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sábado, 18 de abril de 2015

HOMENAGEM LATINA



Eduardo Galeano e o Horizonte
Por Orlando Senna

“De nuestros miedos
nacen nuestros corajes
y en nuestras dudas
viven nuestras certezas”, disse Eduardo Galeano, o escritor, poeta, jornalista e farol político que se foi da vida material esta semana, deixando-nos mais de quarenta livros que desvendam e orientam a América Latina, além de desvelar e nortear uma proposta de pensamento para a existência em geral. “No importa de donde he venido, sino a donde quiero llegar”, “somos lo que hacemos para cambiar lo que somos", também disse.
Sua literatura concisa e magnética, juntando e misturando informação e reflexão histórica e política, jornalismo, ficção, poesia, humor e humanismo, ultrapassa gêneros, escolas e tendências tradicionais. É um caminho de percepção e transcendência que só ele transitou, inédito e instigante, personalíssimo e surpreendente. Um caminho que se bifurca, cruza com si mesmo, encontra atalhos a cada instante mas nunca perde a direção indignada e contestadora. Um caminho (em direção ao horizonte que se afasta enquanto tentamos nos aproximar dele) que está em Memoria del fuego, El libro de los abrazos, Bocas del tiempo, Días y noches de amor y de guerra, no best seller As veias abertas da América Latina e em seus livros sobre futebol.
O poeta e cineasta Fernando Birri sempre disse que o uruguaio Eduardo Galeano é, em si mesmo, um deus ex machina, expressão originada no teatro grego, hoje empregada para qualquer atividade, que significa ao pé da letra “deus surgido da máquina”. Nas artes narrativas significa um giro inesperado na história, uma solução improvável ou repentina para uma situação, alguma coisa inaudita, um final imprevisível. É a melhor definição de Galeano que escutei, que não apenas sua obra está lastreada na criatividade surpreendente mas que ele mesmo, sua vida de guerreiro pacifista, é um deus ex machina.
Minha última conversa com Galeano aconteceu em julho de 2010, em sua querida Montevidéu, no Café Brasilero que ele frequentava quase diariamente e dizia brincando que era sua “oficina” (escritório). Conversamos sobre política regional (último ano do governo Lula, primeiro ano do governo Mujica), o mega vazamento de documentos secretos pelo ciberativista Julian Assange, a Copa do Mundo (pontualmente sobre os técnicos Maradona e Dunga), a Amazônia e a questão ambiental.
Fui ao encontro acompanhado pelo jovem argentino Nicolás Schonfeld, que trabalha comigo na TAL-Televisão América Latina e que ficou literalmente encantado com a falação de Galeano, em estado de graça: “é incrível, é genial, falando ele ainda é melhor do que escrevendo”. Galeano escreveu em algum momento que seus textos eram feitos para pessoas que não tinham acesso a eles, que não podiam ler o que lhes era destinado: os pobres, os analfabetos, os deserdados do mundo. Mas tinha consciência, ou ciência, que era lido e entendido pelos jovens e isso era uma fonte de alegria para ele. Minha impressão naquela tarde no Café Brasilero era que falava muito mais para Nicolás do que para mim.
Através de seu estilo original e beirando o minimalismo, Galeano nos disse porque, quando, como e onde a Europa e os Estados Unidos usaram a América Latina como um pasto, um lugar para alimentar-se, energizar-se e extrair riquezas. Um exercício de pirataria extrema que já dura mais de cinco séculos, usando insumos como colonização, escravidão, ideologias, dívidas forjadas, golpes de estado, propaganda hipnótica e outras pérolas da ladroagem. Há um miniconto de Galeano (não sei como definir as várias vertentes literárias dele), uma de suas realidades ficcionadas, que sintetiza o roubo com humor: os europeus chegaram, eles tinham a Bíblia e nós tinhamos a terra, e nos disseram para fechar os olhos e rezar; quando abrimos os olhos eles estavam com a terra e nós com a Bíblia.
Esse sintetizador preciso como o navegar (”el poder es como un violin, se toma con la izquierda y se toca con la derecha”), também filosofou além da política, inclusive sobre o seu próprio papel de pensador e artista revolucionário. Em outro de seus minicontos, ou como queiram chamar, ele narra a história de um pai que leva seu filho pequeno para ver o mar pela primeira vez. O menino, assombrado diante da imensidão de água, do azul sem fim, faz um pedido: pai, ajude-me a ver. Axé, paizão Galeano.

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