JAMAIS TE ESQUECEREI
Fábio Carvalho
Era o nome da cachaça
que na hora que fui pedir tinha esquecido, felizmente, Gabriela a filha ruiva
do João do bar, lembrou-me o título fatal: Jamais te esquecerei. Esqueci o
inesquecível. Outro dia, de repente entrou pela janela uma bruxa marrom e veio
ziguezagueando na direção do meu olho, tirei o olho fora num sobressalto,
levantei rapidamente da cadeira e peguei minha camisa que estava jogada no
sofá, ainda não tinha visto insetos naquelas alturas, até achava que não
chegariam até lá. Antes de acerta-la em cheio, quando deu bobeira na porta da
geladeira, errei três vezes a chicotada com a camisa enrolada. Fiquei meio
atordoado e enquanto me regozijava pelo feito, apareceu outra atrás de mim.
Imediatamente percebi a chegada de outra e mais outra. Fui até a janela zunindo
a camisa, e vi que vinham subindo pelo ar como se um aspirador acima de mim as
sugasse, várias delas. Um enxame de bruxas em ataque, o alvo era eu. Este tipo
de bruxa, ao invés de fugir quando atacada, parte para cima do agressor como
defesa, fico aqui imaginando. Sofri, mas mais uma vez consegui me safar. Matei
todas e fechei a janela durante toda aquela noite. Ufa. Achei que tinha
escapado. O privilégio do cinema, é permitir que um grande número de pessoas
sonhem o mesmo sonho juntas, e de nos apresentar a ilusão como se fosse pura
realidade. Isto é, em resumo, um admirável veículo para poesia. Meu filme não é
nada diferente de um strip-tease, gradualmente vou tirando a pele do meu corpo
para revelar minha alma nua. Para uma audiência bastante ansiosa por esta
verdade além da verdade que se tornará um dia o sinal de nossa época. Este é o
legado de um poeta para a mocidade na qual ele sempre encontrou apoio. Nuvens
no céu. Depois do Jean Cocteau, agora já sou eu novamente
falando. Como meu chapéu era incômodo mandei-o de volta a outra
dimensão, para qual eu poderia partir a qualquer minuto. Poetas sabem muitas
coisas temerosas. Mais rápido, a noite levanta gritando. Traga sua noite para a
luz do dia. Veremos quem dá as ordens e quem as executa. Noutro dia
lá de novo nas alturas, pela janela vi vários urubus voando de uma posição que
nunca tinha visto. Eles voavam abaixo de mim. Planavam. Fiquei horas nesta
observação pensando na elegância do Tom Jobim. Depois tirei um cochilo no sofá
e sonhei com uma mulher muito bonita com uma saia rodada de botinhas vermelhas
de salto em uma gangorra com o céu ao fundo, quando ela chegava à parte mais
alta do balanço abria as pernas para o infinito e sua saia descia, deixando ver
sua calcinha, bordada de cor de rosa. De tão esplendoroso esse sonho dura
eternamente. Emocionei-me profundamente revendo depois de anos ao fabuloso
Dersu Uzala. Que filme magnífico. Começo a pensar de novo sobre cinema sem
conseguir escapar. Fazer cinema te traz enormes problemas, enquanto
ver cinema só te traz soluções. O grande paradoxo. Que desejo maluco seria
esse, que te faz mover mundos e fundos para fazer um filme, se pela maioria das
vezes nem exibi-lo você consegue? Eis a questão. Sempre me ocupo em pensar como
fazer o filme, nunca em como não faze-lo, portando vamos em frente.
É a minha condição. Como em sonho, vou caminhando pelas ruas centrais da cidade
no meio da Cracolândia, divagando sem que ninguém me incomodasse, chego ao meu destino
as quinze para as duas da madrugada. Pode ser que tenham pensado que eu era um
deles, por isto escapei de mais este tortuoso passeio. Na verdade esta
caminhada noturna e essas divagações eram o escape momentâneo para o problemão
que me atormentava e que todos vocês conhecem muito bem: uma coisa chamada
dinheiro. E agora José? Dizem que dinheiro é solução, o problema é sua falta.
Indubitável. Cheguei até aqui vivendo esse lado financeiro de maneira bastante
destrambelhada, e porque não dizer muito arriscada. Ciclicamente à beira do
precipício sempre acontecia um milagre para me salvar. Todo escrito é político.
A transformação é o trabalho, mas não é só isso. Naquele dia depois de uma
melancólica chuva com sol, vi do meu novo ponto de vista, um Arco-Íris com sua
curvatura total, de um lado ao outro, coisa que nunca tinha visto. Ao narrar
este acontecimento para alguns amigos na Cantina do Lucas, fui questionado
sobre o meu oficio por não ter filmado e registrado de qualquer maneira tal
visão. Confesso que apesar de ter ali o meio de registro à minha disposição,
esse ato nem me passou pela cabeça, preferi imprimir na retina. Ainda tenho que
confessar que me arrependo de não ter feito essa imagem. Mas para a execução o
instinto animal deve estar mais aflorado do que o intelectual, o que não
acontecia naquele momento. O que se apresentava era superfície enquanto
procurava o sensorial de dentro para fora. Elucubrações de forma anti-natural.
Subitamente descobri que o andamento era esse mesmo, e a gata sempre tem razão.
O encontro é, sem dúvida, um tema constante da casualidade. As linhas de força
que emanam desse tema não são poucas e nenhuma arte as soube explorar tão bem
como o cinema. Assim escreveu o cineasta David Neves em um de seus textos que
tenho lido recorrentemente a fim de tentar alcançar uma sofisticação e uma
leveza de analise conjuntural sobre a relação discrepante entre o
fazer cinematográfico e a vida, que ainda não ousei compreender. Termino o
interminável, transcrevendo o trecho final da trova romântica chamada
Primaveris, escrita pelo Carlos de Alencar, meu avô. As rosas irão florir, da mesma forma o jasmim, teremos tempo pra rir. Nunca houve amor assim! Jamais iremos morrer, porque a morte traz a vida... Vivemos a renascer, O que mata é a despedida! Vamos dançar e cantar, neste dia ensolarado. Será inútil chorar,
pois nada será mudado...
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