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domingo, 12 de dezembro de 2010

MEMÓRIA VIVA



Numeros 2 & 3

A Verdade Desconhecida

Parte II

Eu sabia quando li, que o poema do Sebastião Nunes ia criar um alvoroço, mas lutei muito pela Liberdade para não aceitar nunca mais qualquer tipo de censura! – Vamos tomar um café no gabinete do Dalton Canabrava que tenho certeza que o Paulo Navarro vai te divertir com suas preocupações mundanas... Neste momento aproxima-se de nós, a passos largos o neurótico Daniel Oliveira, a quem eu chamava de mate-leão, pois já vinha queimado, com a cara feia de quem sofrera uma grande descompostura, emburrado, o que não me causava espanto, pois é assim que ele sempre se apresentava. Mas hoje o que ele trazia no verbo não era o diário pedido de aumento de salário, nem as suas brigas íntimas... Eu já estava fora do carro quando ele chegou gesticulando com um jornal enrolado entre os dedos. Trazia nos lábios certo tremor, pois não conseguia falar o que queria... – O que houve Daniel? Perguntei... Podíamos sentir no ar o cheiro da carniça. Antes mesmo que ele pudesse me responder entrou em cena, com seu andar lento e pausado, o artista plástico Fernando Tavares, diretor e programador da grande e das pequenas galerias da casa. Ele surge como um gato por detrás das colunas que sustentam o foyer do grande teatro, me pega pelo braço e leva-me até a porta da sala do cineminha Humberto Mauro. Afasta-me dos outros para comentar o fato que agitava os corredores da Fundação: - Olha Mestre, o jornal Ponta de Lança foi distribuído para todos os departamentos aqui da Fundação e também da Secretaria de Cultura, ninguém sabe por quem e já tem gente dizendo que ele vai ser o motivo da sua exoneração..., agora todo cuidado é pouco. Pedro se aproxima e depois vem o Daniel, sempre querendo me dizer alguma coisa, mas primeiro ouvindo, espionando o teor de cada palavra... ele enche o peito e diz: – Estive agora com o Dalton e ele me disse estar preocupado com o que possa acontecer com todos nós se este jornal for distribuído. Ele me pediu para antes de você tomar alguma atitude precipitada ir ao seu gabinete... O nervoso Daniel conseguia finalmente passar o recado do chefe e ficou espantado quando dei uma gostosa gargalhada já entrando em minha sala de trabalho... Aproximo do meu amigo e digo – Pedro, onde se meteu o Wadin? Para onde foram os jornais que vieram da gráfica? – Estão chegando quentinhos... Entra na sala Osvaldo, artista plástico e o diagramador do jornal dizendo que estava no carro a edição completa do jornal Ponta de Lança sendo descarregada pelos funcionários da Fundação até a minha sala. Eram mais de 2.500 exemplares empilhados um por cima do outro ocupando, no final do carregamento, grande parte da sala. Ouve um silêncio tumular quando o ultimo fardo de jornais pousou em cima de minha mesa. Todos os funcionários estavam constrangidos, todos já haviam lido ou ouvido sobre o poema (dito pornográfico) do Sebastião Nunes. - O que devemos fazer com esses jornais? Perguntou um funcionário... Luis Carlos Pires, velho comunista produtor de cinema e que ora assessorava a superintendência junto com o Paulo Navarro, entrou na minha sala transmitindo a ordem que veio de cima: - Todos os jornais devem ser recolhidos e nada poderá ser distribuído... Essas são as ordens da Ângela Gutierrez para o Dalton! Ela é a nossa secretária da cultura e prestem atenção que neste momento ela está almoçando com o governador e na certa está lendo para ele o poema do Sebastião, não há nada que possamos fazer, disse-me constrangido... – Abaixo a censura! Gritou Osvaldo Medeiros. – Porcos chauvinistas! Repicou Fernando Tavares... Todos começaram a falar - inicia-se uma algazarra, pensei um tempo, me levantei de supetão e pedi silêncio e falei: – Quero dizer que não venho construindo a minha história com atitudes covardes, ou como se diz aqui em Minas, cautelosas. Não vamos deixar que a burrice do governo censure um poema, um jornal, ou qualquer outra coisa, se é que é em um estado democrático de direito que pretendemos viver e trabalhar. Por isso peço aos meus funcionários que mantenham a rotina, distribuam por toda a parte, por tod os meios, o jornal, eu sou o único responsável por essa ação, essa afronta ao sistema em nome da nossa liberdade fica por minha conta.
Enquanto saiam os jornais para as bancas tradicionais da cidade, livrarias e a postagem para o correio pela mala direta da Fundação, eu peguei um dos pacotes com 50 exemplares, como sempre fiz em cada edição que saia do forno e caminhei para o gabinete do jovem superintendente. O Dalton só tinha notícias do jornal quando ele já estava pronto. Assim que eu chegava com o pacote no gabinete, ele, o Paulo e o Luis retiravam alguns exemplares cada e mandava a secretária remeter o resto para os amigos e admiradores.
Caminhei lentamente pelo corredor que separava a minha sala da superintendência como quem caminhava para o cadafalso. Dizia pra mim mesmo, me convencendo: - Basta de tamanha mediocridade! Muitas rainhas e poucas saúvas os males dessa casa são! A cada passo eu tinha a certeza do meu caminho. Romper as barreiras do servilismo e sair em defesa de uma utopia cultural, mesmo que isso custasse a mim o meu generoso salário mensal.
Não seria a primeira vez, nem seria a última.

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