais este sonho, já que não bebo mais, fui ao Clube de Quem Bebe para comer um espaguete com fungui e beber uma agua tônica com gelo e limão diet. Consegui dormir de novo, já que não dormia há anos a partir desse jantar light. Pensei até em me manter assim, mas estava no meu inferno astral. Ruas escuras iluminadas por lampiões a gás, folhas de cores mutantes, do verde queimado ao rosa pink, lançadas ao vento tosco gelado. Na sequência da outra noite, eu estava num sonho nadando no mar de Ipanema acompanhado por dois golfinhos, um deles me dizia com voz de mulher por onde deveria seguir meu nado perfeito de peixe para escapar dos corais e das pedras da baía, subitamente eu mergulhei bem fundo, agora estava em frente a um balcão da policia federal de algum aeroporto, não me sentia muito confortável, parecia que eu tinha algo a esconder, é claro. Ao meu lado estava uma mulher muito alta preenchendo um formulário não sei do quê, ela me olhou com olhar maroto, continuou escrevendo e começou a esfregar levemente suas ancas largas em mim, do outro lado do balcão os policiais pareciam perceber o movimento, mas não alteravam seus procedimentos. Amo o plano sequência. O esforço é divino e o resultado é humano. Vejo a ex-modelo da Neneca Moreira em Nova York tomando uma taça de absinto, na sua mesa estavam esparramadas sobre a toalha branca rendada, florezinhas rosinhas lindas com seus caules verdinhos. Ela me diz que são flores de Jagube que nasce no cipó de ayahuasca. Uma composição extremamente harmônica, nem sei ao certo se fora um sonho, ou se aconteceu de fato. Sonhos podem ser fatos. Adro é o pátio da igreja antes da porta principal. Atravessada esta porta temos o Átrio que significa a passagem do profano para o sagrado, quando entramos, acho para a saída o significado é o contrário, há controvérsias. Barravento. Assim me foi descrito. Logo ali no terreiro de Mãe Maria Paulina de Oxóssi, o Glauber bradou olhando pra mim: criminalidade total! Ao lado a campânula cristalina mineira guardava o David Neves e o Joaquim Pedro, que nada diziam. Inquietou-me profundamente a aparição de outros dois personagens que não revelarei quem eram para evitar susceptibilidades. Continuei naquele labirinto de pedra até acordar sufocado sem saber onde estava. Na vitrine da red light o Messias falou num tom áspero para o Adelmo: você estava na boca de tarde da Rua Bandonion! Assim respondeu o Adelmo: O quê? Eu não! Nunca fui à boca de tarde, e se fosse não foi às suas custas! Vejo a Tamira chegando linda de vestido decotado azul para assistir ao filme. Foi só agir pelo coração, aqui estou duro de novo, repetiu Gilberto de Abreu. Não sei por que me encantei por esse poeminha rimado do poeta de rua Rodrigo D’Ávila: quando a borboleta voa à toa descobre o jardim espanta a dor/ quando a borboleta repousa há flor é cor/quando a borboleta pousa ponto há amor é verde verdor. Voltei a ser um adolescente púbere.SAUDADE DÓIA alegria é a prova dos nove, não é isto? A tristeza também acontece e quando vem é avassaladora, especialmente quando a abertura para existir, nasce do seu próprio erro. Talvez um erro premeditado, inconsequente, grave e necessário. A contribuição milionária de todos os erros, enfim todo errado como disse o Jorge Mautner um dos parceiros dos meus parceiros, antes do caos. As paredes já foram derrubadas, a mala estava pronta, digo a minha, a vida pode ser mais bela, e do medo que faremos? Tenho uma casa para ela a poesia, que é a primeira, a ideal, a única. Nada, viver é a solução. E viver envolve muita coisa, umas simples e outras mais complicadas. Mas vale a pena viver a leveza. O amor é o mais importante e raro, das lágrimas é claro, todas elas as lágrimas devem ser respeitadas. Esse foi o Nelson Cavaquinho. E quem sou eu sem dinheiro, querendo o que ela, a única, quer comigo juntos no grau. Tive o tempo da maturação, agora fiquei rico do conhecimento que já conhecia, e sei que não é tarde para te dizer o que te digo, te quero comigo e para mim oh poesia, teu leve perfume íntimo é meu. Trago-te com confiança num enlace dentro das rimas intermináveis da pureza.AS SOBRANCELHAS DA THAIZAs três graças de branco abaixaram a cadeira de dentista e a puseram na posição horizontal, onde eu estava sentado, assim ficando deitado. Puxaram o braço móvel e acenderam o refletor em cima dos meus olhos, em seguida mandaram que eu abrisse a boca. Pedi meus óculos escuros. Delicadas e certeiras, uma por vez, bateram e sacudiram meus dentes podres. Perguntavam o que eu estava sentindo, como minha boca estava aberta eu só conseguia ruminar como resposta: hum hum e ham ham, as belas continuaram seus afazeres sem dó nem pena. Nem ligavam para o que eu tentava dizer, continuavam falando juntas entre si em grande estilo. A excitação foi crescendo. E eu então que sou tão só, deixo a canção ao meu redor. Na terceira sessão com as três: Walquíria, Bárbara e Thaiz, cada uma na sua especialidade dental, fizeram-me crer que passados mais de vinte anos do diagnóstico da minha doença periodontal, era chegada a hora da atitude, ou seja, extrações e depois a raspagem da gengiva. Repartir a viagem sob o sol. Por livre e espontânea pressão, topei. Todas muito cheirosas depois da malhação, vestidas de branco, abaixavam a máscara cirúrgica e repicavam, o quanto eu tinha falhado em maus tratos de higiene e cuidados básicos, não sabia nem mais pra onde olhava. Passaram-me uma carraspana brava, merecida, é bom que se diga. Se ela deixar, que a leve em casa ao anoitecer. Será tão bom. Parei até de sonhar. Tua sombra a se multiplicar. Como não tinha mais casa, sofri pelas ruas. Quanta cachaça na minha dor, dizia o Tom. No dia D, me apresentei na hora marcada, os cinco restantes do lado direito iam cair, de acordo com o planejamento delas. E na sequência cinco do lado esquerdo, ainda ficando três, para análise. Muito bonito, à partir dos caninos, eu não teria mais nada, deveria até perder uma das minhas perversões: a licantropia. Assim aconteceu, o ato foi consumado. Depois de tiradas as luvas, de mãos de manicure, eu com um saco de gelo na bochecha, ouvi e vi recomendações com dedo em riste de unha vermelha sangue, sobre o meu comportamento no pós- operatório. Todas as frases que eram faça isto e não faça aquilo foram finalizadas por uma interrogação depois da palavra mágica conhecida como ok? Parece que nasci pra isto: ser esculhambado por elas, as dentistas da minha vida, no caso cada vez mais. Realmente me deu uma grande gastura, o que sinto também não importa. Sem dor física nem questões mais graves de ordem estética, instalou-se em mim um vazio existencial que nunca tinha sentido. Na alma dessa mulher, atrás da voz do cantor. Aumentou minha confusão mental, que a essa altura parecia irremediável. Fui ao edifício Skyline, buscar não conto o quê, para ajudar na interpretação das estrelas, que era minha missão da noite. O trans- arquiteto João Diniz ponderou: cada bar um barco. Desisti de ir a Trieste por causa do estado de exceção que vivemos. O Bigode tinha me contado que Trieste que fica perto de Veneza, é uma cidade muito curiosa, cheia de escadarias com corrimãos para você se segurar, pois vez por outra sopra um vento chamado Bora, que pode te levar embora para algum lugar desconhecido. Não deu. Eu entendo a juventude transviada e o auxílio luxuoso de um pandeiro. No ceú a lua estava reluzente, quase cheia, quando o ventinho gelado fundiu o amor com o affaire. Bela chuvinha com dor de gengiva. Trancinhas de amor com meinhas arrastão pretas brilhantes. Uma verdadeira erupção caudalosa. Mucosas em frêmito. Na noite de domingo consegui escapar das batatas fritas, graças o elevador emperrado fora dos trilhos no sofá de almofadas já mortas com ripas quebradas. Mamãe caiu de novo. O guardião do tempo da rua Rio Grande do Norte dormia muito bem posicionado em baixo da marquise do Gran Royal Hotel, se via que o sono era profundo, logo ao lado do Le Flamboyant onde eu me escondia graças ao Fernando Bexiguinha. Ganhei diretamente da Nicarágua uma linda latinha verde água de Natural American Spirit com quatro cigarrinhos de cereja comprados picados, como se diz em bom mineiro. Nem sei se já escrevi isso, mas se já escrevi, escrevo de novo: triste estava e mais triste fiquei lembrando do extraordinário livro de contos escrito pelo meu doce mestre João Etienne filho chamado Os Tristes. Voei imediatamente para Nova Yorque, o voo voou cintilante. Lá chegando fui direto a off off Brodway, assistir ao power trio formado pelo meu maestro Big Charles na bateria, Charles Mingus no contra baixo acústico e o Alephy Baudelaire no piano de calda com direito a uma canja da belíssima crooner negra Vênus Serenna. Todo mundo a conhecia e desejava. Ninguém precisa de mais nada pra viver, além de que o Galo ganhe. É perigoso seu sorriso, é um sorriso assim jocoso, impreciso, diria misterioso, indecifrável, riso de mulher. Na entrada do teatrinho, já na little Italy, encontro minha amiguinha russa Jadiuska, gorducha e simpática como sempre, fomos descendo para encontrar nossa fila na plateia junto com seu namorado. Na sétima que era a nossa, entramos, quando percebi que logo eu que entrei na frente tinha errado meu lugar que era do outro lado. Tive que voltar. As distancias entre as cadeiras eram mínimas, então tentei passar minhas pernas sobre Jadiuska que já estava sentada, no seu maravilhoso vestido preto com brilhos de lantejoulas, me segurou pela cintura para me ajudar na façanha da travessia. Só consegui passar a perna direita e fiquei por alguns segundos confortavelmente sentado em seu colo macio e quente. Queria poder não me levantar mais dali. Rimos gostosamente durante esse curto período sob o olhar desconfiado do seu namorado de bigodes brancos. Nesse plano reencontrei aquela manhã chamada felicidade. Voltei a sonhar.
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