— a Haroldo Eurico Browne de Campos (1929-2003), in memoriam —
A Viagem da Palavra
por Tempos e Espaços
por Claudio Daniel
Uma escritura entre machados de jade e leões microcéfalos, espiral inscrita em espirais, para o jogo de espelhos e pupila. A saga de Haroldo de Campos move-se como rapsódia de cantos ou círculo de mandalas, onde idéias e formas mesclam-se numa geografia de outras luas possíveis ou cifradas constelações verbais. Partindo da geometria estrutural de Mallarmé e da desarticulação semântica de cummings, que inseminaram a jornada concreta, o poeta erigiu, em seu fazer pós-utópico, inusitadas arquiteturas da palavra, que nos surpreendem pelo impacto de suas combinações cromáticas e musicais. Assimilando recursos e processos do engenho barroco, da imagética oriental e da lírica metafórica dos épicos gregos, entre outros pontos luminosos, o autor construiu um fabulário de imprevistas formas de narrativa poética. Cântico do presente, de uma época conflituosa e interrogante, sua obra nos seduz pela capacidade esfíngica de apresentar não respostas, mas desafios e mistérios, estimulando a aventura de novas aventuras verbais. Transcriador de obras como a Comédia de Dante, o Fausto de Goethe e a Ilíada de Homero, além dos mais inventivos autores da modernidade — Joyce, Pound, Maiakovski, Khlebnikov, entre outros —, Haroldo de Campos apresenta, no conjunto de sua criação, um diálogo vivo com a literatura de todos os tempos.
CD: A tese do fim do ciclo histórico do verso permanece válida, em sua opinião? É possível ainda a experimentação no campo verbal, ou o futuro aponta para o fim da poesia como arte da palavra, superada pelos novos meios eletrônicos?
Haroldo: Entendo — é isso que exponho no ensaio Da Morte do Verso à Constelação: o Poema Pós-Utópico (em O Arco-íris Branco, Imago, RJ) — que, com a crise simultânea das ideologias e das vanguardas, todo o radicalismo futurológico está já posto em questão. Estou com os que pensam que o processo da modernidade ainda não se concluiu: o que ocorre é a incidência epocal do momento pós-utópico, passando-se a encarar uma agoridade em poesia, onde os contributos do passado e as reconfigurações inventivas do presente de criação são urgidos a operar e co-operar num circuito recíproco. Quanto aos meios eletrônicos, podem trazer um novo e fecundo instrumental para a criação (como já o estão fazendo, veja o caso paradigmal de Augusto de Campos e as personalíssimas intervenções de Arnaldo Antunes). Sou, porém, dos que acreditam na sobrevivência e na pervivência do livro como objeto.
CD: Nesta época em que vigoram teses sobre o fim da história e das ideologias e o eclipse das vanguardas, qual é o sentido da idéia de invenção?
Haroldo: A idéia de invenção continua sempre vigente, mas em dialética permanente com a tradição. O poema pós-utópico nasce pontualmente nessa conjuntura dialetizada, onde são muitas as possibilidades combinatórias do passado de cultura com a agoridade, a presentidade, a imaginação criativa, a invenção.
CD: Como surgiu o projeto de fazer a tradução integral da Ilíada? O que este épico representa para a imaginação e o fazer poético contemporâneo?
Haroldo: O projeto de “trans-helenizar” a Ilíada homérica foi insuflado pelo constante entusiasmo de Ezra Pound e de James Joyce pelo rapsodo grego. Mas o foi também pela opinião de Auerbach, para quem as duas matrizes poéticas do Ocidente são a obra de Homero e a Bíblia hebraica. Um constante e atento instigador, durante o curso do trabalho (dez anos, como a Guerra de Tróia...) foi Trajano Vieira, jovem helenista , professor de grego da Unicamp e tradutor (excelente) do trágico clássico da Hélade. Por outro lado, eu retomo e atualizo radicalmente a lição de Odorico Mendes, virtual patriarca oitocentista da transcriação no Brasil. Recuperei Odorico, duramente rejeitado por Sílvio Romero, Antonio Candido e Wilson Martins em meu ensaio “Da criação como tradução e como crítica”, de 1962, publicado em Metalinguagem e Outras Metas (1992).
CD: Comente a evolução de sua pesquisa sobre os poemas bíblicos. Pretende publicar novas traduções nesse campo, após o Qohelet e o Bereshit?
Haroldo: Tenho pronto um novo livro de transcriações de textos bíblicos, reservado para a editora Perspectiva, a ser publicado ainda neste ano. Contém: o episódio de Adão e Eva (a segunda história da criação); o episódio da Torre de Babel e a íntegra do Cântico dos Cânticos (Shir Hashirim). Estou escrevendo um prólogo geral para o volume (breve) e alguns comentários sobre os capítulos II a VII do Cântico, pois só o capitulo I estava por mim traduzido quando o publiquei na Folha de S. Paulo. As duas outras partes do tríptico contido no livro já foram, também, publicadas na Folha.
CD: Escrito sobre Jade reúne traduções de poetas clássicos chineses; O Manto de Plumas recupera, em nosso idioma, a música poética do teatro nô. O diálogo permanente com a cultura oriental ainda estimula a sua criação?
Haroldo: Ainda, como sempre. Ambos esses livros estão há muito esgotados. Preparo uma nova edição de cada um deles, incluído, no primeiro, Mao Zedong, como poeta de estilo clássico; no segundo, material sobre a encenação de Hagoromo realizada e protagonizada por Alice K., dançarina, coreógrafa e atriz especializada em nô.
CD: Em A Maquina do Mundo Repensada (2000) há um discurso poético que navega por conceitos científicos e filosóficos sobre a origem do universo. Qual é a gênese desse livro? De onde vem seu interesse por cosmogonias?
Haroldo: Meu interesse é antigo. Está já em A Arte no Horizonte do Provável (1ª edição, Perspectiva, 1969) e na introdução que escrevi, sob forma de ensaio, para a Pequena Estética de Max Bense; mais recentemente, o estudo sobre ordem, caos e acaso que figura na ultima edição, ampliada, de Mallarmé (Perspectiva). Ademais, fui amigo pessoal do maior físico teórico brasileiro, Mário Schemberg, cuja casa freqüentei assiduamente. Minha amiga Guita Ginsburg foi assistente de Mário no Instituto de Física da USP. Tenho um filho, Ivan Pérsio, que é doutor em Química pelo Instituto de Química da USP e professor titular da UNIP; tenho também um sobrinho (Roland, filho de Augusto), que é professor de Física da Universidade de Brasília, especialista em cosmologia. Ambos esses dois rebentos da família Campos são muito interessados em humanidades (artes e literatura).
CD: Crisantempo (1998) é um livro multipolar, que reúne peças inspiradas por suas viagens a países como Japão, Israel, Estados Unidos e releituras de poetas de diferentes tempos e espaços. Esse diálogo criativo com outras culturas é uma resposta, no campo da poesia, à idéia de um mundo sem fronteiras?
Haroldo: Na Nota Prévia a meu livro A Operação do Texto (1976; a nota está datada de junho de 1975) eu já falava em tradução como “transculturação”, expandindo no tempo e projetando na história a idéia prático-teórica de “transcriação”. O conceito de “transculturação” foi usado, alguns anos depois, em âmbito literário-cultural pelo crítico uruguaio Angel Rama (Transculturación Narrativa en América Latina, 1983), embora entre nós ninguém tenha se preocupado em fazer essa ligação. (Rama, talvez não se saiba, fez uma versão hispânica de meu ensaio A Arte no Horizonte do Provável e publicou-a na revista venezuelana Poesía n. 19/20, Valencia, 1974.) Antes, bem antes de nós ambos, o conceito já havia sido elaborado e aplicado em âmbito antropológico pelo grande africanista cubano Fernando Ortiz (Los Bailes y el Teatro de los Negros en el Folclore de Cuba, 1951). Essa premissa, completada pela noção de Weltliteratur (literatura universal), que está em Goethe e está no Manifesto Comunista, de Marx e Engels, dá resposta a sua indagação sobre o ideal de um “mundo sem fronteiras”, onde, como queriam os autores do Manifesto, as literaturas regionais seriam superadas em prol da constituição de um patrimônio cultural comum, universal.
CD: O barroco está presente em sua escritura desde O Auto do Possesso (1950), mas é na prosa experimental de Galáxias (1984) que essa vertente se manifesta de modo mais nítido. Comente o processo de criação dessa obra.
Haroldo: Galáxias é o momento de plena afloração do barroco no meu processo textual, preparado por uma pré-história que se encontra em Ciropédia ou a Educação do Príncipe, Claustrofobia e num poema quase programático como Xadrez de Estrelas. De início (1963), pensei nesse meu texto longo como um ápice da prosa, dominado pela vontade épica, pela diegese. Verifiquei, porém, com o evoluir do projeto, que se tratava antes de uma vis epiphanica, de um poema longo imagético-visionário, percorrido por farrapos de narração. A descrição do meu processo de trabalho está em Dois Dedos de Prosa sobre uma Nova Prosa (revista Invenção n. 5), título que hoje eu retificaria, escrevendo Dois Dedos de Prosa sobre um Novo Poema.
CD: Mário Faustino estudou as possibilidades do poema longo moderno a partir da leitura dos Cantos de Ezra Pound e da Invenção de Orfeu de Jorge de Lima. Finismundo (1990) é uma investigação poética que caminha nesse sentido?
Haroldo: Finismundo (como Galáxias, porém num outro diapasão) vai, certamente, nesse sentido.
CD: Seus ensaios teóricos e traduções de autores como o cubano Lezama Lima exerceram forte influência sobre os estudos do neobarroco. A seu ver, qual é a informação nova que essa corrente literária traz para a poesia atual?
O neobarroco (incluídos sob essa denominação nomes como os dos cubanos Lezama Lima, Carpentier, Cabrera Infante, Sarduy e Kozer; dos brasileiros Guimarães Rosa, Jorge de Lima, Mário Faustino e Leminski; dos colombianos León de Greiff, poeta, e o Gabriel Garcia Marques de Cem Anos de Solidão; para sequer mencionar os aspectos barroquistas de Trilce, de Vallejo, Altazor, de Huidobro, En la Masmédula, de Girondo, Blanco, de Paz, Canto General, de Neruda e certos poemas conceptistas-combinatórios de João Cabral) é um fenômeno criativo de fundas implicações no passado e no presente da Ibero-América. Sua variante platina é o “neobarroso” de Néstor Perlongher, Arturo Carrera, Lamborghini e do uruguaio Roberto Echavarren. Também no argentino Saúl Yurkiévich, radicado há muitos anos na França (professor da Sorbonne, editor-testamenteiro de Cortázar, admirável ensaísta que se ocupa da “vanguardia”), se encontram — em sua poesia experimental — evidentes rasgos neobarroquistas.
CD: A Coleção Signos, que você dirige para a editora Perspectiva, tem publicado livros de vários poetas brasileiros mais recentes, como Frederico Barbosa, Arnaldo Antunes, Carlos Ávila, Antonio Risério e Régis Bonvicino. A seu ver, como esta a poesia brasileira atual?
Haroldo: Há bons nomes a considerar (para não mencionar figuras já em plena maturidade ou em sábia pós-maturidade, como Sebastião Uchoa Leite e o mineiro Affonso Ávila, este, ademais, um notável especialista do barroco). Horário Costa, já com 40 anos, é um de nossos melhores poetas-críticos. Há, ademais, um promissor grupo de mulheres em ascensão (Claudia Roquette-Pinto, Angela de Campos, Janice Caiafa, do Rio; Lenora de Barros, em São Paulo), precedido no tempo por Josely Vianna Baptista e Alice Ruiz (de Navalha na liga e Pelos pelos), e por essa admirável sobrevivente de tantas lutas culturais que é Laís Corrêa de Araújo. Uma poeta de qualidade quase ignorada no sul é Marize Castro, autora do surpreendente Marrons, Crepons, Batons. Mas há também uma forte equipe masculina: Frederico Barbosa, Carlos Ávila, Antonio Risério, por exemplo. Nela registro com prazer a sua presença (Claudio Daniel). É óbvio que não pretendo ser taxativo nesta minha simples enumeração exemplificativa. Não quero deixar de acrescentar a esse elenco o livro Baobá, de Letícia Volpi, com que você me presenteou, recomendando-o à minha apreciação. Reconheço — e gostaria de dizer-lhe — que a moça promete: “tiene el duende”, como diria García Lorca.
CD: Quais são os seus projetos atuais? Está trabalhando em um novo livro de poemas?
Haroldo: Sim. Organizo, com a assistência gráfica de minha mulher, Carmen, um novo livro de poemas. Como o fazia por superstição Júlio Cortázar, eu, embora não supersticioso, participo da idéia de que não se deve mencionar o título de livros in fieri.
Claudio Daniel publicado na revista et cetera, nº 1, Curitiba, 2003
A Viagem da Palavra
por Tempos e Espaços
por Claudio Daniel
Uma escritura entre machados de jade e leões microcéfalos, espiral inscrita em espirais, para o jogo de espelhos e pupila. A saga de Haroldo de Campos move-se como rapsódia de cantos ou círculo de mandalas, onde idéias e formas mesclam-se numa geografia de outras luas possíveis ou cifradas constelações verbais. Partindo da geometria estrutural de Mallarmé e da desarticulação semântica de cummings, que inseminaram a jornada concreta, o poeta erigiu, em seu fazer pós-utópico, inusitadas arquiteturas da palavra, que nos surpreendem pelo impacto de suas combinações cromáticas e musicais. Assimilando recursos e processos do engenho barroco, da imagética oriental e da lírica metafórica dos épicos gregos, entre outros pontos luminosos, o autor construiu um fabulário de imprevistas formas de narrativa poética. Cântico do presente, de uma época conflituosa e interrogante, sua obra nos seduz pela capacidade esfíngica de apresentar não respostas, mas desafios e mistérios, estimulando a aventura de novas aventuras verbais. Transcriador de obras como a Comédia de Dante, o Fausto de Goethe e a Ilíada de Homero, além dos mais inventivos autores da modernidade — Joyce, Pound, Maiakovski, Khlebnikov, entre outros —, Haroldo de Campos apresenta, no conjunto de sua criação, um diálogo vivo com a literatura de todos os tempos.
CD: A tese do fim do ciclo histórico do verso permanece válida, em sua opinião? É possível ainda a experimentação no campo verbal, ou o futuro aponta para o fim da poesia como arte da palavra, superada pelos novos meios eletrônicos?
Haroldo: Entendo — é isso que exponho no ensaio Da Morte do Verso à Constelação: o Poema Pós-Utópico (em O Arco-íris Branco, Imago, RJ) — que, com a crise simultânea das ideologias e das vanguardas, todo o radicalismo futurológico está já posto em questão. Estou com os que pensam que o processo da modernidade ainda não se concluiu: o que ocorre é a incidência epocal do momento pós-utópico, passando-se a encarar uma agoridade em poesia, onde os contributos do passado e as reconfigurações inventivas do presente de criação são urgidos a operar e co-operar num circuito recíproco. Quanto aos meios eletrônicos, podem trazer um novo e fecundo instrumental para a criação (como já o estão fazendo, veja o caso paradigmal de Augusto de Campos e as personalíssimas intervenções de Arnaldo Antunes). Sou, porém, dos que acreditam na sobrevivência e na pervivência do livro como objeto.
CD: Nesta época em que vigoram teses sobre o fim da história e das ideologias e o eclipse das vanguardas, qual é o sentido da idéia de invenção?
Haroldo: A idéia de invenção continua sempre vigente, mas em dialética permanente com a tradição. O poema pós-utópico nasce pontualmente nessa conjuntura dialetizada, onde são muitas as possibilidades combinatórias do passado de cultura com a agoridade, a presentidade, a imaginação criativa, a invenção.
CD: Como surgiu o projeto de fazer a tradução integral da Ilíada? O que este épico representa para a imaginação e o fazer poético contemporâneo?
Haroldo: O projeto de “trans-helenizar” a Ilíada homérica foi insuflado pelo constante entusiasmo de Ezra Pound e de James Joyce pelo rapsodo grego. Mas o foi também pela opinião de Auerbach, para quem as duas matrizes poéticas do Ocidente são a obra de Homero e a Bíblia hebraica. Um constante e atento instigador, durante o curso do trabalho (dez anos, como a Guerra de Tróia...) foi Trajano Vieira, jovem helenista , professor de grego da Unicamp e tradutor (excelente) do trágico clássico da Hélade. Por outro lado, eu retomo e atualizo radicalmente a lição de Odorico Mendes, virtual patriarca oitocentista da transcriação no Brasil. Recuperei Odorico, duramente rejeitado por Sílvio Romero, Antonio Candido e Wilson Martins em meu ensaio “Da criação como tradução e como crítica”, de 1962, publicado em Metalinguagem e Outras Metas (1992).
CD: Comente a evolução de sua pesquisa sobre os poemas bíblicos. Pretende publicar novas traduções nesse campo, após o Qohelet e o Bereshit?
Haroldo: Tenho pronto um novo livro de transcriações de textos bíblicos, reservado para a editora Perspectiva, a ser publicado ainda neste ano. Contém: o episódio de Adão e Eva (a segunda história da criação); o episódio da Torre de Babel e a íntegra do Cântico dos Cânticos (Shir Hashirim). Estou escrevendo um prólogo geral para o volume (breve) e alguns comentários sobre os capítulos II a VII do Cântico, pois só o capitulo I estava por mim traduzido quando o publiquei na Folha de S. Paulo. As duas outras partes do tríptico contido no livro já foram, também, publicadas na Folha.
CD: Escrito sobre Jade reúne traduções de poetas clássicos chineses; O Manto de Plumas recupera, em nosso idioma, a música poética do teatro nô. O diálogo permanente com a cultura oriental ainda estimula a sua criação?
Haroldo: Ainda, como sempre. Ambos esses livros estão há muito esgotados. Preparo uma nova edição de cada um deles, incluído, no primeiro, Mao Zedong, como poeta de estilo clássico; no segundo, material sobre a encenação de Hagoromo realizada e protagonizada por Alice K., dançarina, coreógrafa e atriz especializada em nô.
CD: Em A Maquina do Mundo Repensada (2000) há um discurso poético que navega por conceitos científicos e filosóficos sobre a origem do universo. Qual é a gênese desse livro? De onde vem seu interesse por cosmogonias?
Haroldo: Meu interesse é antigo. Está já em A Arte no Horizonte do Provável (1ª edição, Perspectiva, 1969) e na introdução que escrevi, sob forma de ensaio, para a Pequena Estética de Max Bense; mais recentemente, o estudo sobre ordem, caos e acaso que figura na ultima edição, ampliada, de Mallarmé (Perspectiva). Ademais, fui amigo pessoal do maior físico teórico brasileiro, Mário Schemberg, cuja casa freqüentei assiduamente. Minha amiga Guita Ginsburg foi assistente de Mário no Instituto de Física da USP. Tenho um filho, Ivan Pérsio, que é doutor em Química pelo Instituto de Química da USP e professor titular da UNIP; tenho também um sobrinho (Roland, filho de Augusto), que é professor de Física da Universidade de Brasília, especialista em cosmologia. Ambos esses dois rebentos da família Campos são muito interessados em humanidades (artes e literatura).
CD: Crisantempo (1998) é um livro multipolar, que reúne peças inspiradas por suas viagens a países como Japão, Israel, Estados Unidos e releituras de poetas de diferentes tempos e espaços. Esse diálogo criativo com outras culturas é uma resposta, no campo da poesia, à idéia de um mundo sem fronteiras?
Haroldo: Na Nota Prévia a meu livro A Operação do Texto (1976; a nota está datada de junho de 1975) eu já falava em tradução como “transculturação”, expandindo no tempo e projetando na história a idéia prático-teórica de “transcriação”. O conceito de “transculturação” foi usado, alguns anos depois, em âmbito literário-cultural pelo crítico uruguaio Angel Rama (Transculturación Narrativa en América Latina, 1983), embora entre nós ninguém tenha se preocupado em fazer essa ligação. (Rama, talvez não se saiba, fez uma versão hispânica de meu ensaio A Arte no Horizonte do Provável e publicou-a na revista venezuelana Poesía n. 19/20, Valencia, 1974.) Antes, bem antes de nós ambos, o conceito já havia sido elaborado e aplicado em âmbito antropológico pelo grande africanista cubano Fernando Ortiz (Los Bailes y el Teatro de los Negros en el Folclore de Cuba, 1951). Essa premissa, completada pela noção de Weltliteratur (literatura universal), que está em Goethe e está no Manifesto Comunista, de Marx e Engels, dá resposta a sua indagação sobre o ideal de um “mundo sem fronteiras”, onde, como queriam os autores do Manifesto, as literaturas regionais seriam superadas em prol da constituição de um patrimônio cultural comum, universal.
CD: O barroco está presente em sua escritura desde O Auto do Possesso (1950), mas é na prosa experimental de Galáxias (1984) que essa vertente se manifesta de modo mais nítido. Comente o processo de criação dessa obra.
Haroldo: Galáxias é o momento de plena afloração do barroco no meu processo textual, preparado por uma pré-história que se encontra em Ciropédia ou a Educação do Príncipe, Claustrofobia e num poema quase programático como Xadrez de Estrelas. De início (1963), pensei nesse meu texto longo como um ápice da prosa, dominado pela vontade épica, pela diegese. Verifiquei, porém, com o evoluir do projeto, que se tratava antes de uma vis epiphanica, de um poema longo imagético-visionário, percorrido por farrapos de narração. A descrição do meu processo de trabalho está em Dois Dedos de Prosa sobre uma Nova Prosa (revista Invenção n. 5), título que hoje eu retificaria, escrevendo Dois Dedos de Prosa sobre um Novo Poema.
CD: Mário Faustino estudou as possibilidades do poema longo moderno a partir da leitura dos Cantos de Ezra Pound e da Invenção de Orfeu de Jorge de Lima. Finismundo (1990) é uma investigação poética que caminha nesse sentido?
Haroldo: Finismundo (como Galáxias, porém num outro diapasão) vai, certamente, nesse sentido.
CD: Seus ensaios teóricos e traduções de autores como o cubano Lezama Lima exerceram forte influência sobre os estudos do neobarroco. A seu ver, qual é a informação nova que essa corrente literária traz para a poesia atual?
O neobarroco (incluídos sob essa denominação nomes como os dos cubanos Lezama Lima, Carpentier, Cabrera Infante, Sarduy e Kozer; dos brasileiros Guimarães Rosa, Jorge de Lima, Mário Faustino e Leminski; dos colombianos León de Greiff, poeta, e o Gabriel Garcia Marques de Cem Anos de Solidão; para sequer mencionar os aspectos barroquistas de Trilce, de Vallejo, Altazor, de Huidobro, En la Masmédula, de Girondo, Blanco, de Paz, Canto General, de Neruda e certos poemas conceptistas-combinatórios de João Cabral) é um fenômeno criativo de fundas implicações no passado e no presente da Ibero-América. Sua variante platina é o “neobarroso” de Néstor Perlongher, Arturo Carrera, Lamborghini e do uruguaio Roberto Echavarren. Também no argentino Saúl Yurkiévich, radicado há muitos anos na França (professor da Sorbonne, editor-testamenteiro de Cortázar, admirável ensaísta que se ocupa da “vanguardia”), se encontram — em sua poesia experimental — evidentes rasgos neobarroquistas.
CD: A Coleção Signos, que você dirige para a editora Perspectiva, tem publicado livros de vários poetas brasileiros mais recentes, como Frederico Barbosa, Arnaldo Antunes, Carlos Ávila, Antonio Risério e Régis Bonvicino. A seu ver, como esta a poesia brasileira atual?
Haroldo: Há bons nomes a considerar (para não mencionar figuras já em plena maturidade ou em sábia pós-maturidade, como Sebastião Uchoa Leite e o mineiro Affonso Ávila, este, ademais, um notável especialista do barroco). Horário Costa, já com 40 anos, é um de nossos melhores poetas-críticos. Há, ademais, um promissor grupo de mulheres em ascensão (Claudia Roquette-Pinto, Angela de Campos, Janice Caiafa, do Rio; Lenora de Barros, em São Paulo), precedido no tempo por Josely Vianna Baptista e Alice Ruiz (de Navalha na liga e Pelos pelos), e por essa admirável sobrevivente de tantas lutas culturais que é Laís Corrêa de Araújo. Uma poeta de qualidade quase ignorada no sul é Marize Castro, autora do surpreendente Marrons, Crepons, Batons. Mas há também uma forte equipe masculina: Frederico Barbosa, Carlos Ávila, Antonio Risério, por exemplo. Nela registro com prazer a sua presença (Claudio Daniel). É óbvio que não pretendo ser taxativo nesta minha simples enumeração exemplificativa. Não quero deixar de acrescentar a esse elenco o livro Baobá, de Letícia Volpi, com que você me presenteou, recomendando-o à minha apreciação. Reconheço — e gostaria de dizer-lhe — que a moça promete: “tiene el duende”, como diria García Lorca.
CD: Quais são os seus projetos atuais? Está trabalhando em um novo livro de poemas?
Haroldo: Sim. Organizo, com a assistência gráfica de minha mulher, Carmen, um novo livro de poemas. Como o fazia por superstição Júlio Cortázar, eu, embora não supersticioso, participo da idéia de que não se deve mencionar o título de livros in fieri.
Claudio Daniel publicado na revista et cetera, nº 1, Curitiba, 2003
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