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sexta-feira, 28 de novembro de 2014

UM CONTO DE REIS

EU ACREDITO
 Fábio Carvalho

A chave do mistério. Estava no meu ponto de observação com três portas abertas, na mesma hora que a bela mamãe vinha saltitante subindo a rua, tão radiante como nunca havia visto. Ela puxava algo com rodinhas que a princípio achei que era uma mala. Elucubrei então que retornava de alguma viagem, indo alegre rever as três crias que ficaram com a avó. Depois que ela passou por mim, notei que o que ela puxava era um carrinho de bebê vazio. Resolvi a questão entendendo que ela deixara as crianças na escolinha, assim teria aquela tarde todinha livre só para si, felicidade total para uma jovem tão atarefada naquela missão criatória. Muito compreensível. Outra noite encalorada, eu dormia na minha cama embaixo do ventilador de teto ligado, coisa que nunca faço, quando vi e ouvi nitidamente uma mulher que pegava minha mão e sussurrava repetidas vezes: vamos ali comigo, vamos ali comigo...  Lutava para acordar, queria muito ir, não conseguia de jeito nenhum. Num estalo acordei e vi que era só um sonho, embora não parecesse, o relógio marcava três e vinte da manhã. Levantei- me e fui até a cozinha no escuro, tomei uma água gelada, voltei pra cama e tornei a dormir.  O sonho recomeçou só que agora eu sabia que era sonho mesmo dormindo. A mulher estava do outro lado da cama olhando pra mim de maneira lânguida e triste ao mesmo tempo, a realidade do meu quarto se dissipou e fui transportado para o alto de uma cachoeira, onde me equilibrava para seguir a trilha escorregadia sem nada para me segurar, desejava a todo custo voltar para meu quarto e revê-la, tudo foi ficando branco e acordei de novo, o relógio marcava seis e vinte da manhã. O fantasma da liberdade. Aquela vez vinha subindo a Rua do Ouro ao anoitecer, quando um conhecido, artesão de oratórios, me parou e contou a estória mais estrambótica do universo. Lembrei-me imediatamente que Tim Maia dizia o seguinte: mal de malandro é achar que todo mundo é otário. Tenho certeza que não era sonho. Voltei ao velho Maletta para almoçar no velho Lucas com amigos estrangeiros depois da sessão. Logo que encontrei meu lugar à mesa, a simpática garçonete me perguntou com o sorriso vermelho, se eu desejava algo para beber. Balançando a cabeça respondi: um rum. Ela se preparou para anotar perguntando: qual bebida então senhor? Falei com o dedo indicador apontando para cima: um rum. Ainda sem entender, enquanto todos ao nosso redor riam, sem graça se aproximou de mim e disse: desculpe senhor, mas qual bebida o senhor quer? Sem apertar a saia justa que estava repeti pausadamente: um rum com gelo e limão sem Coca-Cola. Ela abriu o sorriso mais vermelho de alívio, pediu-me três vezes desculpas, mandou o pedido para outro garçom servir, sumiu e nunca mais voltou. Fiquei com saudades pela tarde afora, gostei de seu entendimento concentrado. A concentração no gestual das pessoas também desperta os sonhos. Trilha sonora. Um disco voador me trouxe de volta para as alturas do edifício JK, quando despertei não sabia mais remontar meu trajeto dentro da espaçonave para chegar até aqui, lembrava-me apenas de uma imagem interna que tentarei descrever a seguir. Uma mulher negra linda, completamente nua, estava deitada no sofá de fibra ótica ao lado da escotilha aberta por onde se viam estrelas. Ela tinha cabelos castanhos dourados, encaracolados e compridos de aplique espalhados ao redor do seu rosto, olhos virados para cima na direção do céu, boca entreaberta por onde emitia estranhos sons lembrando o resfolego das pombas. Cada uma das mãos com unhas vermelhas cor de sangue seco estavam pousadas levemente nas virilhas, uma das pernas dobrada no encosto outra descia até o chão. Com o deslizar da nave gotas de suor emergiam por todo seu corpo, em movimento centrífugo cintilavam estrelas. Por um breve período durou esse vislumbre. Depois do transe ela se levantou em câmera lenta, passou por mim, foi até a cozinha americana de condutores transparentes, se pondo de costas pra minha visão, enquanto preparou um chá aromático. Notei que todo lado esquerdo de seu dorso até as ancas, era muito marcado de queimadura. Subitamente ela se virou e me perguntou com voz mansa: isto te incomoda? Voltei com pergunta: o quê? Ela trouxe uma xícara para mim, sentou-se ao meu lado e disse: minhas marcas, muitas pessoas sentem asco. Respondi: ao contrário acho até bonito. Ela sorriu com belos dentes e contou o que originou tamanha cicatriz, uma bola incandescente veio do céu em direção aos seus olhos, nesse momento no susto se virou, ao chocar-se com suas costas, a bola se transformou em champanhe borbulhante e fervente. Agora estava se submetendo a um tratamento inovador com a feiticeira mais velha da congregação para evitar queloide. Não doía mais nada. Cruzei com a Melodia toda de branco prata em Viracopos. O devaneio da parceria no filme nasceu de forma natural a partir das marinhas que registrava pelo celular. Na minha marola pensei em batizá-lo de Marinas Sem Consequência, mas parece que vai se chamar Marinas Ilhoas.  Vejo a belíssima atriz Hanna Schigulla, velhinha parecendo uma boneca de porcelana, falando sobre sua alucinante interpretação da personagem Maria Brown. Acho que tudo que fazemos é a reunião de todas as experiências que vivemos, disse seu diretor.  Não podemos considerar minha infância normal, eu era um adulto enquanto criança. O direito do mais forte é favorecer a liberdade do mais fraco, lhe dando um pouco de sua luz. Cinco filmes em um ano era uma meta meio alemã, o medo do goleiro diante do pênalti, um tipo de doença mental meu velho. Já na escola primária, houve por assim dizer, uma espécie de flash, sempre em busca da melhor luz. Nunca soube por que ela era tão linda na fotografia, Mata Hari do milagre econômico. Hashtag desejos e sonhos. Nas manchetes de todos os jornais daquele dia, estavam estampadas fotos de uma loura bonita com os seguintes dizeres: dentista é presa em seu consultório na zona nobre da cidade, por tráfico de armas e drogas. O Guará levantou-se no meio da multidão e disse num tom cândido: surpreendente jamais poderia imaginar que ela era dentista. Ela viu aparecer uma suave manhã e se calou discretamente, enquanto Matisse pintava. Para Jurerê tomamos o caminho do Rei, trapiches e mar aberto. Senti claramente a presença da minha tribo amalgamada nas pedras, no vento, nas areias e nas Tainhas que saltavam das águas cristalinas em minha direção. Magia, arte e tramóias ilhoas. Mesa de bar, cochilo no avião, em plano geral a morena esplendorosa desce na arrebentação até a altura do meio de suas coxas, com os braços erguidos, faz uma saudação ao infinito reluzindo toda beleza daquela ilha paradisíaca. As praias desertas continuam esperando por nós dois. Em Canasvieiras perto da Terra Santa, encontrei o Pajé Tibicuera, já careca e bastante envelhecido depois de ter atravessado todos os tempos, queimando um morrão. Ele confirma o que meu amigo grego me contara, que logo ali foram mortos e enterrados nossos antepassados, os verdadeiros donos daquela região de beira de mar. Mostrou-me ainda as formações de pedras talhadas pelas ondas que serviam de caldeiras para a feitura dos sopões de peixe e de crustáceos, que continuam abundando por aquela localidade no sul do Brasil. No sonho dos meus sonhos quando eu sonho o mundo está pra se acabar. No fato do relato quando eu faço o mundo está pra se acabar. Qualquer um, no enredo da graça nós somos cachaça pra se beber... Se beber. Você precisa morrer algumas vezes antes que você possa viver, disse Henry Chinaski em altos brados para o porteiro daquela espelunca na zona da luz vermelha. Só depois da meia noite fui à Taberna dos Piratas e a Capetaria, por lá novamente sorvi a loucura perfumada que se ofereceu para mim. Pelada na areia que coisa boa. Entre o polvo provocante e a lagosta atrevida, fiquei com a ostra gratinada na manteiga ao vinho branco, em frente ao mar aberto de Sambaqui na divisa com Santo Antônio de Lisboa. Isso tudo porque a onívora poesia pasoliniana devora muito de tudo: o claro e o obscuro, o coerente e o contraditório, o formal e o informal, o óbvio e o obtuso. Sem disfarçar, aquela mulher gorda se masturbava junto às pedras esquentadas pelo sol, no canto da praia onde todos andavam nus. Talismã cor de rosa. Hoje lá pelas seis horas da manhã, enquanto sozinho passava o café para o coletivo, tive um acesso interminável de riso ao lembrar não sei por que da música do Baiano e os Novos Caetanos que dizia o seguinte: Vou batê pá tú batê pá tú, pá tú batê, pá amanhã a pá não me dizer que eu não bati pá tú, pá tú podê batê.

domingo, 23 de novembro de 2014

A QUALQUER PREÇO


O regime do capital a qualquer preço faz parte do inconsciente coletivo do homem brasileiro. Não vai ser uma devassa nas grandes empresas do país, uma verdadeira caça as bruxas, que irá limpar o serviço público dos corruptos. Para isso ter algum valor é preciso modificar as relações entre o capital e o trabalho. O Brasil precisa de uma reforma geral e não jogo de cena política protagonizada por novos políticos sedentos de poder.
O regime do capital a qualquer custo leva as melhores pessoas a cometerem loucuras. Assim que surge a oportunidade do ilícito passam a sofrer do desequilíbrio áurico e se expõe ao opróbrio. São homens estudados, empresários, políticos, que mergulham na esbórnia esquecendo-se que tudo neste mercado tem o seu preço, surrupiar onde o pior é o melhor é provoca a cobiça no seu maior valor em um regime onde tudo que está acima de zero é lucro.
O verbo tergiversar é o mais usado hoje nas rodas dos burocratas em todas as relações com as elites aglomeradas dos bem sucedidos. Eles são homens que tem o perfeito conhecimento de onde se confabula, tramita e transita o ilegal, sempre se colocaram impunes e se sentem intocáveis.
Foi Brizola que criou o aforismo do saco de caranguejo de onde se puxa o primeiro e o resto sai todos agarrados, uns aos outros por seus fortes quelópodes.  
Acredito que só um governante que não tem nada a temer, pois não está envolvido em nenhum saco de caranguejo e que age com as cartas abertas, “como nunca antes aconteceu na história desse país”, proporciona transparência nas apurações dos ilícitos dos petroboys, “doa a quem doer” e só ele é quem pode propor as reformas necessárias para se colocar o país novamente no rumo certo.
Agora, é preciso avisar aos congressistas eleitos, aos políticos aliados e outros que desejam se alinhar, das metas propostas por um governo que se quer transformador da sociedade brasileira. Um Governo das Reformas Sociais e Naturais.
Podemos ter quatro anos de desenvolvimento para passar o país a limpo. Uma coisa de cada vez e assim não se estancando tudo de bom que já vem acontecendo.  
Agora parar com tudo para uma devassa da Petrobras, levando ao total descrédito a única grande empresa estatal que não foi ainda privatizada é inadmissível.  É isso que os mentores do caos querem que aconteça, pois só assim conseguirão atingir seus objetivos de privatização da estatal, “dita por eles de corrupta”, que descobriu uma das maiores reservas petrolífera do mundo, o Pré-sal, e entregá-la depois de um golpe ao capital financeiro internacional.
A elite empresarial será atingida a qualquer custo e pagarão caro pela soberba.  Ora! Eles não acreditam neles mesmo, acham o povo, os trabalhadores assalariados, os funcionários públicos, os profissionais e os pequenos empresários, uma coisa menor no país, que se posem se enganar fácilmente com qualquer trocado, pois querem crescer a qualquer custo.
Hoje a maioria dos brasileiros, que foram educados sem conhecimento e amor a cultura do seu país, são os figurantes de um novo pensamento moralista, conservador, religioso e por isso mesmo falso e ultrapassado, eles não tem discernimento social entre o certo e o errado, entre o bom e o mau.
O povo sofrido trabalhador, para sobreviver, viram empregados ou funcionários de grandes empresas ou do estado, e, por fim, tornam-se velhos e miseráveis, morrendo desamparado em algum hospital do subúrbio, pois eles, massa de manobras, a maioria desafortunada, não tiveram a capacidade e muito menos o conhecimento da arte de furtar.
Veja esse vídeo – vale a pena.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

O ÚLTIMO FILME DE ORSON WELLES


Enfim está pronto o filme perdido de Orson Welles “The Other Side of the Wind”  para estrear em 2015

O diretor começou a filmar em 1970, mas foi uma complexa teia de divergências financeiras que deixaram sua finalização truncada por mais de quarenta anos. Depois de uma longa negociação, Frank Marshall e Peter Bogdanovich trabalharam no material para finalizá-lo e exibi-lo em 2015.
Parece que, finalmente, depois de 45 anos, e passados durante todo este tempo uma rede infinita de contratempos, embaraços financeiros, interesses compartilhados, liminares e até mesmo golpes, o lendário filme seria "impossível" Orson Welles concluí-lo. Poucos dias atrás, a empresa pequena, quase ignorada Royal Road Entertainment e o conhecido produtor executivo Frank Marshall anunciaram que chegaram a um acordo com todas as partes envolvidas no conflito e está pronto para finalizar, o mais rápido possível, o filme de Welles.
O Outro Lado do Vento. Este é o lendário filme que Orson Welles começou a filmar em 1970 e cuja filmagem, de acordo com todas as indicações, ele teria completado seis anos depois. Mas só em 1 de Maio de 2015, no centenário do nascimento do grande diretor,  é satisfeita a história deste gênio, e a intenção dos atuais produtores é ter o filme pronto  nessa data.
"Se ele lesse em um jornal, você não acreditaria", disse Welles sobre a série de kafkiano emaranhados que vinha sofrendo o seu filme a partir do momento em que começou a filmar. "Será que você escreveu um roteiro?", Perguntou Peter Bogdanovich em 1970. "Quatro", ele respondeu. "Mas a maior parte do filme será improvisado." Este diálogo é reproduzido na página 209 do Citizen Welles (Este é Orson Welles, Grijalbo, 1994).
The Other Side of the Wind, conta a história de um cineasta veterano chamado Jake Hannaford. Concentra-se a ação na noite de sua morte, acidental ou não, durante a festa do seu 70º aniversário, realizada em uma mansão de Hollywood.
História da Hannaford é reconstruída, na forma da cidade do cinema, usando todos os tipos de materiais: fragmentos de filmes, (falsa) notícia, em casa dele e de outros, testando stills da câmera. Todo esse material vem através da filmagem do seu aniversário, feito por sua vez, por vários participantes, com pequenas câmeras super-8 caseiro e 16 milímetros, bem como câmeras de TV, presentes na festa. Intercaladas em fragmentos tirados do filme no momento em que  Hannaford  tem a intenção de ser  recebido de braços abertos em Hollywood. O que não acontece. Tendo em conta que a última coisa que Welles filmou e foi produzido em seu país estava Touch of Evil em 1957, entende-se que qualquer semelhança entre Hannaford  não é por acaso.
Welles levou a clarificar, no entanto, que ele Hannaford e não são iguais. "Eu amo-o tanto quanto eu odeio isso", disse ele, como ele poderia ter dito a qualquer de seus "heróis" como para Charles Foster Kane. "É um daqueles tipos de peito peludo", diz Bogdanovich, referindo-se ao status de Hollywood . A partir de então, como tudo com Welles, eram possíveis os modelos para Hannaford, multiplicar-se e confundir-se, do diretor de cinema mudo Rex Ingram até outro como John Ford, William Wellman, e mesmo Ernest Hemingway, que ele conhecia pessoalmente.
Na verdade, lembrando o autor de Paris era uma festa (que Welles teria compartilhado), The Other Side of the Wind, que numa primeira versão foi chamado The Sacred Beasts, começou como a história do relacionamento, com fortes elementos homoeróticos, entre um veterano e um jovem toureiro, depois sofreu a mutação dos personagens para um cineasta veterano e dois jovens: um discípulo bem-sucedido, ator do seu filme e o seu protagonista, que parecem serem mais ou menos apaixonados.
"Ele passou uma noite em Paris, andando por uma rua para frente e para trás, discutindo consigo mesmo em voz alta se era apropriado ou não ele fazer Hannaford", diz Bogdanovich. Sabiamente, Welles decidiu que não para evitar qualquer identificação mecânica entre ele e o personagem. O papel seria do seu amigo John Huston. Uma vez que a decisão foi tomada, após a produção começar, ele teve de se contentar, mais tarde na montagem, da ausência do protagonista nas primeiras cenas. Em outros papéis Susan Strasberg, Lili Palmer, Edmond O'Brien, Cameron Mitchell, seu eterno companheiro de viagem Paul Stewart, o veterano Mercedes McCambridge, sua parceira Oja Kodar e vários não atores apareceriam em cena, incluindo o próprio Bogdanovich e o crítico de cinema e historiador Joseph McBride. E também estariam em cena um grupo de jovens cineastas: Dennis Hopper, Claude Chabrol, Paul Mazursky e Henry Jaglom, entre outros.
Fotografado por Gary Graver (que era um convidado em uma das edições do Bafici, apresentando um pequeno refletor dedicado a Welles), The Other Side of the Wind é uma definição generalizada das contas de Hollywood com Welles. E não apenas Hollywood, os delegados de produtoras aparecem na velha Hollywood, apresentados como um bando de caras machistas reacionários da nova Hollywood (Hopper & Co.), com o qual não tem muita piedade e jornalistas esnobes insuportáveis, ​​fazendo alusões claras a pessoas reais. Palmer faz Lili, Marlene Dietrich, que era uma amiga próxima Welles (Welles foi, de fato, o único diretor de cinema para o qual a estrela de O Anjo Azul sentia um pouco de respeito).  Orson, segundo Hannaford, é um crítico de cinema em uma transposição clara do famoso e temido Pauline Kael.
Mesmo seu amigo Bogdanovich, que chegou a aceitar a liderança de um filme que antes havia sido oferecido a Welles, faz um discípulo traidor, de sobrenome (Lago) Otterlake. Mas isso não é tudo: o filme que está filmando Hannaford (chamado The Other Side of the Wind)  é uma espécie de falso Antonioni, cheio de tempo morto e personagens pensativo, com muito sexo e questão de violência para vender aos executivos de Hollywood. As cenas de sexo são encenadas, é claro, fixada por sua amante (e herdeira) Oja Kodar.
Tanto quanto se sabe, Welles completou as filmagens de The Other Side of the Wind em 1976 e passou a editar, num total de pelo menos, 40 minutos. Que representam cerca de metade das filmagens. Ele começou a financia-lo com dinheiro do bolso e de Oja Kodar (estimando-se que entre ambos chegou-se a gastar perto de um milhão de dólares), não encontrou ninguém interessado em investir um tostão em Hollywood e acabou na parceria com uma empresa de produção de origem iraniana. A empresa, chamada Les Films d'Astrophore, situada na França, e do seu produtor local, Dominique Antoine, a quem Welles tinha toda a confiança do mundo agiu como seu representante.
Foi no tempo de Shah Reza Pahlevi, que estava interessado em promover a modernização do seu país, investindo em cultura. Aconteceu que o proprietário do Les Films d'Astrophore era seu irmão. Mas é aí que surge a terceira etapa da produção, um produtor espanhol passa a se envolver, e a mesa começa a tremer. O produtor espanhol (o que seria ninguém menos que Andrés Vicente Gómez, atualmente um dos maiores do país) começou a receber dinheiro dos iranianos, mas para Kodar e Orson diziam que os iranianos não estavam colocando nada. Welles acreditava nele e até Antoine Dominique tornou-se suspeito e acabou descobrindo a verdade. Mas eles nunca poderiam recuperar um centavo do bolso de Gomez.
By the way, Welles viajou para Los Angeles para receber o Prêmio de Realização de Vida (prêmio de Lifetime Achievement), emitido pelo American Film Institute. Ele não perdeu a oportunidade de apresentar ao público um par de trechos de The Other Side of the Wind, deixando saber a todos de Hollywood que precisava de dinheiro para terminá-lo (já tinha começado a montar). Em um jogo incrível de espelhos, o primeiro desses fragmentos mostrou Jake Hannaford (o pesonagem) mostrando um trecho de The Other Side of the Wind, a um grupo de produtores de Hollywood, com a intenção de investir no filme.
Na realidade (não o filme), um produtor teve pena que o grande cineasta americano estava filmando com seu próprio dinheiro e ofereceu o filme aos iranianos ... Os iranianos não aceitaram. Foi a última negociação feita por um produtor de Hollywood para The Other Side of the Wind. Welles queria mata-lo.
O que ele poderia fazer para sair da junção e das acusações de Pahlevi? Óbvio: substituir seu irmão na direção de Les Films de l'Astrophore, colocando no seu lugar um administrador eficiente, a primeira coisa que surgiu foi tomar o controle de The Other Side of the Wind pelo próprio Orson. Propuseram então que Welles poderia mostrar o que ele havia montado lá para os seus amigos, enquanto L'Astrophore tendia a fazer sua própria montagem e a distribuição comercial internacional.
Antes Welles não teve tempo de dizer duas ou três pequenas palavras, a situação mudou um pouco: o xá havia sido chutado e agora os mulás governavam o Irã. E para os aiatolás The Other Side of the Wind importava tanto como os direitos das mulheres. A cópia voltou para as mãos do irmão mais velho do xá; Welles queria forçá-los a se ajustar ao filme na França, pois não podia neste momento se dar ao luxo de caminhar de volta para a Europa.  A Justiça francesa levou dez anos para definir sobre a posse dos negativos que estavam em Paris. Quando o fizeram, Orson Welles morreu. Mas não antes de montar esses 40 minutos de The Other Side of the Wind.
Após sua morte, parte da propriedade passou para a viúva, a atriz Paola Mori, da qual nunca havia sido separado. Mori morreu em 1986, um ano depois de Orson, legando a propriedade do filme a sua filha, Beatrice Welles. Mas antes de sua morte, Welles fez uma reverência para Oja Kodar, tanto na propriedade como no controle artístico de todos os seus projetos inacabados, incluído, é claro, The Other Side of the Wind. Foi a intervenção ativa Kodar, que também colocou dinheiro nele, que se deu continuidade ao projeto. Depois disso uma longa batalha legal entre Kodar e todos aqueles que queriam acabar o filme, incluindo Peter Bogdanovich, Joseph McBride Gary Graver e Beatrice Welles, que tratou de bloquear sistematicamente todos no projeto.
A batalha só terminou. Depois de quase 30 anos de disputa, há poucos dias Beatrice Welles finalmente concordou em deixar The Other Side of the Wind ser finalizado na montagem, projetando a sua estreia 2015. Assim, www.wellesnet.com , o site não-oficial, mas altamente confiável, diz que Frank Marshall e Peter Bogdanovich vão liderar a finalização do projeto. Eles se conheceram no set de The Other Side of the Wind, onde Marshall fez seus primeiros passos como produtor, antes de produzir para Bogdanovich, Paper Moon e Daisy Miller e The Last Waltz Scorsese. Os membros do plano Marshall são Filip Jan Rymsza, a empresa Real Road Entertainment, e o holandês Jens Koethner Kaul, que comprou sua parte de Les FIMS de l'Astrophore e de acordos com ambas as viúvas. Os três disseram que não precisam mexer em qualquer coisa do filme. Basta adicionar um efeito em uma cena importante, que ocorre em um drive-in. Eles vão trabalhar com os famosos 40 minutos montados Welles. Kodar, que está se preparando para o transporte aéreo de sua casa, na Croácia, orienta a montagem do resto do material sobre as instruções deixadas por Welles. Eles também têm quatro scripts (um publicado no francesa Cahiers du Cinéma), nada menos do que 1.083 rolos de negativo parisiense, que estão atualmente a ser revisto e catalogados e a assistência de Bogdanovich, que sabe o filme de cor. Há também uma montagem de 95 minutos, feita por Gary Graver, que é confiável, Marshall e seus associados se comprometeram a considera-la.

De repente, o que durante décadas foi um círculo vicioso parece ter se tornado virtuoso: técnicos de laboratório garantir que os negativos estão em boas condições, Marshall e seus homens estão em busca de um distribuidor, uma edição está prevista em DVD, preenchido por extras e cenas alternativas e Bogdanovich se atreveu a afirmar que: - "Pelo que pude ver, The Other Side of the Wind, pode ser o melhor filme de Orson Welles".

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Um Conto de Reis

MINHA ATRIZ NAQUELES DIAS
 Fábio Carvalho

Ave Maria Nossa Senhora! No mundo há pessoas que dão pena, outras dão asas. Uma frase anônima que não lembro mais de onde recolhi. A chuva tamborilava no telhado de zinco quente enquanto a gata branca, imóvel como uma esfinge, olhava dentro dos meus olhos fixamente. Comecei a ficar incomodado com aquela inquisição enigmática, dispersei-me então para o outro cômodo interrompendo meus afazeres como se estivesse fugindo da cruz assustado pelo maremoto que se passava dentro de mim. É certo que uma hora terei que enfrentá-lo, não existe transição sem turbulência onde é necessário ao menos um pouco de coragem para arriscar. Consegui escapar ainda longe do mar. Mário, o ator, me mostrou uma colagem da sua mais nova safra, quando fui visitá-lo no trás ante ontem. Vi mucos, mucosas, glandes, vulvas, clitóris, pequenos e grandes lábios, mamilos, gengivas, céus da boca e línguas em primeiro plano por sobre abstrações sem cor ou descoloridas antes do preto e do branco. A cor de amora e o calor umedecido construíram uma tessitura de sexualidade profunda, violenta, explodindo como mênstruos na água. Na conceituação do artista plástico ali estavam o movimento e o equilíbrio convergentes para um ponto de fuga, era isto que o resultado da obra revelava. Pensei em vão.  A linguagem é secreta na viagem livre e solta com passagem só de ida. Belo quadro. Mudando de pau pra cavaco, continuando nas artes plásticas, na segunda feira pela manhã estavam parados em frente à banca tem tudo do Salim, o Véio, o Feio e o Pereirinha, conversando entre pausas com muita seriedade. Disfarcei comprando um jornal e percebi que negociavam sobre a divisão das duas garrafinhas pitchula com pinga que tinham conseguido comprar na vaquinha, assunto realmente muito importante. Negativos valem ouro. Tortura mental, saudade é o meu mal. Válvula de escape, enquanto todos corriam atrás da idéia fugidia, parecia que nada ia dar certo, logo ela, a primeira do lado B veio me salvar: Rosa Menina. O tempo todo dia é menos do que ontem. Nem estou sabendo se hoje é ontem ou se agora é amanhã. Também pra que saber. Dizem que não existe vida sem esperança, hoje estou completamente desesperançado. Vou votar, coisa que não faço há anos por desobediência civil. Desci das alturas, vejo na esquina da Rua dos Guajajaras com a Avenida Amazonas uma mendiga negra sentada em cima de vários sacos de plástico cantando em altos brados afinadíssimos, com letra corretíssima, o Hino Nacional, algo de dar inveja a qualquer desportista que mastiga e finge que sabe o que finge cantar em close com olhos embargados. Quem vem lá, chegando lá de trás do mar. Refoga e escalda o sururu, apura o vinho de caju amigo. A bela bailarina Flor não se animou com nenhuma das músicas de vários gêneros que as outras mulheres da festinha no apê colocaram para dançar, curioso, perguntei qual música movia a bailarina a bailar, ela respondeu: é samba-rock meu irmão. Depois mais tarde ouvi a Flor bailarina falando para a Mariana que seu esmalte preferido chama-se “Flores para Iemanjá”, verde azulejo piscina. Luxuriante é a mesa vestida de chita com o verde translúcido da garrafa de Heineken misturada lá fora com lua crescente já visível no céu azul anil acima da comunidade multicor. A origem do mundo. Nada como a tristeza para te trazer a beleza, enquanto a alegria é a prova dos nove. O Lírio, que é uma planta subterrânea, se estressa com tanta secura quando ao primeiro pingo de água se reproduz loucamente nascendo em flor para salvar a espécie. Segundo disse o Rodolfo durante a primeira cerveja pública depois da eleição de frente ao lava-jato onde a garçonete da padaria trocava a roupa de porta aberta. O soutien e a calcinha eram pretos em combinação. Brilho de purpurinas, bolas e serpentinas, som vibrando metais, nus foliões, casais e eu sem ter você... Estou totalmente Moacir Santos. E veio a Quarta- Feira, cinzas, contrição e Orfeu. Peras de Rio Negro na falta de água. Recentemente aconteceu com meu pai um fato curioso, ele foi roubado dentro de casa pela menina que minha mãe trouxera do interior para trabalhar com eles. Ela levou uma pochete contendo todos os documentos, cartões de banco e algum dinheiro. Foi identificada pela câmera de segurança do caixa eletrônico, que ela se utilizou para sacar tudo que pode. Muito a contragosto, já que gostava da menina, meu pai foi convencido pelo banco a registrar uma ocorrência, fui com ele. Na delegacia, como não tinha mais documentos, o policial começou a procurar pelo seu nome na central de identificações, não encontrou.  Então pediu a filiação e tentou em nome do meu avô falecido em 1940, sem sucesso. Meu pai não lembrava o nome completo de sua mãe, assim ligou para minha tia, sua irmã, para perguntar: ô Dayse, como é que mamãe chamava mesmo? Nada foi encontrado. Com um sorriso maroto ele se virou para mim, do alto dos seus oitenta anos, perguntando sem duvidar: será que eu não existo? Certa vez o Guará me contou que ficou mais de dez anos sem vir a BH, com isso sem ver seus familiares, esteve durante este tempo viajando cinematograficamente pelo mundo afora. Rio, Londres, Paris, Marrocos, Índia, Afeganistão, Trancoso e por aí vai. Um dia sem aviso voltou, desceu do taxi em Santa Tereza em frente à sua casa, onde uma senhora regava as plantas. Foi correndo abraçá-la e beijá-la dizendo: mamãe que saudade! No que a senhora retrucou prontamente: não sou sua mãe, sou a vizinha, sua mãe está lá no quintal cuidando da horta. A sensibilidade apocalíptica. Voz interior que fala: felicidade inexprimível de estar ali, tendo em volta a “Rosa da África”. O professor olha a estudantada preta, invadido por aquela exaltante voz interior: o seu “idealismo”, o seu “estado de poeticidade”... Escreveu Pier Paolo Pasolini em “O Pai Selvagem”.  Continuei vagando, deambulando pelo mesmo trajeto, coisa que está enchendo meu saco. Cambiar se faz necessário.  Depois dessas implosões inter-galáticas, consegui terminar mais um pequeno filme. Nascido de um escrito que fiz por encomenda do meu ouvido e dos planos que filmei com a camereta fotográfica ao hazard, esse quadro movimento musicado me mostrou outras possibilidades de prazer, me fez enxergar mais adentro. Próximo ao meu inferno astral, não podemos dificultar o amadurecimento.  Não sei por que falo no plural novamente, deve ser meu outro eu. O Pica Pau está recostado em um galho de árvore sonhando com o prêmio da loteria que ele tem certeza que vai ganhar. Dentro do balãozinho que indica seu sonho está escrito o que o dinheiro vai lhe trazer: mulheres, iates, mulheres, mansões, mulheres, carrões, mulheres, viagens, mulheres, caviares, mulheres, champagnes, mulheres, banquetes, mulheres e etc. A mulher tem muito mais complexidade do que mulheres. Não deixa de ser engraçadinho o sonho do Pica Pau, seria mais ou menos como ser amado ou ser o amado. Naquele final de manhã, caí num botequim horroroso na Rua dos Caetés depois do teste de projeção, ele já estava ficando até agradável quando fui ao mictório e vi um cartaz onde estava escrito em letras garrafais: proibido dançar. Meu corpo de baile ali não teria vez, pensei com grande desilusão. Decidi parar de fumar e beber de uma tacada só, achando que não iria mais me reconhecer quando me olhasse no espelho, apesar do entorno insistir que esse pensamento era uma tremenda bobagem. Novamente ela sorriu para mim e passou. Fui cedo ao Mercado Central em busca de um prato feito, tudo estava lotado, de súbito encontrei-me com o Biscoito, o mundo se encheu de esperanças mais uma vez, subi de elevador.


quarta-feira, 12 de novembro de 2014

LUCIDEZ E COERÊNCIA

10/11/2014

OS PILARES DA ESTUPIDEZ
Mauro Santayana

(Jornal do Brasil)

- Está em curso, há anos, nas "redes sociais" insidiosa campanha de agressão à democracia e crescentes ataques às instituições.

Quem cala, consente. Os governos do PT têm feito, em todo esse período, cara de paisagem. Nem mesmo quando diretamente insultados, ou caluniados, os dirigentes do partido tomaram qualquer providência contra quem os atacava, ou atacava as instituições, esquecendo-se de que, ao se omitirem, a primeira vítima foi a democracia. Nisso, sejamos francos, foram precedidos por todos os governos anteriores, que chegaram ao poder depois da redemocratização do país.

Mergulhados na luta política e na administração cotidiana dos problemas nacionais, nenhum deles percebeu que o primeiro dever que tínhamos, nesta nação, depois do fim do período autoritário, era regar e proteger a frágil flor da Liberdade, ensinando sua importância e virtudes às novas gerações, para que sua chama não se apagasse no coração dos brasileiros. Se, naquele momento, o da batalha pela reconquista do Estado de Direito, cantávamos em letras de rock que queríamos votar para presidente, hoje parece que os polos da razão foram trocados, e que vivemos sob a égide da insânia e  da vilania.

Em absoluta inversão de valores, da ética, da informação,  da própria história, retorna a velha balela anticomunista de que Jango — um latifundiário liberal ligado ao trabalhismo — ia implantar uma ditadura cubano-soviética no Brasil, ou que algumas dezenas de estudantes poderiam derrubar, quatro anos depois, um regime autoritário fortemente armado, quando não havia nenhuma condição interna ou externa para isso.

Agora, para muitos que se manifestam pela internet, quem combatia pela democracia virou terrorista, os torturadores são incensados e defendidos, e prega-se abertamente o fim do Estado de Direito, como se o fascismo e o autoritarismo fossem solução para alguma coisa, ou o Brasil não fosse ficar, política e economicamente, imediata e absolutamente, isolado do resto do mundo, caso fosse rompida a normalidade constitucional.

Ora, os mesmos internautas que insultam, hoje, o Judiciário, sem serem incomodados — afirmando que o ministro Toffoli fraudou as eleições — já atacaram pesadamente Aécio Neves e sua família, quando ele disputava a indicação como candidato à Presidência pelo PSDB em 2010. São eles os mesmos que agridem os comandantes militares, acusando-os de serem "frouxos" e estarem controlados pelos comunistas, e deixam claro seu desprezo pelas instituições brasileiras, incluindo as Forças Armadas, pedindo em petição pública à Casa Branca uma intervenção dos Estados Unidos no Brasil, como se fôssemos reles quintal dos EUA, quando são eles os que se comportam como abjetos vira-latas, em sua patética submissão ao estrangeiro.

São eles os que defendem o extermínio dos nordestinos e a divisão do país, como se apenas naquela região a candidata da situação tivesse obtido maioria, e não estivéssemos todos misturados, ou nos fosse proibida a travessia das fronteiras dos estados.

São eles  que inventam generais de araque, supostos autores de manifestos igualmente falsos, e usam, sem autorização, o nome de oficiais da reserva, em documentos delirantes, tentando manipular, a todo momento, a base das Forças Armadas e as forças de segurança, dando a impressão de que existem sediciosos no  Exército, na Marinha, na Aeronáutica, quando as três forças se encontram unidas, na execução de projetos como o comando das  Operações de Paz da ONU no Haiti e no Líbano; as Operações Ágata, em nossas fronteiras; o novo Jato Cargueiro Militar KC-390 da Embraer; o novo Sistema de Mísseis Astros 2020 da Avibras; ou o novo submarino nuclear brasileiro, no cumprimento, com louvor, de sua missão constitucional.

O site SRZD, do jornalista Sérgio Rezende, entrou em contato com oficiais militares da reserva, que supostamente teriam "assinado" um manifesto, que circula, há algum tempo, na internet. O texto se refere a "overdose de covardia, cumplicidade e omissão dos comandantes militares" e afirma que, como não há possibilidade de tirar o PT do poder pelas urnas, é preciso dar um golpe militar, antes que o Brasil se transforme em uma "Cuba Continental".

Segundo o SRZD, todos os oficiais entrevistados, incluindo alguns generais, negaram peremptoriamente terem assinado esse "manifesto" e afirmaram já ter entrado em contato com o Ministério do Exército, denunciando tratar-se o e-mail que divulgava a mensagem de uma farsa e desmentindo sua participação no suposto movimento.

Por mais que queiram os novos hitlernautas, os militares brasileiros sabem que o governo atual não é comunista e que o Brasil não está, como apregoam os “aloprados” de extrema direita que tomaram conta da internet, ameaçado pelo comunismo internacional.

Como dizer que é comunista, um país em que os bancos lucram bilhões, todos os trimestres; em que qualquer um — prerrogativa maior da livre iniciativa — pode montar uma empresa a qualquer hora, até mesmo com apoio do governo e de instituições como o Sebrae; no qual investidores de todo o mundo aplicam mais de 60 bilhões de dólares, a cada 12 meses,  em Investimento Estrangeiro Direto; onde dezenas  de empresas multinacionais se instalam, todos os anos, junto às milhares já existentes, e mandam, sem nenhuma restrição, a cada fim de exercício, bilhões e bilhões de dólares e euros em remessa de lucro para e exterior?

Como taxar de comunista um país que importa tecnologia ocidental para seus armamentos, tanques, belonaves e aeronaves, cooperando, nesse sentido, com nações como a França, a Suécia, a Inglaterra e os Estados Unidos? Que participa de manobras militares com os próprios EUA, com países democráticos da América do Sul e com democracias emergentes, como a Índia e a África do Sul.

Baboso, atrasado, furibundo, ignorante, permanentemente alimentado e realimentado por mitos e mentiras espatafúrdias, que medram como fungos nos esgotos mais sombrios da Rede Mundial, o anticomunista de teclado brasileiro é sobretudo hipócrita e mendaz.

Ele acredita "piamente" que Dilma Rousseff assaltou bancos e matou pessoas e que José Genoíno esquartejou pessoalmente um jovem, começando sadicamente pelas orelhas, quando não existe nesse sentido nenhum documento da ditadura militar.

Ele vê em um site uma foto da Escola Superior de Agricultura da USP, a Esalq, situada em Piracicaba, e acredita, também, "piamente", que é uma foto da mansão do "Lulinha", que teria virado o maior fazendeiro do país, junto com seu pai, sem que exista uma única escritura, ou o depoimento — até mesmo eventualmente comprado — de um simples peão de fazenda ou de um funcionário de cartório, que aponte para alguma prova ou indício disso, como de outras "lendas urbanas", como a participação da família do ex-presidente da República na propriedade de um grande frigorífico nacional.

Ele crê, piamente, e divulga isso, todo o tempo, que todos os 600 mil presos brasileiros têm direito a auxílio-reclusão quando quase 50% deles sequer foram julgados, e menos de 7% recebem esse benefício, e mesmo assim porque contribuíram normalmente, antes de serem presos, para a Previdência, durante anos, como qualquer trabalhador comum.

Nada contra alguém ser de direita, desde que se obedeçam as regras estabelecidas na Constituição. Nesse sentido, o senhor Jair Bolsonaro presta um serviço à democracia quando diz que falta, no Brasil, um partido com essa orientação ideológica, e já se declara candidato à Presidência, por essa provável agremiação, ou por essa parcela do eleitorado, no pleito de 2018.  

Os mesmos internautas que pensam que Cuba é uma ditadura contagiosa e sanguinária, da qual o Brasil não pode se aproximar, ligam para os amigos para se gabar de seu novo smartphone ou do último gadget da moda, Made in República Popular da China, que acabaram de comprar.

Eles são os mesmos que leem os textos escritos, com toda a liberdade, pela opositora cubana Yoami Sanchez —  já convenientemente traduzidos por "voluntários" para 18 diferentes idiomas — e não se perguntam, por que, sendo Cuba uma ditadura, ela está escrevendo de seu confortabilíssimo, para os padrões locais, apartamento de Havana, e não pendurada em um pau de arara, ou tomando choques e sendo espancada na prisão.

Mas  fingem ignorar que 188 países condenaram, há alguns dias, em votação de Resolução da ONU, o embargo dos Estados Unidos contra Cuba, exigindo o fim do bloqueio.

Ou que os EUA elogiaram e agradeceram a dedicação, qualidade e profissionalismo de centenas de médicos cubanos enviados pelo governo de Havana para colaborar, na África,  com os Estados Unidos, no combate à pandemia e tratamento das milhares de vítimas do ebola.  

Ou que a Espanha direitista de Mariano Rajoy, e não a Coreia do Norte, por exemplo, é o maior sócio comercial de Cuba.

Ou que há  poucos dias acabou em Havana a XXXIII FIHAV, uma feira internacional de negócios  com 4.500 expositores de mais de 60 países — aproximadamente 90% deles ocidentais — com a apresentação, pelo governo cubano, a ávidos investidores  estrangeiros, como os italianos, canadenses e chineses, de 271 diferentes projetos de infraestrutura, com investimento previsto de mais de 8 bilhões de dólares.

Radical, anacrônica, desinformada e mais realista que o rei, a minoria antidemocrática que vai, eventualmente, para as ruas e se manifesta raivosamente na internet querendo falar em nome do país e do PSDB, pedindo o impeachment da presidente da República e uma intervenção militar, ou dizendo que é preciso se armar para uma guerra civil, baseia-se na fantasia de que a nação está dividida em duas e que houve fraude nas urnas, mas se esquece, no entanto, de um "pequeno" detalhe:  quase um terço dos eleitores, ou mais de 31 milhões de brasileiros, ausentes ou donos de votos brancos e nulos, não votaram nem em Dilma nem em Aécio, e não podem ser ignorados, como se não existissem, quando se fala do futuro do país.

Cautelosa e consciente da existência de certos limites intransponíveis, impostos pelo pudor e pela razão, a oposição tem se recusado a meter a mão nessa cumbuca, fazendo questão de manter razoável distância desse pessoal.

Guindado, pelo voto, à posição de líder inconteste da oposição, o senador Aécio Neves, presidente do PSDB, por ocasião de seu primeiro discurso depois do pleito, no Congresso, disse que respeita a democracia permanentemente e que "qualquer utilização dessas manifestações no sentido de qualquer tipo de retrocesso terá a nossa mais veemente oposição. Eu fui o candidato das liberdades, da democracia, do respeito. Aqueles que agem de forma autoritária e truculenta estão no outro campo político, não estão no nosso campo político".

Antes dele, atacado por internautas, por ter classificado de "antidemocráticas" as manifestações pedindo o impeachment da presidente Dilma e a volta do autoritarismo, o agrônomo e assessor de marketing Xico Graziano, também do PSDB, já tinha afirmado que "a truculência dessa cambada fascista que me atacou passa de qualquer limite civilizado. No fundo, eles provaram que eu estava certo: não são democratas. Pelo contrário, disfarçam-se na liberdade para esconder seu autoritarismo".

E o vice-presidente nacional do PSDB, Alberto Goldman,  também negou, no dia primeiro, em São Paulo, que o partido ou a campanha de Aécio Neves estivessem por trás ou apoiassem — classificando-as de "irresponsáveis" — as manifestações pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff.

É extremamente louvável a iniciativa do presidente da OAB, Marcus Vinícius Furtado Côelho, de pedir a investigação e o indiciamento, que já estão em curso, pela Polícia Federal, com base na Lei do Racismo por procedência, dos internautas responsáveis pela campanha contra os nordestinos, lançada logo após a divulgação do resultado da eleição.

Mas, se essa campanha é grave, mais grave ainda, para toda a sociedade brasileira, tem sido a pregação constante, que já ocorre há anos, pelos mesmos internautas, da realização  de um Golpe de Estado, do assassinato e da tortura de políticos e intelectuais de esquerda, e de "políticos" de modo geral, além do apelo à mobilização para uma guerra civil, incluindo até mesmo a sugestão da compra de armas para a derrubada das instituições.

Cabe ao STF, ao Ministério Público, ao TSE, e aos tribunais eleitorais dos estados, que estão diretamente afeitos ao assunto, e à OAB, por meio de seus dirigentes, pedir, como está ocorrendo nos casos de racismo, a imediata investigação, e responsabilização, criminal, dos autores desses comentários, cada vez mais rançosos e afoitos, devido à impunidade, e o estabelecimento de multas para os veículos de comunicação, que os reproduzem, já  que na maioria deles existem mecanismos de "moderação" que não têm sido corretamente aplicados nesses casos.

A Lei 7.170 é  clara, e define como "crimes contra a Segurança Nacional e a Ordem Política e Social, manifestações contra o atual regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito".

Há mais de 30 anos, pelas mãos de Tancredo Neves e de Ulisses Guimarães — em uma luta da qual Aécio também participou — e de milhões de cidadãos brasileiros, que foram às ruas, para exigir o fim do arbítrio e a volta do Estado de Direito, o Brasil reconquistou a democracia, pela qual havia lutado, antes, a  geração de Dilma Rousseff, José Dirceu, José Serra e Aluísio Nunes, entre outros.

Por mais que se enfrentem, agora, essas lideranças, não dá para apagar, de suas biografias, que todos tiveram seu batismo político nas mesmas trincheiras,  enfrentando o autoritarismo.

Cabe a eles, principalmente os que ocupam, neste momento, alguns dos mais altos cargos da República, assumir de uma vez por todas sua responsabilidade na defesa e proteção da democracia, para que a Liberdade e o bom-senso não esmoreçam, nem desapareçam, imolados no altar da imbecilidade.

Jornalistas, meios de comunicação, Judiciário, militares, Ministério Público, Congresso, Governo e Oposição, precisamos, todos, derrubar os pilares da estupidez, erguidos com o barro pisado, diuturnamente, pelas patas do ódio e da ignorância, antes que eles ameacem a estabilidade e a sobrevivência da nação, e da democracia.

sábado, 8 de novembro de 2014

Cartas Filosóficas


Três cartas de Henri Bergson para Gilles Deleuze
Trad.: Rodrigo Lucheta

PRIMEIRA CARTA
Villa Montmorency, Av. des Tilleuls, 18, Auteuil-Paris
Caro senhor,
Não quis agradecer-lhe pelo amável envio de sua obra antes de ter encontrado tempo para lê-la. O estudo que o senhor oferece a honra de me consagrar é tão denso, e eu me encontro tão sobrecarregado de ocupações, que precisei esperar até a semana passada para tomar conhecimento dele – ainda que não tenha podido fazê-lo senão de uma maneira bastante superficial. Irei relê-lo; mas desde já cumpre lhe dizer o quanto fiquei interessado por este retrato /fiel/ que o senhor faz de minha filosofia.
No que concerne ao uso do conceito de intuição, o senhor me compreendeu muito bem. O senhor tem muita razão em lembrar já na primeira página: a intuição jamais foi para mim sinônimo de sentimento, de inspiração, menos ainda de instinto ou de simpatia confusa; ela na verdade é o contrário, e isso porque eu disse que ela introduzia na filosofia o espírito de precisão.
Para dizer a verdade, a <teoria da> intuição, à qual o senhor consagra o primeiro capítulo de seu estudo, não se depreende, aos meus olhos senão muito tempo depois, da duração: aquela deriva e não pode ser compreendida sem esta. É por isso que o senhor tem mais uma vez razão em apresentar a intuição como um método, ao invés de apresenta-la como uma teoria propriamente dita. A intuição de que falo é antes de tudo intuição da duração, e a duração prescreve um método. Qualquer resumo dos meus pontos de vista os deforma em seu conjunto e os expõe, por isso mesmo, a uma série de objeções: se não os situarmos em primeiro lugar, e se não os fizermos retornar sem cessar a essa intuição especial que é o centro mesmo da doutrina – com tudo o que ela supõe de esforço e às vezes de violência para desfazer os vincos contraídos por nossas maneiras habituais de pensar.
A uma mulher que um dia me pediu para lhe expor minha filosofia em algumas palavras que ela pudesse compreender, achei por bem dar a seguinte resposta: “Senhora, eu disse que o tempo era real, e que ele não era espaço”. Ignoro se foi suficiente para esclarecer minha interlocutora, mas tomo por muito salutar esse tipo de exercício de contração filosófica que obriga a por à nu e a determinar com uma fórmula simples e sugestiva a intuição geradora de uma doutrina ou de um sistema de pensamento. É lamentável que ele não seja mais largamente praticado nas salas de aula.
Enfim, eu dizia – o tempo é real. Mas que tempo, que realidade? Toda a questão está aí, o senhor percebeu muito bem. A duração de uma realidade que se faz, de uma realidade se fazendo, eis aí o que, de uma obra a outra, eu constantemente visei. Não há mistério algum, nenhuma faculdade oculta, e é por isso que eu tomei o cuidado de ilustrar este ponto inspirando-me em experiências as mais ordinárias. Tome o esgrimista em plena ação, veja a direção volúvel de seus movimentos, o devir que carrega seus gestos. Quando ele vê chegar a si a ponta [da espada] de seu adversário, ele bem sabe que foi o movimento da ponta que carregou a espada, a espada que puxou com ela o braço, o braço que esticou o corpo, este alongando-se a si mesmo: não dividimos como seria preciso, e não se sabe executar um afundo senão quando se sente assim as coisas. Alocar em ordem inversa é reconstruir e, por consequência, filosofar; é percorrer à contrapelo o caminho aberto pela intuição imediata do movimento que se faz. Posso me vangloriar de ter praticado bastante a esgrima na minha juventude para saber o que há de artificial nesse gênero de recomposição abstrata: entretanto é assim que raciocinamos mais frequentemente. O aprendiz na esgrima sem dúvida pensa assim os movimentos descontínuos da lição, ao passo que seu corpo se abandona à continuidade do assalto. Ele recorta mentalmente seu próprio impulso em uma sucessão de atitudes e de posições. É-lhe permitido imaginar, trabalhando o encadeamento das figuras, que a flexão dos joelhos ou tal movimento de ombro que, transmitindo-se passo a passo à mão, fará mover a espada em direção ao alvo. Na falta de flexibilidade, ele ganhará talvez em exatidão. É assim que é preciso se exercitar, mas não se deve esquecer de sentir. Contam que o barão de Jarnac preparou-se para o duelo contratando os serviços de um mestre italiano de esgrima; mas o essencial do golpe ensinado consistia em localizar o momento propício. Aliás, a postura rigorosa da análise não seria tão eficaz se o hábito contraído no decurso de uma longa prática não conferisse à inteligência uma certeza próxima do instinto. Esses dois movimentos que caminham geralmente em sentido contrário estão muito próximos da coincidência quando acontece de o esgrimista inventar, no fogo da ação, uma nova esquiva, uma nova maneira de tocar – e eu acredito que existe invenção tanto nos esportes quanto nas artes.
Fiquei particularmente sensibilizado com as passagens que o senhor consagra à Evolução Criadora. Assim como a matéria é uma repercussão do élan criador, ao invés de sua negação ativa, a inteligência é uma distensão da intuição, ao invés de uma tendência oposta: isso quer dizer que há entre elas uma afinidade essencial. Neste ponto fui geralmente mal compreendido, e lhe sou grato por ter posto essas coisas a claro. Fazem-me passar por um adversário da inteligência, um canto de anti-intelectualismo que coloca o instinto acima de tudo. É preciso nunca ter aberto meus livros para se imaginar semelhante absurdo. É preciso sobretudo não ter compreendido o que eu não deixei de dizer, à saber, que a intuição não é senão um  regime particular no qual a inteligência se dobra, quando, retornando sobre si mesma, ela torna-se capaz de se dilatar para alcançar a gênese real das coisas. Só mesmo Benda [Julien Benda, crítico, filósofo e escritor francês] para acreditar que aí a inteligência perde alguma coisa: para ele, os conceitos seriam como etiquetas das quais as formas seriam recortadas de uma vez por todas e que só nos restaria colá-las nas coisas como em potes de geleia. Equivale a dizer que toda verdade já está virtualmente conhecida, que o modelo está aí colocado nos cartões administrativos da cidade, e que a filosofia é um jogo de puzzle onde se trata de reconstituir, com as peças que a sociedade nos fornece, o desenho que ela não quer nos mostrar. Essa imagem grotesca do conhecimento alimenta com mais frequência do que se imagina a reivindicação de “critérios” seguros para a utilização dos conceitos.
Mas o racionalismo expandido reclama instrumentos novos e, para começar, uma ideia diferente do conceito. Platão, o senhor se lembra, compara o bom dialético ao hábil cozinheiro que trincha o animal sem lhe quebrar os ossos, seguindo as articulações desenhadas pela natureza. A imagem do esqueleto é ainda bastante rígida, mas como tal está, para mim, o conceito de duração: uma ferramenta tão simples, tão cortante quanto o fio da faca. Entretanto, como cada coisa tem sua maneira singular de durar, dificilmente convém escrever a palavra duração no singular. Não há senão durações e cada duração é, nela mesma, múltipla. Por trás do conceito de duração, existe o problema do múltiplo: não o múltiplo em geral, mas um múltiplo de um tipo particular, do qual a definição exige um esforço de criação especial. A representação de uma multiplicidade de penetração recíproca, totalmente diferente da multiplicidade numérica, é o ponto de onde parti e para o qual constantemente retornei. Não há outro meio de traduzir uma duração heterogênea, qualitativa e realmente criadora. Não sei se a aproximação que o senhor sugere com as multiplicidades de Riemann [Bernhard Riemann, matemático alemão] – com as quais de minha parte jamais sonhei – permite precisar essa intuição sem nos reconduzir à exterioridade reciproca das partes que caracteriza, segundo minha tese, toda representação espacial.
Falei da necessidade de pensar por meio de conceitos mais /fluidos/ flexíveis.  Se a palavra “conceito” não pudesse mais convir, eu a abandonaria sem arrependimento. É certo, em todo caso, que uma tal tarefa demanda ao espírito um grande esforço, a ruptura de muitos quadrantes de pensamento, alguma coisa como um novo método. Pois o imediato está longe de ser o mais fácil de perceber e, sobretudo, de pensar. E, no entanto, ele também não é o inefável, que é uma vaidade e, mais frequentemente ainda, uma facilidade.
Ora, a este respeito seu estudo sobressai-se àqueles que me consagraram até hoje. Reivindico em filosofia uma certa maneira dificultosa de pensar – como puderam se enganar? E seu comentário, na medida em que leva à sério a ideia de um método de precisão em filosofia, desanimará mais de um leitor que acreditar encontrar nele belas páginas sobre o sentimento do eu que dura; mas aqueles que esperam outra coisa da filosofia encontrarão nele seu quinhão. Ou me engano muito, ou esse estudo fará época.
Permita-me, entretanto, um /fraterno/ conselho de trabalho. Há uma grande vantagem, nas análises de conceitos, em partir de situações concretas e /bem/ simples, ao invés de autores ou mesmo de problemas filosóficos enquanto tais. Frequentemente observo: quanto mais um filósofo é dotado, mais ele tem a tendência, no início, de abandonar o concreto. Ele deve impedir-se às vezes, em tempo de retornar às percepções ou intuições concretas onde seu pensamento poderá se simplificar e precisar. Nada é mais fácil do que raciocinar geometricamente sobre ideias abstratas; em cada filósofo cochila um metafísico que se inclina a recompor o real com construções dialéticas. De minha parte, reivindico uma metafísica positiva, e eu não teria passado tanto tempo aprofundando os fatos da psicologia ou das ciências da vida, nem consagrado tanta energia – Deus sabe se podem me recriminar! – para compreender a maneira pela qual os princípios da mecânica nova se aplicam às /junções/ articulações da experiência se eu não estivesse convencido de que os grandes problemas da filosofia podem ser renovados e encontrar, ao mesmo tempo, um início de solução: contanto que se sigam os contornos sinuosos e móveis da realidade, abraçando-a, tanto quanto possível, em uma espécie de auscultação espiritual. Não perca o concreto, retorne a ele constantemente. A intuição simples do gesto do esgrimista vale mais do que cem argumentos dialéticos.
Estas notas talvez pareçam ao senhor imodestas. Eu não me autorizaria a tal franqueza se seu estudo não me fizesse reconhecer com tamanha evidência as marcas de um <verdadeiro> talento filosófico /impressionante/. Acrescentarei que em algumas passagens suas palavras exprimem tão bem os fundamentos do meu pensamento que me parece que estou lendo ou relendo a mim mesmo. Mas esta espécie de ventriloquia se acompanha, de uma ponta a outra, de toda sorte de deslizamentos, de descentramentos, e às vezes de rupturas que me fazem pensar que esse “bergsonismo” que dá título ao seu livro porta já toda uma filosofia própria, que eu só posso lhe convidar a elaborar e prolongar em seu próprio nome. Isso seria, me parece, uma filosofia da diferença, ou antes da diferença pura. Se o senhor pudesse vir à Auteuil, seria um prazer conhecê-lo para falar mais detalhadamente sobre isso tudo.
Receba, caro senhor, a segurança de meus devotados sentimentos.
H. BERGSON
Esquecia-me de lhe agradece pelos textos seletos que o senhor teve a amabilidade de juntar em seu envio. Entreguei-me há pouco, no caso de Lucrécio, a um exercício semelhante; mas eu estava longe de me imaginar um dia sendo posto assim “em trechos”. Esta pequena “Memória e vida” é ainda mais /útil/ necessária, pois ela contém certos textos aos quais o senhor se refere em seu trabalho, mas sem citá-los sempre – com risco, às vezes, de confundir os leitores menos familiarizados com minha obra.

SEGUNDA CARTA
Paris, Boulevard Beauséjour, 47. XVIe. [falta a data]
Caro amigo,
Meu colega Jean Wahl [Jean André Wahl, filósofo e professor francês, foi aluno de Bergson] teve a amabilidade, na primavera, de me trazer sua tese “A diferença e a repetição” [sic]. Não sei como me perdoar por tê-la guardado por tão longo tempo sem lhe escrever uma resposta. Entretanto a percorri imediatamente e com um /extremo/ vivo interesse. Depois me sobrevieram diversos problemas de saúde. Seu manuscrito ficou na minha mesa, “guardado” – quer dizer, tornou-se-me impossível reencontrá-lo. Por diversas vezes o procurei. Ei-lo aqui reaparecido.
Percorrendo-o novamente, não pude senão repetir o que lhe dizia de sua primeira versão, na ocasião da nossa correspondência no mês de dezembro. O senhor realizou aí um trabalho considerável e as ideias que desenvolve testemunham uma amplitude de visão que alguns poderiam perceber como ousadia. Espero somente que os colegas que julgarão seu trabalho tenham a honestidade de reconhecer, por trás do tom inabitual de sua tese e da abundância de leituras que ela mobiliza, sua preocupação com a precisão, que eu considero como a primeira virtude do filósofo.
É preciso reconhecer que o senhor não lhes facilita a tarefa. Lendo-o, retorna-me à memória o que o senhor me confiava acerca de suas impressões quando da descoberta do primeiro capítulo de Matéria e Memória. Na ocasião o senhor me explicava, não sem malícia, que esse texto, aos seus olhos, era um dos mais materialistas que já foram escritos em filosofia. O senhor acrescenta que criando conceitos que respondem a problemas novos, uma filosofia confere às coisas um novo recorte e, por isso mesmo, projeta no mundo uma luz estranha e quase irreal. O senhor evocava a esse respeito uma paisagem de “ficção científica”. Minhas ocupações me deixam, infelizmente, muito poucos momentos de lazer para que eu me familiarize com essa literatura, mas creio que compreendo o que o senhor quis dizer, e devo confessar ao senhor que certas passagens da sua tese inspiram-me um sentimento totalmente comparável.
Fiquei interessado, encantado – e às vezes mesmo convencido – pelo projeto que o senhor formula de encontrar a diferença pura até nos conceitos por eles mesmos, com a condição de retomá-los como nós ou como singularidades no sentido de Ideias-Problemas. Essa ideia de um uso intensivo dos conceitos vai bem além do que eu imaginava ao falar de “conceitos flexíveis” e como que cortados “sob medida”. Em suma, o senhor encontra no campo da ideia a ontologia das multiplicidades intensivas das quais eu vejo o tipo puro na experiência da duração vivida: o senhor reclama uma ontologia para os conceitos mesmos, na medida em que se possa pegá-los, por seu turno, na duração, no movimento de sua gênese ou de sua diferenciação. As passagens sobre o cálculo diferencial me interessaram particularmente, o senhor bem pode imaginar: sempre considerei esse método, ou pelo menos sua ideia geradora, como uma verdadeira sondagem feita na duração pura, com a condição evidentemente de que não se contente em ver aí a organização lógica de um sistema de atos, mas antes (sob a forma de que ela se revestia na origem, em Newton) uma espécie de modelagem intelectual do movimento real. Em compensação, as passagens consagradas à repetição, e notadamente aquelas onde intervém o eterno retorno, causaram-me algumas preocupações. O senhor conhece as reservas que me inspiram os escritos de Friedrich Nietzsche. Aliás, é uma questão de método, e mesmo de estilo ou de temperamento, mais ainda que de conteúdo: jamais compreendi seguramente.
O capítulo sobre a “imagem do pensamento” me parece neste sentido mais bem sucedido: mas eu não estou provavelmente melhor situado para julgar, já que o senhor, sem nomear-me, retoma aí o essencial do que já expôs em seu estudo sobre o “bergsonismo” a propósito da minha crítica dos falsos problemas. Toda a questão da filosofia é, com efeito, bem colocar os problemas e, no mesmo movimento, destituir os falsos problemas que impedem de pensar. Aliás, é aí que se distingue, no meu modo de ver, uma filosofia de amador de uma filosofia digna deste nome. Chamo de amador aquele que escolhe entre soluções acabadas, como se escolhe um partido político onde se vai filiar. E chamo filósofo aquele que cria a solução, então necessariamente única, para o problema renovado que ele colocou e que, por esse motivo, faz um esforço para resolvê-lo. Tolerando o problema tal como ele é colocado pela linguagem e pela opinião comum, nos condenamos de antemão a receber uma solução pronta ou, colocando melhor as coisas, a simplesmente escolher entre as duas ou três soluções, únicas possíveis, que são coeternas a essa posição do problema. Equivale a querer atribuir ao filósofo o papel e a atitude do aluno que procura a solução dizendo-se que uma olhada indiscreta no caderno do professor lhe mostraria a resposta, anotada ao lado do enunciado. Mas a verdade é que se trata, em filosofia e alhures, de achar o problema e, em consequência, de colocá-lo, mais ainda que de resolvê-lo.
Observe, a este respeito, que eu bem me guardei de intitular Matéria e Espírito o livro onde empreendo criticar a ideia do paralelismo psico-físico. Toda a dificuldade era delimitar com precisão a distância entre o pensamento e as condições físicas onde esse pensamento se exerce, e de fazê-lo no campo mesmo do materialismo. Em vez de partir de uma oposição de princípio entre dois termos exteriores um ao outro, a matéria “em si”, considerada em suas formas rudimentares, e o espírito “em si”, identificado com suas faculdades superiores, eu quis colocar-me no lugar onde esses dois conceitos se tocam, em sua fronteira comum, para estudar a forma e a natureza do contato (a experiência em geral poderia, aliás, definir-se como o lugar onde os conceitos se tocam e às vezes se interpenetram).
Assim, escapei da posição ordinária do problema e das oposições que ela suscita: realismo e idealismo, materialismo e espiritualismo. Escolhendo falar da memória em sua relação com o fato cerebral, e mais especialmente da memória das palavras (e por isso de um fato bem determinado e localizado), busquei encurtar o problema da relação do corpo com o espírito dentro dos limites mais estreitos possíveis. Elevei-me de início, de complicação em complicação, até o ponto onde a atividade da matéria roça a do espírito. Então, de simplificação em simplificação, fiz descer o espírito, tão perto quanto pude, da matéria. Examinando o problema da memória das palavras e de seu envoltório sonoro, parecia-me que eu quase tocava o fenômeno cerebral no qual prolonga-se a vibração sonora. E entretanto havia aí uma distância, e esta distância conduzia-me a pensar que o espírito se insinua, ou melhor, insere-se na matéria se aproximando dela por gradações sucessivas. “Espírito” e “matéria” são, aliás, palavras muito largas para designar a articulação fina desses planos da experiência. O sim e o não são estéreis em filosofia. O que é interessante é o “em que medida?”. Sob este novo ponto de vista, o velho problema do corpo e da alma poderia ser posto como novo: a filosofia exige que se corte sob medida; e eu não posso senão subscrever a ideia que o senhor desenvolve de uma arte dos problemas, mais exata e mais difícil que o jogo dialético das questões e das respostas.
Mas é preciso que nos falemos mais sobre tudo isso, e também sobre outras análises notáveis que encontrei em seu livro sem poder evocá-las aqui. Estou prestes a ir – ou antes a ser levado – até Dax para fazer um tratamento. Levo seu manuscrito comigo. Para o momento limito-me a enviar-lhe meus cumprimentos, e junto a eles a expressão de meus amistosos sentimentos.
H. BERGSON

TERCEIRA CARTA
Saint-Cergue, Suiça [falta a data]
Meu caro Deleuze,
Sua adorável e interessante carta me deu o maior prazer. Eu gostaria de lhe responder longamente, mas os movimentos da escrita se tornaram para mim muito dolorosos – salvo em certos momentos, em que escrevo como outrora; mas esses momentos são raros e eu nunca sei quando eles virão.
Vou me limitar a lhe falar da alegria que me causou o anúncio desse projeto de um livro escrito à quatro mãos com o senhor Gattari [sic]. Não sei como procedem: esta é uma das proezas às quais me sinto totalmente incapaz, dado o que já me custa fazer concordarem entre si minhas próprias ideias para expô-las em um texto.
Mas depois do que o senhor disse, entendo que a redação desse livro se parecerá com uma espécie de patchwork, procedendo por conexões de pensamentos. Isso me traz à memória uma discussão que tive uma vez com o falecido William James. Ele descrevia o trabalho conceitual como uma espécie de “mapmaking”, quer dizer, de cartografia. É certo que para ele, como para mim, os conceitos são simples instrumentos de ação, ou de ferramentas. Mas ao invés de ver aí uma objeção, ele via na filosofia um incremento de potência. Aliás, é neste ponto que nossos estilos divergem, apesar de concordarmos num certo número de recusas: James foi muito mais longe do que eu no sentido de uma refutação intelectualista do intelectualismo. Seu pragmatismo o conduziu a uma forma de “construcionismo” – se o senhor me autoriza esse termo bárbaro – que me faz frequentemente pensar em sua própria maneira de escrever.
O senhor reivindica, como eu, um empirismo verdadeiro, um empirismo superior – lembrando que o empirismo sempre foi, em seus melhores momentos, uma “louca criação de conceitos” /…../ . Mas o senhor procura do lado da variação ou da proliferação das conexões o que eu procuro do lado da simplificação de nossos conceitos ordinários – ou de sua fluidificação.
Eu gostaria de discutir mais longamente as reflexões que o senhor desenvolve em sua carta, mas temo faltar-me a força e me deterei, por isso, em apenas algumas observações. A imagem do “rizoma” me parece perfeitamente propícia a fazer sentir o tipo de multiplicidade heterogênea e qualitativa que convém à textura de uma realidade em devir. Temo apenas que aqueles dentre seus leitores que não tenham mais do que vagas noções de botânica poderão imaginar aí coisas extravagantes, e que aqueles, ao contrário, que são versados nessa matéria, encontrem ocasião para objeções sem fim, ou para reprovar sabe-se lá que vitalismo vegetal que seria aí totalmente estranho aos seus olhos. Mas o senhor saberá, estou certo disso, contornar essas dificuldades /……/. Por que não dedicar uma introdução, ou mesmo um estudo separado acerca dessa questão? Será necessário somente pensar em encontrar-lhe um título menos /singular/ barroco que aquele de Rizoma: seu editor, sendo tão benevolente a seu respeito, provavelmente teria dificuldade com esse título.
O senhor me permitirá agora, caro amigo, colocá-lo a par de uma inquietude mais geral. Para isto, não me autorizo senão por minha própria experiência, e pelas reações hostis que puderam suscitar algumas de minhas obras. O que não foi dito sobre a intuição ou sobre o élan vital? Acredito que as pessoas não se dão ao trabalho de ler e se contentam com resumos que elas encontram na imprensa ou em livros ruins. Recentemente tive ocasião de conversar com Borel [Félix Édouard Justin Émile Borel, matemático e político francês], que acreditava que devia me dar uma dupla lição de matemática e de filosofia: é uma ilusão bastante difundida, que consiste em acreditar que pode-se abordar a obra de um filósofo contemporâneo e refutá-la sem se preparar, cortando os problemas que ela coloca, ou afastando-os como futilidades, sem levar em conta os vinte e cinco séculos de meditação, de inquietude e de esforço que estão como que condensados na forma atual desses problemas e até mesmo nos termos de que se serve o pensador para enunciá-los. Com mais forte razão: quando um filósofo pretende reconstruir ou transformar o problema que recobre um conceito, é inútil buscar querelas de palavras. Acredito que é muito difícil dizer, numa simples inspeção, se uma noção é ou não é inteligível. A inteligibilidade de uma ideia não pode ser medida senão pela riqueza que ela sugere, pela extensão, pela fecundidade e pela segurança de sua aplicação, pelo número crescente de articulações que ela nos permite colocar à nu, por assim dizer, no real e, enfim, pela sua energia interior. Assim funciona o conceito de intuição, nele mesmo. De minha parte, considero que em filosofia o tempo consagrado à refutação é geralmente tempo perdido. Mas como nossa época parece querer submeter imediatamente toda reflexão ao imperativo da discussão, temo que o senhor não escape ao gênero de dificuldades que eu mesmo tive ocasião de encontrar, e que se veja mais de uma vez conduzido a tomar de seu tempo e de sua energia para dar resposta a um crítico severo e injusto. /……/
Também me parece que o livro que o senhor projeta escrever deveria de alguma maneira antecipar-se às objeções que não deixarão de lhe fazer, e o que talvez seja pior, às deformações que seus próprios defensores necessariamente farão ao seu pensamento. Os primeiros objetarão, pois isso é tudo o que sabem fazer: eles lhe dirão que não há multiplicidade sem unidade, que a ideia mesma de uma multiplicidade pura é por consequência destituída de sentido, etc. Os segundos se apressarão em transformar suas analises em fórmulas prontas: eles irão clamar em toda parte a vitória do múltiplo, o desfazimento do Um ou da transcendência. Mas não é suficiente gritar “Viva o múltiplo!”; o múltiplo: é preciso fazê-lo. E para começar, o que importa verdadeiramente à filosofia é saber qual unidade, qual multiplicidade nos permite abraçar o esforço da intuição, ela mesma renovada por cada novo problema.
Não tenho dúvida de sua capacidade de fazer seus leitores entenderem isso, como o senhor fez antes, e tão claramente, no estudo que teve a amabilidade de dedicar à minha obra. Aliás, o senhor talvez sentirá um dia a necessidade de explicar-se mais longamente sobre o que lhe parece ser a natureza do trabalho filosófico. /Entreguei-me/ Arrisquei-me nesse exercício em O Pensamento e o Movente. Mas querendo descrever a filosofia como a atividade mais concreta possível, corre-se o risco de produzir a impressão exatamente inversa. É por isso que esse livro nunca me satisfez completamente. E se fosse necessário escolher, hoje, entre todas as minhas obras, aquela que mais se aproxima de um discurso do método, eu não hesitaria em dizer que é O Riso. A desmontagem dos falsos problemas, à qual o senhor mesmo consagrou belos desenvolvimentos, me parece, com efeito, uma forma de cômica filosofia. Não sei se a ideia que o senhor se faz da besteira está de acordo com esse sentimento, mas me parece que os combates filosóficos se parecem frequentemente com uma curiosa pantomima de conceitos, uma espécie burlesca de pensamento.
Esperando seu tratado do método filosófico, tive grande prazer em saber que o senhor planeja escrever um livro sobre o cinema e, mais ainda, que cogita me associar a ele, ainda que indiretamente, e aí retomando a teoria das imagens propostas há pouco em Matéria e Memória. O senhor sabe que meu estado de saúde me impede há muito tempo todo deslocamento e que eu não tive suficientes ocasiões para acompanhar os desdobramentos dessa diversão que chamávamos outrora de “cinematógrafa”. Se pude falar dela em alguns de meus livros, isso foi apenas até o ponto de vista do funcionamento da máquina – não sendo eles ainda mais que uma analogia para descrever o mecanismo da inteligência que pretende restituir a realidade movente à partir de vistas imóveis dirigidas a ela, projetando toda mudança sobre não sei qual representação do devir em geral /……/. Espero que o senhor encontre o quanto antes o tempo para escrever esse livro cujo assunto me encanta e me intriga ao mesmo tempo.
Creia, caro Deleuze, na expressão de meus fraternos sentimentos.
H. BERGSON




quinta-feira, 6 de novembro de 2014

MITOS E FATOS


O mito da ‘imprensa livre’
Chris Hedges, Truthdig

Há mais verdade sobre o jornalismo dos EUA no filme “Kill the Messenger” [lit. “Mate o mensageiro”. No Brasil, parece, o filme recebeu o título de “O mensageiro” – assim se prova que, no Brasil-2014, o problema de não haver aqui NENHUM jornalismo que preste é, sim, MUITO MAIS GRAVE que em outras partes do mundo (NTs)], que denuncia o processo pelo qual as imprensas-empresas dominantes desacreditaram o trabalho do jornalista investigativo Gary Webb, do que no filme “Todos os homens do presidente”, que celebra os feitos dos repórteres que expuseram o escândalo do [prédio] Watergate.
As empresas-imprensa que vendem jornalismo de massa apoiam cegamente a ideologia do capitalismo empresarial. Louvam e promovem o mito da democracia norte-americana – mesmo quando o que se vê é o assassinato das liberdades civis e o dinheiro substituindo o voto. Vivem a fazer mesuras e reverências aos líderes em Wall Street, não importam a velhacaria ou o crime que tenham cometido. (...) As empresas-imprensa que vendem jornalismo de massa selecionam especialistas, sempre colhidos dentro dos centros de poder conservador, para interpretar a realidade e explicar a política. Praticamente sempre republicam press-releases, redigidos por empresas interessadas, nos ‘noticiários’. E todos os ‘buracos’ que permanecem sem completar na explicação e interpretação menos comprometidas, são preenchidos com futricas sobre a vida das ‘celebridades’, futrica sobre a ‘vida dos outros’, futricas em geral, e esportes [mas, só, os esportes nos quais o dinheiro mande quase totalmente (NTs)].
A função essencial das empresas-imprensa que vendem jornalismo de massa é entreter [o que fazem quase sempre muito mal] ou repetir incansavelmente, para as massas, a versão sobre o mundo, as pessoas e os processos, que mais interesse a governos autoritários ou ao dinheiro-nu-e-cru.
A chamada ‘imprensa’ são sempre empresas comerciais [“empresas-imprensa”] que contratam empregados dispostos, interessados e capazes de curvar-se até o chão no serviço prestado às elites [mas, sim, também há muitos jornalistas que são fascistas SINCEROS, os quais, sendo preciso, até pagariam para ‘noticiar’ o que noticiam (NTs)] e, em seguida, promovem os próprios jornalistas-empregados como ‘celebridades’.  E esses jornalistas-serviçais, que em alguns raros casos recebem salários milionários, convivem na intimidade do poder. São, como escreve John Ralston Saul, “hedonistas do poder”.
Quando Webb, numa série de artigos publicados em 1996 no San Jose Mercury News, denunciou a cumplicidade da CIA na operação de contrabando de toneladas de cocaína para ser vendida nos EUA, para gerar o dinheiro que financiaria o golpe da CIA contra os “Contra” na Nicarágua, toda a imprensa-empresa fez, de Webb, a pior praga jornalística de todos os tempos, no leproso do jornalismo. E ao longo das gerações muitos outros leprosos foram inventados dentro do jornalismo das empresas-imprensa, de Ida B. Wells a I.F. Stone e a Julian Assange.

Os ataques contra Webb recomeçaram recentemente, em jornais como o Washington Post, desde que o filme foi lançado no início desse mês de outubro. Os novos ataques são tentativa de autojustificação. São a tentativa que a imprensa-empresa que vende jornalismo de massa faz, para mascarar a colaboração que sempre houve entre aquela mesma imprensa-empresa e a elite do poder totalitário e/ou do dinheiro-nu-e-cru.
A imprensa-empresa que vive de vender jornalismo de massa, como o resto do establishment liberal, trabalha sempre para autoencobrir sua real função, se autoaplicando uma demão de verniz de valente busca por verdade e justiça. E para manter esse mito, aquelas imprensa-empresas têm de destruir a credibilidade de jornalistas como Webb e Assange, que lançam alguma luz sobre os feitos sinistros e criminosos que se acumulam nas entranhas do império, e que se interessam mais pela verdade dos fatos, do que pela ‘notícia’ ou pelo ‘furo’.
Os principais veículos noticiosos dos EUA, inclusive meu ex-patrão, o New York Times, que publicou que haveria “praticamente nenhuma prova” do que Webb escrevera – funcionaram como cães de guarda à porta da CIA. Pouco depois da publicação da série em 1996, o Washington Post dedicou quase duas páginas inteiras para atacar o que Webb escrevera. O Los Angeles Times publicou três artigos que, todos eles, atacavam Webb e o que ele escrevera. Foi capítulo sujo, repugnante e vergonhoso, do jornalismo nos EUA. Mas de modo algum foi o único da mesma categoria. Alexander Cockburn e Jeffrey St. Clair, em artigo de 2004, “Como a Mídia e a CIA mataram a carreira de Gary Webb”, detalharam toda a dinâmica daquela campanha nacional de difamação [campanha de difamação de um jornalista profissional, por um lado; mas, por outro lado, campanha de autodesmoralização de todo o próprio jornalismo das imprensa-empresas (NTs)].
O jornal de Webb, depois de publicar um mea culpa para toda a série de artigos, demitiu-o. Webb não voltaria a conseguir trabalhar novamente como jornalista investigativo e, às vésperas de perder a casa onde morava, suicidou-se em 2004. Sabemos, em boa parte por causa de uma investigação no Senado, conduzida pelo então senador John Kerry, que Webb sempre esteve certo. Mas Webb não foi perseguido por ter ou não ter razão, porque, é claro, os bandidos que perseguiram Webb sempre souberam que ele tinha razão. Webb foi perseguido porque expôs a CIA como bando de bandidos traficantes de armas e de drogas. E porque expôs também toda a imprensa-empresa que vende jornalismo de massa, quando depende de fontes oficiais de dinheiro e, por isso, vive como serva covarde do grande dinheiro. E pagou por isso.
Se a CIA introduziu centenas de milhões de dólares em drogas nas periferias de grandes cidades dos EUA, para fazer dinheiro para pagar por uma guerra ilegal na Nicarágua, o que dizer da legitimidade de toda essa gigantesca organização clandestina? O que dizer da chamada “guerra às drogas”? O que dizer da dureza e da indiferença do governo dos EUA em relação aos mais pobres, sobretudo os pretos mais pobres, que estão no olho do furacão do crack epidêmico? O que dizer de operações militares clandestinas, realizadas sem que a opinião pública saiba?

Todas essas eram, precisamente, as perguntas que as elites do dinheiro, as elites do poder, e seus serviçais na imprensa-empresa, tinham de silenciar a qualquer custo.
A imprensa-empresa é pasto para a mesma mediocridade, o mesmo corporativismo, o mesmo carreirismo, que a universidade, os sindicatos, as artes, o Partido Democrata e as instituições religiosas. Penduram-se todos no mesmo mantra de autopromoção, que os apresenta como se fossem imparciais e objetivos, e assim justificam a subserviência deles ao grande dinheiro e ao poder (qualquer poder). A imprensa-empresa escreve e fala – diferente dos acadêmicos que discursam para eles mesmos, naquele velho jargão de teólogos medievais – para ser ouvida e compreendida pela opinião pública. E por essa razão a imprensa-empresa é mais poderosa e mais diretamente controlada pelo grande dinheiro ou por estados autoritários.
A imprensa-empresa tem papel chave na disseminação da propaganda do pensamento do grande dinheiro ou de estados totalitários. Mas, para que essa propaganda tenha eficácia, a imprensa-empresa tem de manter para ela mesma a ficção de independência e de integridade. É indispensável que as verdadeiras intenções, nesse caso, permaneçam ocultas.

Os veículos de comunicação de massa, como C. Wright Mills viu bem, são ferramentas essenciais para manter o conformismo. São eles quem dizem a leitores e telespectadores o que leitores e telespectadores são. São eles quem dizem o que leitores e telespectadores devem aspirar a ser ou a ter. Prometem que ajudarão leitores  e telespectadores a ‘chegar lá’. Oferecem grande variedade de técnicas, conselhos e esquemas que prometem sucesso pessoal e profissional. Os veículos de comunicação de massa, como Wright escreveu, existem, primeiramente, para ajudar os cidadãos a sentirem que são bem-sucedidos e que ‘chegaram lá’, mesmo que não tenham chegado a lugar algum e continuem muito longe de alcançar as próprias aspirações. Usam linguagem e imagens, para manipular e formam opiniões, nunca para promover qualquer genuíno debate ou conversa democrática ou para criar espaços públicos para ação política livre e votação democrática livre e justa.
Todos já estamos convertidos em espectadores passivos do poder e do grande dinheiro, por ação dos veículos de comunicação de massa, que decidem por nós o que é verdade e o que é mentira; o que é legítimo e o que não é. A verdade não é coisa que alguém descubra. Assim está decretado pelos veículos da imprensa-empresa que vende jornalismo de massa.
“O divórcio entre a verdade, para um lado, e o discurso e ação, para o outro lado – a instrumentalização da comunicação – não apenas aumentou a incidência da propaganda; ele também corrompeu a própria ideia de verdade, e, portanto, o sentido pelo qual assumimos nossas posições no mundo está destruído” – escreveu James W. Carey em Communication as Culture.
A primeira e principal função dos meios de massa é superar a enorme fenda que separa as identidades idealizadas – essas que, numa cultura de mercadoria movem-se sempre em torno da aquisição de status, dinheiro, fama e poder, ou, pelo menos, das correspondentes fantasias e ilusões – e as identidades reais. E pode ser muito lucrativo inflar essas identidades idealizadas, amplamente implantadas por anunciantes e pela cultura corporativa. Dão-nos não o que nos faz falta real, mas o que desejamos. Os meios de massa permitem-nos escapar para o viciante mundo do entretenimento e do espetáculo. Acrescenta-se algum ‘noticiário’ a essa mistura [mas “a notícia em primeiro lugar” é sempre mentira (NTs)].
Nunca mais de 15% do espaço de qualquer jornal é devotado a notícias; todo o resto é devotado à mais fútil procura por algo que se chama autoatualização. No rádio e na TV a proporção é ainda mais desequilibrada. “Essa”, escreveu Mills, “é provavelmente a fórmula psicológica básica dos mass media hoje. Mas, como fórmula, nada tem a ver com o desenvolvimento do ser humano. É só uma fórmula de um pseudo-mundo que a imprensa-empresa inventa e mantém.” (...)
A imprensa-empresa só atacará grupos dentro da elite do poder, quando acontece de o poder dividir-se e de haver disputas dentro do círculo do poder [essa, precisamente, é a situação em 2014, no Brasil. O Partido dos Trabalhadores afinal, felizmente, instalou-se democraticamente no poder federal; e as velhas elites que ainda mantém laços muito fortes fixados dentro do poder federal, está indignada. A imprensa-empresa no Brasil, em 2014, assumiu o lado e a voz da velharia tucano-udenista perdedora (NTs)].  
Quando Richard Nixon, eleito pelos Republicanos, e que usou métodos ilegais e clandestinos para calar a imprensa alternativa e para perseguir ativistas antiguerra e líderes negros dissidentes radicais, tentou atacar o Partido Democrata,  foi quando virou alvo da imprensa-empresa. O pecado de Nixon não foi abusar do poder. Nixon viveu anos e anos abusando do poder contra vários grupos de dissidentes, sem que o Establishment se incomodasse com isso. O pecado de Nixon foi que abusou do poder contra uma facção dentro da própria elite do poder [ATENÇÃO: essa frase, com “José Dirceu” em lugar de “Nixon”, pode resumir todo o martírio ao qual a imprensa-empresa condenou, no Brasil, o ministro José Dirceu (NTs)].
O escândalo do edifício Watergate, mitologizado como prova do poder de alguma imprensa-empresa valente e independente, ilustra bem o quão pouco a empresa-imprensa consegue fazer, quando se trata de investigar os centros do poder.
“A história foi generosa conosco e nos ofereceu um “experimento controlado” para determinar exatamente o que realmente estava em disputa no período Watergate, quando a posição de desafio assumida pela imprensa-empresa, nos EUA, atingiu o pico. A resposta veio clara e precisa: grupos poderosos têm meios para defender-se, eles mesmos, o que não é surpresa para ninguém. Pelos parâmetros da imprensa-empresa, só há escândalo quando os direitos da própria imprensa-empresa e sua posição de poder são ameaçados” – como escreveram Edward S. Herman e Noam Chomsky em Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media.”  “Na direção contrária, enquanto as ilegalidades e violações da ordem democrática ficam confinadas a grupos marginais ou só atinjam dissidentes de ataques militares dos EUA, ou resultam num custo difuso, imposto a toda a população, em todos esses casos, ninguém ouve nem sinal de oposição feita pela imprensa-empresa; a imprensa-empresa, toda ela, mantém-se então absolutamente muda e distante. Por isso Nixon pôde ir tão longe, amparado num falso senso de segurança precisamente porque o cães de guarda só latiram quando Nixon começou a representar ameaça contra os privilegiados.”

Os abolicionistas e os que pregavam respeito aos direitos civis; jornalistas investigativos que enfureceram a Standard Oil e os proprietários dos cercados para gado em Chicago; produções de teatro radical como The Cradle Will Rock,* que implodiram os mitos tão caros à classe governante e deram voz a pessoas comuns; os sindicatos de trabalhadores que permitiram que imigrantes, afro-americanos e homens e mulheres trabalhadores  encontrassem dignidade e esperança; as grandes universidades públicas que deram a filhos de imigrantes a chance de ter educação de alta qualidade; os Democratas do New Deal que compreendiam que uma democracia jamais estará segura se não garantir aos cidadãos padrões de vida aceitáveis e se não souber impedir que o estado seja sequestrado pelo dinheiro privado,  nada disso existe mais no panorama dos EUA contemporâneos.
A desgraça de Webb foi trabalhar em tempos em que a imprensa livre e democrática já não passa de clichê, como, também, a própria democracia.
“The Cradle Will Rock,” como quase todo o trabalho popular que foi gerado no Projeto Federal de Teatro criado por Roosevelt no auge da Grande Depressão, deu voz aos anseios da classe trabalhadora, em vez de só repetir anseios e angústias da elite. E ali afinal se expôs a loucura da guerra, a ganância desenfreada e a desenfreada corrupção, a cumplicidade das instituições liberais – especialmente da imprensa – que assegurou proteção à elite no poder e sempre ignorou todos os abusos do capitalismo.
Na peça, o personagem Mister Mister[1] governa a cidade como uma empresa privada:
“Acredito que jornais são ótimos para modelar as mentes” – diz Mister Mister. – “Minha indústria de aço depende realmente dos jornais!”
“Basta o senhor telefonar para a Redação” – responde o Editor de Notícias. – “Imprimiremos todas as notícias que o senhor nos der. De costa a costa, de fronteira a fronteira.”
– “Bem me interessaria uma série de matérias sobre esse jovem, Larry Foreman” –,  diz Mister Mister ao Editor de Notícias.
– “Sei. O tal que anda por aí fazendo agitação e organizando sindicatos” – responde o Editor de Notícias. Já ouvimos falar dele. De fato, só ouvimos falar bem. Parece ser muito popular entre os trabalhadores.”
– “Descubra com quem ele bebe e com quem ele dorme. Vasculhem o passado dele, até achar alguma coisa que o faça parar.”
– “Mas o sujeito é de briga, é pura dinamite. Precisaremos de um exército para segurá-lo” – responde o Editor de Notícias.
– “Ótimo! Sendo assim, vai ser fácil segurá-lo” – conclui Mister Mister. E o dueto recomeça:
“Ah, a imprensa, a imprensa, a liberdade de imprensa.
Nunca nos tirarão nossa liberdade de imprensa!
Temos de ser livres para dizer o que nos vai n’alma...
com um da-da-di-da-da-dá e sim-sim-sim,

a favor de quem pagar mais.”