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domingo, 8 de janeiro de 2017

FABIO CARVALHO - TEXTOS

                                         AS BANHISTAS



Neuzinha Chorona era a personagem que o Dr. Peters me descreveu do outro lado do balcão, naquela Segunda sem lei depois do natal. Nestes dias em que me lembrava de tudo, sentado em frente ao computador, fechava os olhos e sonhava, foi assim repetidas vezes, outro cochilo outro sonho, parecia que estava numa poltrona de avião. Segundo o Dr. Peters, que é um senhor grisalho de setenta e sete anos, a Neuzinha era a irmã de um amigo seu da juventude, muito bonita, rasgava os corações de todos por onde passava. Ela escreveu em bom português: estou a tentar a paz! Como o apelido entrega, Neuzinha tinha uma personalidade curiosa. Querida por todos, quando alguém lhe fazia um elogio, tipo: Neuzinha você está muito bonita, ela invariavelmente respondia: ah, tô muito bonita... neste momento sua boca começava a tremer e se debulhava em lagrimas, até fechar o chorador sorrindo, extasiada. Qualquer coisa que lhe dissessem o efeito era mesmo: Neuzinha hoje tá muito quente. Ela: ...é tá muito quente. Seus olhos castanhos vertiam cachoeiras cintilantes e seus canais lacrimosos se lubrificavam. Por onde andará Neuzinha Chorona? Nem o Dr. Peters sabe.  Também muito bonita era a que chamávamos de Dama das Camélias, não me lembro do seu nome mais. Essa era filha única e adorava receber nossa turminha na parte da tarde, quando seus pais não estavam, para comermos bolo, brigadeiro ou pipoca, vermos a única televisão colorida do pedaço e queimarmos unzinho, que ela roubava na gaveta do criado mudo da mãe, que mantinha um estoque de reserva.  Enquanto todos falavam sem parar, ela permanecia sempre calada e com olhar distante. Em algum momento da resenha ela punha as costas da mão na testa e falava com voz mansa: vou desmaiar. Desfalecia lentamente no colo de alguém ou em uma superfície macia. Assim ganhava a atenção de todos por alguns segundos, se restabelecia, ia ao banheiro e voltava para a roda na sua condição de coadjuvante. A sorrir você me apareceu e as flores que você me deu, guardei no cofre da recordação. Porém, depois que você partiu pra muito longe e não voltou a saudade que ficou não quis abandonar meu coração. A Calopsita Cara Branca, que assobiava o hino do Galo, morreu feito um passarinho, amanheceu durinha com os pezinhos pra cima, no canto da bandeja embaixo do poleiro onde morava nos fundos da casa dos árabes na Rua Amapá.  Você tem que ter a imaginação paisagística e monumental para passar no texto a devoção a cruz. Esqueci onde coletei essa fala, ainda assim a coloquei aqui. Observei em panorâmica um jovem casal atravessando as duas esquinas do largo da Rua do Ouro. Ela com cara de choro e ele num tom meio irritado falavam bem alto: é medo, medo! Ela dizia e ele retrucava: que medo, qual o risco que você corre? Ela respondeu gesticulando: medo, medo! Biro-Biro, como bom apontador do bicho, acertou na mosca aplicando os senhores aposentados da esquina de cima. Meu coração por ti bate igual a um caroço de abacate. Estase total. Diálogos transcendentais sobre linhas douradas entre palavras que ainda não foram ditas. A porta secreta no fim do corredor estava aberta, não totalmente aberta, estava entreaberta, então entrei. Rápido, o raio risca o céu e ribomba. Enfim, conquistei a aliteração. Andréia3 foi minha colega no ginásio, era assim chamada pelo seu número na chamada, porque só na minha sala tinham cinco Andréias, nome muito comum na época. Nas rodinhas que se formavam no pátio do colégio na hora do recreio, prestes a tocar o sinal para o retorno às salas, depois que algum palhaço de plantão soltava uma gracinha, ela de tanto rir ficava bamba e caia no chão. Ria até ficar frouxa e perder as articulações. Era um amor de Andréia a 3. Numa manhã ensolarada, ela riu tanto, que quando caiu no chão, não se segurou e fez xixi ali mesmo, formando uma poça amarelada no pátio cinza irregular. As gargalhadas fininhas se transformaram em choro convulsivo.  Deu início a sua tragédia, de 3 ela passou a ser chamada Andréia Mijona.  Não suportando esse bullying, ela teve que mudar de escola e nunca mais foi vista nem pelos que encontro ainda hoje. Na matemática do meu desejo, eu sempre quero mais um mais um mais um beijo. Sempre ali no meu caminho quero sentir todo seu carinho. E assim vou vivendo na natureza selvagem dessa paixão, que é o império da beleza. Há muito não tomava ônibus, nesse dia no final da tarde, resolvi tomar o assim chamado cipó, do Centro para a Serra. Tranquilo, segui bem acomodado numa cadeira ao lado do corredor com visão em tela cheia. Na Savassi entrou no ônibus minha antiga conhecida, a professora de português, Sandra benta. Ela usa os cabelos grisalhos amarrados pra traz, óculos fundo de garrafa e sabida por todos aprecia uma caninha.  Fiquei assistindo de camarote ela com uma mochila enorme no ombro, as duas mãos ocupadas, uma com um sorvete de morango no copinho e a pazinha envelopada, e na outra uma casquinha com sorvete de manga, parada em frente da catraca e do trocador. O ônibus arrancou e ela só não caiu porque os de traz a seguraram. Era pouca mão para muita coisa. Surpreendentemente, ela ofereceu o do copinho ao trocador que com um sorriso recusou.  Levantei-me e fui lá ajudar para que ela tivesse uma mão para pegar a carteira e pagar a passagem. Sentei e continuei assistindo seus malabarismos pra consegui tirar o dinheiro, pagar, se segurar e conseguir atravessar a roleta com a carteira cheia da grana perigosamente debaixo do braço, para finalmente sentar-se ao meu lado. Com humor reclamou um pouquinho de ter que dar aulas na periferia, sempre lembrando que lá é o lugar onde é completamente aceita e cuidada bem assim como é. O fato é que nas escolas particulares da zona sul que lecionara, seus tombos em sala de aula, por causa do remedinho que tomava, não foram vistos com bons olhos. Foi defenestrada.  O Velho mundo, Europa e Estados Unidos estão completamente exauridos de temas, de força, de virilidade. O Brasil, apesar de tudo, é um país de alma extremamente livre. Ele conduz à criação, ele é conivente com os grandes estados da alma. (Tom Jobim, em entrevista a Clarice Lispector). Ela emperrou.


O COMEÇO



Líquido amniótico, senti bem na macarronada? Meu Cristo saúda o Cristo que há em ti. É o que mamãe me diz toda vez que ligo para ela, passei até a gostar dessa saudação. Só não posso rir, porque tomo uma carraspana, pelo meu riso que há de ser irônico, pensar num Cristo revolucionário, impossível, temos que ter respeito. Rosas mimosas são rosas de ti, rosas a me confundir. Rosas formosas são rosas de mim, rosas a me confundir.  A voz humana. Ai como a música me emociona, assim observo a cidade do alto, quem é homem de si não sai. O gol do Cazares, neguinho equatoriano pelo Galo, redimiu a humanidade desse aninho reacionário de 16, a obra de arte salvou todos nós, assim considero. Finalmente. Tudo o que eu mais quero, nós dois sozinhos no nosso mundo único e encantado. Só você me amacia e umedece. Assim ela me disse. Sonho meu, quem me dera, quimera. A esperança não é nem realidade nem quimera. É como os caminhos da terra: na terra não havia caminhos; foram feitos pelo grande numero de passantes. Pra que cantar, porque razão? Enfim um harpejo que lindo. Quem pensava em desenganos se enganou de vez. Meu amigo Helinho Quirino, saudade do seu violão. Uma luz sonífera preenchia aquele ambiente que cheguei sem muita certeza de saber o que me fizera chegar, desconfiava, afinal sempre caminhei de maneira irracional, intuitiva. Nunca também, pensei que fosse melhor assim ou não, apenas é. Como sabes que a terra não é o inferno de um outro planeta? Pensou perguntando Aldos Huxley. Passei por alguns sicofantas sem nem me despentear, além do que já sou despenteado, não me penteio há anos. Essa experiência me causou uma nova reação para a inércia em que me encontrava, atravessar paredes foi o que decidi fazer. O fazer é melhor do que o não fazer. Diante da minha usual falta de iniciativa entre milhares de passantes e ou transeuntes, duas belas palavras, reconheci um casal de atores, o que me fez minutos depois de discordar do Ferreira Gular, ter assistido com prazer o Haroldo de campos & Júlio Bressane. O corpo é o responsável pela expressão artística, como descuidar-se do papel do ator, da máscara, da interpretação seja de onde ecoa? O canto nasceu dessa prosódia inacessível aos que ficam engavetando com etiquetas de valores objetivos, isso é aquilo e aquilo é isso, de que valem comparações? Invenção, subversão, subvenção. Ela disse num tom áspero: mesmo que os romances sejam falsos como o nosso? Você acha mesmo que essa música tem a ver comigo? Well é bom saber, antes tarde do que nunca. Está mesmo falando grego com minha imaginação? Ele disse estupefato com a inferência pessoal e imediata que ela fez no amor dos dois: de jeito algum! Deixa de ilações realistas, era uma broma. Quando compus essa canção não pensei em mim nem em você, só na melodia e nas palavras. Não a fiz sobre você, a fiz para você e só te mostrei porque é bela. Pra mim é a beleza como a chuva criadeira que cai lá fora. Aqui dentro só cresce a saudade que sinto de você. Ela nada respondeu. Você nasceu pra mim, me leve até o fim. Essas mulheres cubanas... Você olha dentro de seus olhos pretos e vê que elas têm uma luz do sol quente dentro deles. Enquanto escrevo esses diálogos para o filme As Banhistas o arrastado e barulhento Dezembro começa a demonstrar que já poderia ter acabado com a aproximação de mais um enfadonho Natal. A atriz vem descendo a Rua dos Caetés em meio a uma multidão de consumidores em busca de promoções. Chove fininho, mesmo usando uma sombrinha, seus pés já estão inteiramente molhados e gelados. Também pra que usar sandálias de salto alto em um dia chuvoso?  Fecha a sombrinha embaixo da marquise, entra num prédio antigo toma o elevador pantográfico sem ascensorista e sobe sozinha.  Em que será que ela pensa durante toda a subida com os olhos perturbadoramente fixos no teto? Orgasmo nas artes, congraçamento harmonioso das sensações... Ah meu deus! Tanta coisa para não fazer hoje! Vaticinou alguém que me esqueci. Ela é vulcânica cheia de erupções caudalosas e imprevistas. Que coisa meu, diria o paulista. Naquela altura a polifonia que já era intensa tecendo um fio como Ariadne, se fez luminosa como um brilhante. O que eu poso dizer a você, bonita? Que palavras mágicas a capturariam? O que você quer me perguntar, bonita? Eu serei qualquer coisa que você disser! Bonita!


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