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sábado, 27 de fevereiro de 2016

UMA CRÔNICA MINEIRA


 VISTA CANSADA

   Otto Lara Resende

Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.
Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.
Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.
Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.
Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença. 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

UM CONTO DE REIS

 

METÁFORAS TAMBÉM AMAM


Fábio Carvalho
                                                                                                      Marku Ribas

 Retrato do artista quando jovem cão. Durante a noite sonhos em profusão com narrativa, personagens desenvolvidos e continuação depois da interrupção, para o primeiro pipi do dia. Chove sobre David Bowie é o nome do sonho que sonhei pra mim, dizendo que era para a ametista que é a pedra reluzente naquele casarão, com um piano de calda aberta embaixo da escada em caracol. A vontade se esbaldou em flocos líquidos de nuvens, depois que a cigarra explodiu de cantar, como é sua missão atávica. Manhã úmida, linda manhã. Lúbrica como todas as manhãs podem ser quando estão na temperatura da vida amanhecendo. El dia em que no me queiras, ai tá russo! Não sei se foi isto mesmo que ouvi a morena de cabelos trançados cantando no fim da noite no Sofia. Foi o que entendí: tá russo compay, tá rossito! Digo, minha vida, lembrando a fala da província, bela e cintilante como não é a de ninguém. Caminho irregular de liberdade conquistada, podendo recusar quando quer, indirigível na sua direção, como pré-punk independente berra o tempo do phôda-se. Talvez seja ela a vida eu. Posso até imaginar você sambando com a saia na mão. Minha voz estava irresistível como a do Barry Whaite. Durante a noite anterior, tinha feito um tratamento nas minhas cordas vocais com Morrito e charutos autênticos Monte Cristo. Oxalá e Evoé. Dia dois de Fevereiro, dia da aurora da revolução, dia que é tudo que o homem quer. Meu amigo, claro está, vamos nos encontrar no seu andor, lâmpada de Aladin. Se consagrar enfim. Iracema na cena do cinema é um poema de se olhar. As crianças são levadas pelas mãos de gente grande. É preciso dar um jeito meu amigo, sei, nossa vida é nascer, florescer para depois morrer. O quadril de Tereza, que beleza. O mapa de luz. Infinitamente belo. Há tempo ainda, vamos viver a beleza, já que tudo é efêmero, a vida é efêmera, então que se se danem os regurjitos moralistas de auto ajuda. Viva a moral surrealista do amor louco. Vamos fazer uma omelete. Agite usando, com propriedade de manifestação expressiva, como o branco do papel exige a consciência desse momento completamente sem resolução, e por aí ela vai, a revolução da imaginação solta na brisa do mar que quebra no maior sofá do mundo chamado Malecon. En un lugar de La mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme. Uma distante paz foi alcançada, através das palavras, não por outra codificação, embora se disfarcem, são armas que atingem com sofisticação e ternura o que não será transformado. Vamos lá, a elas as palavras. Diante da cosmogonia instaurada, o cotovelo reinou modorrento já logo ao amanhecer. Gotitas de Angustura, axilas bonitas e perfumadas. Aplausos não comovem, ímpetos de rechaça-los devem ser reprimidos para manter a comodidade do entorno. Naquela noite vi o extraordinário pintor Marc Chagall falando para a câmera 16 milímetros em branco e preto: se falam bem dele, não acredita, se falam mal acredita e ponto. Outro lado difícil de ver as coisas na própria dificuldade realmente desejada. À noite o Bar do Caçapa estava cheio de Calopsitas coloridas e esvoaçantes, coisa nunca acontecida, nada natural, também o dia tinha sido de céu azul beligerante, com meia lua branca cortada na horizontal no meio do infinito da Rua Palmira. Os astrofísicos de plantão no Domingo, nunca tinham visto tal mudança de ciclo. Ela a Lua fotografou aquela convulsão na Somália.  A sequiosa volúpia de quem lê a música de maneira correta, erra o alvo do coração e das mentes dos seres que circulam por entre regras, ao mesmo tempo fora delas, na maioria das vezes sem o entendimento do conteúdo que mereciam para sua colocação nas prateleiras da convicção, o que foi bem dibulhadamente lhe apresentado. Segundo Dona Regina Lampedusa disse: algo deve mudar para que tudo continue como está. Triste frase. Podemos distorcer um pouco as coisas, já que falar também não adianta. O inacessível quase toca o invisível visto: como talvez o cruzamento do olhar profundo. A fraternidade é uma farsa e o amor não tem direitos sobre nós. Apaixonei-me perdidamente pela Havana. Ao principio ela acenava e atraia tudo para seu mundo, em seguida, obnubilava os corredores, confundia todas as imagens, como fosse iludir a detecção. O alvorecer esperando na porta silenciou-a. Estreitou em volta dos ombros sua capa, como se fosse uma ameaça final, o maior inimigo de todos. Sem curvas na estrada de Brasília lá na traseira do caminhão estava escrito: bruto, rústico e sistemático. Recordamos o incomparável. Só o Rouxinol faz barulho. A tergiversação chegou ao limite, graças ao meu amigo negão inglês Mister Bean Laden com sua arenga bem intencionada, mas inadivertidamente servidora da grande imprensa reacionária. As piores notícias chegam do Brasil, forças reacionárias afiam suas ganas, em sua complicada forma de se submeter. Não fomos ao Floredita porque seu avô estava lá. Fêfa, a garçonete, já nessa altura me chamava de mi amor, mi corázon.  Tranquila e agradável essa véspera do ano dezesseis.  Procure-me na parte funda da piscina junto dos meus amigos da turma da pesada. Banguelo em Cuba. Na conexão, distraído enquanto filmava a bela aeromoça panamenha, mordi uma castanha de caju com o dente errado. Lá se foi meu último pré-molar, que estava bambo há tempos, caiu sem sangue e sem dor alguma, com antigo anúncio simplesmente deu linha. Era chegada sua hora. Ai de mim, de nós dois. Bambo, mambo e chá chá chá. Por que fatigar tua débil alma com planos eternos? (Carmina, II, 11) A razão desse frequente engano é a inevitável ilusão de ótica do olho espiritual, em virtude da qual a vida, vista a partir do começo, parece sem fim, mas, quando revista ao fim da jornada, parece bem curta. Tal ilusão tem seu lado bom, pois sem ela dificilmente realizaríamos algo grandioso. Longe de mim as mesmices. Assim Shopenhauer descreve o principio romântico. Outras vezes, lá onde procurávamos prazer, felicidade, alegria, encontramos ensinamento, intelecção, conhecimento, ou seja, um bem permanente e verdadeiro, em vez de um transitório e aparente. Não experimento outro prazer a não ser o de aprender. (Trionfo d’ amore, I, 21) Na maioria das vezes funciona para acalmar os extintos básicos. Portanto, aqui está demonstrado uma noção do perigo, do risco da existência da resistência. Uma tomada de posição. Estou ilhado em Cuba na manhã do credenciamento, cubando o panorama, quando, nos jardins internos do Hotel Nacional, dou de cara com a Mariel Heminguay sorrindo uma luz rosada intensa para mim, algo surpreendente, não para a vida. Fomos a Marina Heminguay num carro conversível, antes de almoçar no La Bodeguita Del Médio, ouvindo a cantora que tocava Maracas. Nada mal caminhar pelas ruelas habitadas por todas as cores de notas musicais em nítida visibilidade depois da chuvinha fininha que molhou um pouco o calor do Caribe. Não consegui escrever Cuba Rebelde 1,2,3 e 4 como tinha prometido ao meu mais dileto professor editor. Ainda assim te amo. Hierba Buena.



sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

VISÃO HISTÓRICA


Três séculos
Por Orlando Senna

Tenho a sensação e o espanto de que vivi os séculos 19 e 20 e estou vivendo este surpreendente e perigoso século 21. Essa suposta mágica do tempo não tem nada a ver com longevidade, com os mitos bíblicos de Matusalém e Noé (tenho apenas 75 anos), mas sim com circunstâncias históricas e geográficas. Na infância minha vida transcorreu em um mundo rural: em uma fazenda e em uma pequena cidade do interior baiano. As atividades da fazenda eram criatório de gado bovino e pequenas manufaturas. Não havia eletricidade, rádio, automóveis, nada dessas “modernidades” que já estavam em uso em outros lugares. A locomoção era feita em cavalos, carroças e carros de boi e o pensamento e comportamento se remetiam a 50 anos atrás. Era, em tudo e por tudo, uma extensão do século 19.
A pequena cidade, que tinha conhecido um esplendor econômico no passado com extração de diamantes, estava decadente, debilitada, sem rumo e sem futuro nas décadas 1940 e 1950 devido a uma severa diminuição das pedras preciosas em seu solo e subsolo. Uma comunidade isolada, esquecida pelo resto do mundo. Ou seja, parecia que também estava parada no tempo, com suas lembranças, suas saudades da monarquia e da escravidão, seus costumes ultrapassados, os tabus impedindo o desenvolvimento mental dos jovens, meu avô abismado com as garrafas de água mineral: “comprar água é o começo do fim do mundo”. Só parecia, pura aparência porque dois elementos básicos do século 20 já estavam presentes: eletricidade e cinema.
A eletricidade graças a um pequeno gerador movido a água, alimentado por um tanque, que fornecia luz elétrica para as ruas e metade das casas das seis da tarde às dez da noite, quando os rádios funcionavam. Luz amarela e fraca, luminosidade semelhante aos candeeiros domésticos. E o cinema graças à visão empreendedora de um empresário local, que também abriu outras salas de exibição nas cidades vizinhas, os filmes eram transportados entre elas em lombo de burro. E também havia uns poucos automóveis e caminhões, tão poucos que a criançada e os cachorros corriam gritando e latindo atrás deles quando algum aparecia. Entre as famílias de classe média a referência cultural era a França, mesmo depois da Segunda Guerra e com os filmes dos Estados Unidos sendo exibidos no cinema.
As luzes
Nós, os meninos e as meninas, sabíamos que já se vivia outro tempo na capital da Bahia, no Rio de Janeiro e nas fascinantes cidades mostradas no cinema e tão faladas no rádio e nos raros jornais e revistas que apareciam naquele fim de mundo. Também porque alguns garotos mais velhos estudavam na capital e nos contavam coisas de arrepiar os cabelos e fazer sonhar. Também porque ouvíamos dos adultos que aquele lugar era “atrasado e ignorante”. Minha meta, e também a de alguns amiguinhos, era conhecer o mundo e o caminho para isso era ir estudar na capital. Aos 12 anos de idade fui estudar em Salvador da Bahia e me deparei com o século 20, que já ia pela metade mas para mim era uma iluminada novidade. Iluminada é bem a palavra, já que meu assombro maior foi as lâmpadas elétricas deixando a noite clara como o dia. 
Em um piscar de olhos, cruzei pontes entre Freud e Lacan, entre Marx e Sartre, entre Pasteur e Einstein & Stephen Hawking. Entre Beethoven e Villa-Lobos, entre valsas e polcas e Tom Jobim, Roberto Carlos, Tropicalia, Elvis, Beatles. Tinha vivido na infância a sociedade patriarcal, o privilégio absoluto do masculino sobre o feminino, o romantismo eurolatino. Ao ganhar o mundo, me inseri na segunda metade do século 20 como se fosse um século inteiro, com suas guerras capitalismo versus socialismo, ascensão econômica e bélica dos Estados Unidos sobre todas as nações, urbanização, industrialização, o homem na Lua, direitos humanos, drogas, a espiritualidade independizando-se das religiões, o crescimento do poder da mídia. Vivi suas mudanças radicais de comportamento, suas revoluções culturais, o risco de vida e o charme embriagador das suas décadas de 60 e 70.
Máquinas inteligentes
E entrei no século 21 e no terceiro milênio. Aconteceu exatamente no dia 11 de setembro de 2001. A guerra, característica tormentosa da espécie humana, estivera bem presente nos meus dois séculos já vividos, mas naquele dia apresentou um novo formato (causar medo ininterrupto nas pessoas, estejam onde estiverem) e um novo tipo de poder de fogo ao atingir a grande potência, material e simbolicamente, em seus órgãos vitais: o poder econômico (as Torres Gêmeas em Nova York) e o poder bélico (o Pentágono). E estabeleceu-se mundialmente a Guerra ao Terror, segundo o Ocidente, ou a Guerra Santa, segundo os combatentes radicais do mundo islâmico. A lembrar que os islâmicos são quase dois bilhões de almas, quase um quinto da humanidade. 
As guerras ideológicas do século 20 mataram cerca de cem milhões de pessoas, três vezes mais do que a soma de mortos de todas as guerras desde o nascimento de Cristo. A guerra étnica-cultural-religiosa que se expande agora pelo planeta pode ir bem além na carnificina. E pode emendar com uma guerra total pela água e até por um conflito generalizado pelo controle da comunicação e chegaremos à perfeição da guerra: todos contra todos. O cenário é um planeta em mutação geológica e uma crise civilizatória degenerativa. E dizer que o que eu esperava, em minha santa ingenuidade, era uma Revolução Ontológica que, graças às novas tecnologias, abriria as portas da sabedoria, solidariedade, cooperação e paz.

O outro lado da moeda é justamente o espantoso avanço científico e comunicacional e os novos parâmetros comportamentais gerados pela cibernética. Ainda nos cueiros, o século já estava sendo apelidado Era do Conhecimento. Em que direção vamos seguir não é uma decisão das máquinas, mesmo ditas inteligentes: um drone pode destruir coisas e matar pessoas e também evitar danos e salvar pessoas e ser um instrumento de evolução das artes (cinema por exemplo), do transporte, do meio ambiente. Quem define seu uso é o ser humano, uma frase à qual muita gente reagiria com um “então estamos perdidos”. Talvez sim, talvez não. Não sabemos, nos resta a fé, essa crença sem provas que acompanha o bicho homem desde quando existe. E nos resta a militância para construir essas provas, a ação individual para reinventar o futuro.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

LITERATURA


O BILHETE PREMIADO

Anton Tchekhov
Ivan Dmítritch, homem remediado que vivia com a família na base de uns 1200 rublos por ano, muito satisfeito com seu destino, certa noite, depois do jantar, sentou-se no sofá e começou a ler o jornal.
– Esqueci de dar uma olhada no jornal de hoje – disse sua mulher tirando a mesa. – Dê uma espiada para ver se saiu o resultado do sorteio.
– Saiu – respondeu Ivan Dmítritch -, mas você não penhorou seu bilhete?
– Não. Paguei os juros na terça.
– Qual é o número?
– A série é 9499, bilhete 26.
– Então… Vejamos… 9499 e 26.
Ivan Dmítritch não acreditava na sorte da loteria e em outra ocasião jamais se daria ao trabalho de verificar a lista. Agora, porém, que não tinha nada para fazer e o jornal estava bem debaixo de seu nariz, percorreu com o dedo de cima para baixo Os números da série. E não é que logo de cara, corno que para zombar de sua descrença, já no alto da segunda coluna apareceu de repente, diante de seus olhos, o numero 9499! Sem conferir o número do bilhete nem verificar se tinha lido certo, deixou cair rapidamente o jornal no colo e como se alguém lhe tivesse derramado água na barriga, sentiu um friozinho agradável no fundo do estômago. Era urna sensação de coceira terrível e deliciosa ao mesmo tempo.
– Macha – disse com voz surda -, o 9499 está aqui. A mulher olhou para seu rosto surpreso, assustado, e compreendeu que o marido não estava brincando.
– 9499? – perguntou ela, empalidecendo e deixando cair na mesa a toalha dobrada.
– Sim, sim… Está, de verdade!
– E o número do bilhete?
– E mesmo! Ainda falta o número do bilhete. Mas tenha paciência… espere. Então, que tal? De qualquer modo o número de nossa série está, hem? De qualquer modo, entendeu?…
Ivan Dmítritch olhou para a mulher e sorriu num sorriso largo e apalermado como uma criança a qual tivessem mostrado alguma coisa brilhante. A mulher também sorria. Sentia o mesmo prazer que o marido por ele ter lido somente a série e não ter tido pressa em saber do número do feliz bilhete. E tão delicioso, tão angustiante consumir-se e espicaçar-se na esperança de uma felicidade possível!
– A nossa série está – disse Ivan Dmítritch depois de um longo silêncio. – Significa que existe uma possibilidade de termos ganho. Apenas uma possibilidade, mas, apesar de tudo, ela existe!
– Está bem, mas agora, olhe.
– Espere. Ainda teremos tempo a vontade para nos desiludir. Se esta na segunda coluna de cima, quer dizer que o prêmio é de 75 mil. Isso não é dinheiro, é uma força, um capital! E se de repente eu olhar para a lista e lá estiver o numero 26? Hem? Escute, e se tivermos ganho de verdade?
Os cônjuges começaram a dar risada e a olhar demoradamente um para o outro, sem falar nada. A possibilidade da ventura deixara-os obnubilados, e eles não conseguiam sequer sonhar, dizer para que precisavam daqueles 75 mil, o que comprariam, para onde iriam. Imaginavam apenas Os números 9499 e 75 mil, desenhavam-nos em sua imaginação, mas a idéia da felicidade, que estava tão próxima, parecia não lhes passar pela cabeça.
Ivan Dmítritch andou algumas vezes de um lado para outro com o jornal nas mãos e só quando a primeira impressão se acalmou é que, aos poucos, começou a sonhar.
– E se tivermos ganho? – disse. – Seria uma vida nova, uma catástrofe! O bilhete é seu, claro, mas se fosse meu, antes de mais nada, naturalmente eu compraria algum imóvel, algo como uma propriedade, no valor de, digamos, 25 mil; deixaria uns 10 mil para despesas extras: mobília nova… uma viagem… pagamento de dívidas e assim por diante. Os 40 mil restantes colocaria no banco, para render juros…
– Realmente, uma propriedade seria ótimo – disse a mulher sentando-se e deixando cair os braços no colo. – Nalgum canto, na região de Tula ou de Orlóv… Em primeiro lugar, não seria preciso alugar nenhuma casa de campo e, em segundo, não deixa de ser uma renda.
E na imaginação dele começaram a se aglomerar imagens, uma mais poética e aprazível que a outra. E em cada uma delas ele se via satisfeito, tranqüilo, saudável e chegou a sentir um calorzinho agradável, um calorzão, mesmo! Lá está ele, depois de ter comido uma sopa de legumes fria como o gelo, de barriga para cima na areia quente, na beira do rio ou no jardim mesmo, embaixo de uma tília… Faz calor… O filho e a filha rastejam perto dele, rolam na areia ou caçam algum bichinho na relva. Cochila docemente sem pensar em nada e sente com todo o corpo o que significa não ter de ir ao serviço nem hoje, nem amanhã, nem depois. E quando cansar de ficar deitado, pode ir ver cortar o feno, ou ao bosque, colher cogumelos, ou então ficar observando como os camponeses pescam os peixes com o arrastão. Ao pôr-do-sol, pega um pano, um sabonete e esgueira-se na casa de banho, onde se despe devagarzinho, passa um tempão alisando o peito nu com as palmas das mãos e finalmente cai n’água. Na água, Os peixinhos se agitam em volta das bolhas turvas de sabão e as plantas aquáticas balançam na corrente. Depois do banho, um chá com creme e rosquinhas doces… À noite, um passeio ou uma partida de uíste com os vizinhos.
– Sim, seria bom comprar uma propriedade – diz a mulher, também sonhando. Lê-se em seu rosto que está encantada com os próprios pensamentos.
Ivan Dmítritch imagina o outono chuvoso, as noites frias, o veranico. Nessa época é preciso andar um tempão pelo jardim, pela horta, pela margem do rio até sentir bem o frio e depois beber um copo cheinho de vodka junto com cogumelos salgados ou um pepino em salmoura e pronto – tomar outro trago. As crianças vêm correndo da horta, trazendo cenoura e nabo. Sente-se o cheiro fresco da terra… Depois, estirar-se no sofá e folhear uma revista qualquer, sem pressa, até que o sono chegue. Cobrir o rosto com a revista, desabotoar o colete e entregar-se…
Após o veranico o tempo é fechado, ruim. Chove dia e noite. As árvores despidas choram, o vento é úmido e frio. Os cachorros, os cavalos, as galinhas – não há quem não esteja molhado, melancólico, encolhido. Não se tem por onde passear; sair de casa, nem falar! Passa-se o dia inteiro andando de um canto para outro e olhando tristemente pelas janelas embaçadas. Que coisa enfadonha!
Ivan Dmítritch parou e olhou para a mulher.
– Sabe de uma coisa, Macha, eu iria é para o estrangeiro.
E ficou pensando como seria bom viajar para o estrangeiro, cruzar o oceano profundo e ir para algum lugar no sul da França, para a Itália… Para a Índia!
– Eu também iria para o estrangeiro correndo – disse a mulher. – Mas olhe o número do bilhete!
– Espere! Daqui a pouco…
Andou pelo quarto e continuou a pensar. E se a mulher fosse realmente para o estrangeiro? Viajar é bom sozinho, ou em companhia de mulheres despreocupadas, sem compromisso, que vivem o momento presente, e não com aquelas que ficam o tempo todo pensando e falando em crianças, suspirando, tremendo com medo de gastar um copeque que seja. Ivan Dmítritch imaginou sua mulher no vagão, cheia de embrulhos, cestas, pacotes: suspira e queixa-se que a viagem lhe deu dor de cabeça, que gastou muito dinheiro. É preciso correr na estação atrás de água quente, sanduíches, água potável. Almoçar ela não pode, custa caro…
“Tenho certeza que ela iria controlar cada copeque”, pensou ele, olhando para a mulher. “O bilhete é dela, não é meu! E pra que ela precisa ir para o estrangeiro! O que é que lhe falta ver lá de importante? Já sei. Ficará fechada o tempo todo no hotel e não me deixará desgrudar dela um só momento.”
E pela primeira vez em sua vida reparou que a mulher tinha envelhecido, ficara feia e cheirava a cozinha, enquanto ele ainda era moço, saudável, viçoso, bom para se casar uma segunda vez.
“Claro, tudo isso é bobagem, é besteira”, pensou. “Mas… para que iria ela ao estrangeiro? O que ela aproveitaria lá? Mas iria mesmo… Imagino. Para ela Nápoles ou Klin iriam ser a mesma coisa. Ficaria me atormentando e eu dependeria dela. Tenho certeza de que na hora em que recebesse o dinheiro, iria trancá-lo a sete chaves, como faz o mulherio… Iria escondê-lo de mim… Aos parentes dela tudo, mas para mim, contaria cada copeque.
Ivan Dmítritch ficou pensando na parentela. Logo que todos esses irmãozinhos, irmãzinhas, titias, titios soubessem do ganho, viriam se arrastando, bancando os mendigos, sorrindo untuosamente, bajulando. Eta gentinha sórdida! Se lhe oferecem a mão, pegam o braço. Se não lhe oferecem, amaldiçoam, rogam pragas, desejam todo tipo de desgraça.
Ivan Dmítritch lembrou-se de seus parentes e seus rostos, que ele sempre olhara com indiferença, pareciam-lhe agora odiosos, repulsivos.
“São uns canalhas”, ele pensou.
E o rosto da mulher começou também a parecer-lhe odioso, repulsivo. Em seu íntimo começou a ferver um ressentimento contra ela e ele pensou com alegria perversa: “Não entende nada de dinheiro, por isso é avarenta. Se ganhasse, mal me daria cem rublos, e o resto iria direto para o cofre”.
Já olhava agora para a mulher com ódio e não mais com um sorriso. Ela também olhava para ele com maldade e com ódio. Ela tinha seus próprios sonhos dourados, seus pianos, suas idéias e sabia perfeitamente no que estava pensando o marido. Sabia que seria o primeiro a avançar no que ela teria ganho.
“É bom sonhar por conta dos outros!”, dizia o olhar dela. “Não, você não conseguirá!”.
O marido compreendeu seu olhar: o ódio ferveu-lhe no peito e para decepcionar sua mulher e fazer-lhe mal olhou rápido na quarta página do jornal e anunciou solene:
– Série 9499, bilhete 46! Não 26!
A esperança e o ódio desapareceram ambos de repente e, no mesmo instante, Ivan Dmítritch e sua mulher acharam os aposentos escuros, pequenos e abafados, e o jantar que tinham acabado de comer pesado e insosso, e as noites longas e enfadonhas.

– Só o diabo sabe – disse Ivan Dmítritch, começando a implicar. – Por todo lado que eu pise, só há papéis, migalhas, casquinhas, sei lá. Será que nunca varreram esses quartos! Terei de ir embora de casa, o diabo que me carregue. Vou sair e me enforcar na primeira árvore.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

UM NOVO FILME

QUEBRANTO

O Primeiro Passo

Durante muitos anos eu possuía na minha pequena biblioteca três livros escritos por James Joyce. Confesso que sempre que começava a ler desistia de continuar. Não conseguia acompanhar a sua intricada narrativa. Assim Ulisses, Dublinense, Retrato do Artista Quando Jovem e também um Estudo sobre o romance moderno com textos de Ezra Pound, Umberto Eco, Ítalo Svevo, Richard Ellmann, onde encontrei o seu Giacomo Joyce, ficaram adormecidos nas estantes.

No ano passado, numa noite de insônia, devorei “As Irmãs” o primeiro dos contos de Dublinense e fiquei extasiado com o que eu acabara de conhecer. Depois foram vindos de roldão os outros 14 contos restantes.

Apaixonado, pela tardia descoberta, debrucei-me na vida e na obra do renomado escritor, primeiro com os ensaios dos autores acima citados e depois com algumas pesquisas feitas pela internet, podendo assim experimentar o prazer de degustar o texto, a poesia inocente, do “Retrato do Artista Quando Jovem” e finalmente o colosso de “Ulisses”, o que mais demorei a ler, o mais difícil de ser decifrado.

Como a minha letra, o meu texto, a minha poesia, é composta por imagens e sons, resolvi fazer um esboço do que eu havia visto e daquilo que mais havia sensibilizado os meus ouvidos em todos os textos do genial escritor. Frases soltas, deste ou daquele momento retiradas do romance ou dos contos, poemas, e todo erotismo fantástico deste anárquico e misterioso ser, foram enchendo páginas e mais páginas de papéis com a minha confusa caligrafia. No final dessa maratona enlouquecida eu já tinha esboçado o desenho do que viria a ser o primeiro tratamento do roteiro de um filme. Comecei de pronto a ordenar e a digitalizar a urdidura, a trama, que aos poucos, como peças de um quebra-cabeça, tomavam a forma da história que deveria ser contada.

Nos movimentos que intitulei de CONTUBÉRNIO, GNÔMON, SIMONIA, nasceu “Quebranto”. Um filme das alucinações de Giacomo nas suas duas horas de vida. Giacomo é James, Jean, que pode ser João, Joãozinho, os nomes que dei ao nosso enigmático personagem.

O roteiro começa com a apresentação dos três tempos de vida do João, o principal personagem desta história interpretado pelo talentoso ator mineiro Samir Haujis:

Mas tudo isso se torna agora cinema de longa-metragem graças ao jovem produtor carioca Cavi Borges, que acreditando e incentivando esse desafiador projeto dá inicio, logo após o carnaval, no  dia 14 de Fevereiro de 2016, em Santa Tereza, no Rio de Janeiro, as filmagens deste meu novo filme.

Assim sendo, por um tempo, não atualizarei esse meu Blog, mas publicarei fotos e vídeos de todo esse trabalho em progresso. AGUARDEM!!!


James Joyce
era viciado em cultura popular.

Jonathan Goldman professor do New York Institute of Technology, autor de Modernism is the Literature of Celebrity.

Seus escritos estão, desde o começo, repletos de referências a entretenimentos populares de sua época, bem exemplificados com as histórias de “faroeste” que inflamam a mente do narrador do segundo conto de Dublinenses, “Um Encontro”, publicado em 1916, mas escrito mais de uma década antes. Quando publica Ulyssese Finnegans Wake, referências recorrentes a revistas, quadrinhos, canções populares, programas de rádio, filmes, televisão, ficção e fotografia erótica etc. já se tornam norma.

E a cultura popular retornou o favor. No decorrer do último século, Joyce e sua obra foram apropriados por toda a gama de gêneros populares. Seus textos serviram de fonte para adaptações (por mais frouxas que fossem) no cinema, no rock, na opereta e nos romances gráficos, para não mencionar as versões literárias e teatrais que nos são mais familiares. A quantidade e variedade dessas adaptações atestam o calibre da realização literária e a estatura alcançada pelo conjunto de textos de Joyce, uma obra que fascina a tal ponto que deve ser continuamente relida e revisitada. Além disso, inúmeros textos populares invocam o ícone Joyce, seja usando seu nome ou imagem (adornado por chapéu, óculos e bigode). Tais referências, frequentemente encontradas nos lugares mais inesperados, apontam para o alcance cultural de sua reputação e a durabilidade de sua celebridade, questões relacionadas, mas bem distintas de seu legado literário.

Para colocar de outra maneira: James Joyce não apenas é reverenciado como um dos autores mais importantes do século 20, mas também aparece n’Os Simpsons, em animação, é claro, ao menos duas vezes. Um episódio mostra um carro alegórico dos “Romancistas Irlandeses Bêbados de Springfield”, com destaque para um personagem com cara de Joyce situado na frente, acenando para o público. Quando uma briga começa na multidão, ele pula para o meio da confusão. Vale notar que, na vida real, Joyce não era lá um grande lutador: na Paris dos anos 1920, circulava a história de que ele havia provocado um conflito e depois se escondido atrás de seu companheiro mais corpulento, exortando: “Pega ele, Hemingway!”. A falta de fidelidade à biografia de Joyce, no entanto, não vem ao caso. O fato de que n’Os Simpsons a imagem de Joyce era reconhecível tanto sublinha a permanência cultural do ícone, quanto sinaliza para as qualidades como que de culto entre seus fãs.
Joyce morreu em 1941, e quase dez anos depois ele já era uma pedra de toque para a cultura popular. Pelo menos foi o que aconteceu no cinema, ao ser mencionado em duas produções auspiciosas. O Terceiro Homem, de Carol Reed (1949), contém uma cena na qual o protagonista Holly Martins, um autor de livros de faroeste (do tipo que atrairiam o protagonista de “Um Encontro”) é erroneamente tido por um escritor de alta literatura e obrigado a participar uma seção de perguntas e respostas com literatos de Viena. Um jovem austríaco coloca uma série de questões que culminam com: “Onde situaria o sr. James Joyce?”. Esse contraste entre a alta e a baixa cultura, sugerido pelo escritor de pulp fiction e o legendário modernista repete-se na referência ao autor em Sunset Boulevard (1951), dirigido por Billy Wilder. Lá, o protagonista, Joe Gillis, é um roteirista que, ao ser acusado de não escrever seriamente, pergunta se prefeririam James Joyce (ou Dostoiévski). Esses momentos cinematográficos aludem, na superfície, a um contraste entre Joyce como um avatar das esferas mais elevadas da cultura e formas de entretenimento popular nas quais ele é mencionado. Porém, a comparação não é tão simples assim.

A autoconsciência sarcástica de tais cenas sugere uma relação mais próxima entre as noções de elite e de popular, um colapso das categorias de alto e baixo.
A complexidade continua em uma das imagens mais reproduzidas no universo joyceano: a fotografia tirada por Eve Arnold, em 1956, de Marilyn Monroe lendo Ulysses. O impacto previsto aqui depende da percepção de Monroe como uma vedete com cabeça de vento e a do romance como uma obra impenetrável. É claro, o primeiro impulso é perguntar se Monroe realmente leu o livro, algo ao qual Arnold se adiantou ao dizer que capturou a atriz em um momento de sincero relaxamento. Acima de tudo, a fotografia, que vem decorando livros de crítica joyceana ano após ano, mostra a cultura de Hollywood participando do status cultural rarefeito de Joyce.

Traduzido por Fabio Akcelrud Durão.