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sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Paisagem do Tempo


Alô Cinema!
Um novo governo precisa entender que mexendo em apenas três itens do já estabelecido, pode acontecer uma reforma significativa na produção, exibição, proteção e conservação do cinema financiado pelo estado brasileiro.
1 Desburocratizar os meios de produção cinematográfica e colocar na direção dos órgãos específicos pessoas do meio cultural, artistas, intelectuais, que defendam os interesses do cinema brasileiro.
2 A aprovação não mais de projetos repletos de papeladas e burocracia. O proponente, pessoa física, a um financiamento público, apresentaria primeiro ao Ministério da Cultura um roteiro, em primeiro tratamento e entraria na fila dos que serão selecionados. Se seu roteiro fosse selecionado e aprovado, o proponente procuraria uma produtora para fazer o projeto completo, com os custos e prazos de realizações definidos. Isto facilitaria e agilizaria o longo processo de realização de um filme e a produtora não correria o risco de ver tanto trabalho jogado no lixo.
3 Colocar em prática a Lei, já existente, do Curta-Metragem a ser exibido antes dos filmes estrangeiros e estender essa mesma lei (do Curta) para as televisões brasileiras que exibam filmes estrangeiros.
Vamos avançar ou não vamos?

O GOLPE EM MARCHA
Nas redes da internet, nos jornais, nos noticiários das tevês, nos comentários ouvidos nas ruas, dos bares, nas festas chiques, nas batucadas do morro, enfim por todo o país eu posso sentir o que eles querem dizer entre contrários, entre a alegria dos que gritam: Já ganhamos! Viva o povo! Viva o Brasil! Com a revolta hostil, raivosa, dos que sofrem com a derrota, pois estavam certos da vitória e que aos poucos vai se tornando silenciosa, formando em pequenos grupos nada secretos que esperam, como se fossem disputar uma peleja, o dia da revanche, e, para essa desastrosa conquista, passa a valer tudo novamente: as denúncias, o arbítrio do sistema, a incompetência estratégica na defesa da mentira, em vez do ataque da verdade, o interesse estrangeiro inconfesso na divisão do país em dois, três, quatro, que fico em dúvida se tudo isso não caminha para o pior. O fato é que farão de tudo para criar conflitos, olho vivo! Já corre uma lista de adesão pela internet para levar os vitoriosos a se explicarem novamente em uma CPI (com o congresso eleito mais reacionário da história) da Petrobras, ou mesmo em processos criminais armados com o auxílio dos contrários. Nunca esquecer que ao contrário das forças democráticas, existem as forças armadas. É como em um filme de suspense do velho Alfred: é preciso estar preparado para o embate que ira na certa acontecer se não, meus amigos, (VERTIGO) a casa cai (novamente).

SER GAGÁ
Millôr Fernandes
Ser Gagá não é viver apenas nos idos do passado: é muito mais! É saber que todos os amigos já morreram e os que teimam em viver, são entrevados. É sorrir, interminavelmente, não por necessidade interior, mas porque a boca não fecha ou a dentadura é maior do que a arcada.

Ser Gagá é ficar pensando o dia inteiro em como seria bom ter trinta anos ou, vá lá, quarenta, ou mesmo, ó Deus, sessenta! É ficar olhando os brotinhos que passeiam, com o olhar esclerosado, numa inútil esperança. É ficar aposentado o dia inteiro, olhando no vazio, pensando em morrer logo, e sair subitamente, andando a meia hora que o separa dos cem metros da esquina, porque é preciso resistir. É dobrar o jornal encabulado, quando chega alguém jovem da família, mas ficar olhando, de soslaio, para os íntimos da coluna funerária. Ser Gagá é saber todos os mortos inscritos no Time, em Milestones. Não é saber o Who is who, mas os WHEN. É só pensar em comer, como na infância. E em certo dia passar fome as vinte e quatro horas, só de melancolia. É, na hora mais ativa do mais veloz Bang-Bang, descobrir, lá no terceiro plano, uni ator antigo, do cinema mudo, e sentir no peito a punhalada. É surpreender, subitamente, um olhar irônico que trocam dois brotinhos, que, no entanto, o ouvem seriamente. É querer aderir à bossa nova, falar “Sossega Leão” e morrer de vergonha ao perceber o fora. É não querer, não querer, mas cada dia ficar mais necessitado de amparo do que outrora. É ter estado em Paris, em 19. É descobrir, de repente, um buraco na roupa e dar graças a Deus, por ser na roupa.                                                                                                                   Ser Gagá é sentir plenamente que tudo que se leu, que se aprendeu, que se viu e se viveu não vale nada diante do que estua. Ser Gagá é estar sempre na iminência de ouvir em plena rua: “Olha o tarado!” É ficar contente em ver Chaplin e Picasso como os “mais charmosos” de sessenta! É chamar de menina à quarentona. É ter uma esperança senil nos cientistas. É reparar, nos mais jovens, o imperceptível sinal de decadência. É ficar olhando o detalhe, nos amigos; a lentigem nas mãos, o cabelo que afina, a pele que vai desidratando. Ser Gagá é o orgulho vão de ainda ter cabelo e poucos brancos! A vaidade tola de não ter barriga; a felicidade de ter dentes próprios. E fazer grandes planos qüinqüenais que espantam os jovens que acham cinco anos a própria eternidade, mas que o Gagá sabe que voam como voaram tantos, tantos, tantos... É se apegar, desesperadamente, pelo tremendo impulso da existência, aos filhos, aos netos e aos bisnetos, embora saiba que eles não o querem, que a convivência com eles é apenas parte e total do egoísmo vital que o enterra. É sentir que agora, outra vez, está bem de saúde. É sentir a saúde ocasional. É carregar o corpo o tempo todo. É sentir o caixão no próprio corpo. É saber que já não há quem tenha prazer em lhe acarinhar a pele. É já não ter prazer em passar a mão na própria pele. É esquecer de coisas importantes e lembrar, sem saber por que, um gosto, um calor, uma palavra há tempos
esquecidos.                                                                                                                              
Ser Gagá é procurar com afã a importância do cargo para de novo ser solicitado, embora pelo cargo. É sentir que nada do que faça, espantoso que seja, terá a importância do feito de outro homem, nos inícios da vida. Ser Gagá é quando dormir tarde se torna uma loucura, resgatada em feroz resfriado que dura uma semana. É ter sabido francês, e esquecido. É já não jogar xadrez como outrora! É olhar o retrato amarelado e lembrar que fotógrafo usava magnésio. É dizer, como um feito, que ainda lê sem óculos. É ouvir que alguém diz, quando passa na rua: “inda está firme!” É ficar galante e baboseiro na terceira taça de champanha. É casar com uma mulher mais jovem e querer dar logo ao mundo a inegável prova de um filhinho.                                                                          
Ser Gagá é, num esforço mortal, aceitar tudo que inventam, todas as idéias, as modas, a música, o ritmo de vida, mas não deixar de dizer numa ironia profunda e amargurada. “Eu não entendo”. É sentir de repente o isolamento. É ficar egoísta, e amedrontado. É não ter vez e nem misericórdia.                                                                                               
Ser Gagá é fogo. Ou melhor, é muito frio.

domingo, 26 de outubro de 2014

UMA MULHER DE RAÇA

ANGELA DAVIS

(Você já ouviu falar desta mulher)
Ela adotou o penteado dos rebelados no Quênia e fez do penteado afro um símbolo do orgulho negro
Angela Davis é uma mulher muito digna, e também muito bonita, uma mulher de 70 anos. É professora de filosofia na Universidade de Santa Cruz, que fica entre São Francisco e Monterey, na Califórnia. Está tranquila. Ensina a seus estudantes as teorias de Karl Marx, Herbert Marcuse, Mikhail Bakunin. Quando substituímos o penteado comportado de hoje pelo black power, que se parece com uma formidável auréola negra no meio da qual estava encaixado um rosto bastante puro, então lembramo-nos de seu nome. Essa professora já idosa de Santa Cruz chama-se Angela Davis. Há 40 anos, ela foi uma das pessoas mais célebres do mundo. Uma das mais detestadas. Uma das mais admiradas.
Deus ou Diabo
O mundo se dilacerava em torno de Angela. Em Paris, 100 mil pessoas desfilavam na rua gritando seu nome, atrás de Jean-Paul Sartre e do poeta Louis Aragon. Na Inglaterra, os Beatles e os Stones entusiasmavam as multidões cantando "a pantera negra". Na mesma época, nos Estados Unidos, o presidente Richard Nixon a amaldiçoava. Ronald Reagan, governador da Califórnia, tentou expulsá-la para sempre de qualquer universidade do estado. O chefe do FBI, Edgar J. Hoover, lançava suas tropas para caçá-la e jogá-la em uma prisão de isolamento absoluto. Essa era Angela Davis: um Diabo ou um Bom Deus. Hoje, quase meio século depois, ela não renegou nada. Está intacta.
Ela nasceu em 1944, em Birmingham, no Alabama. Não é um bom lugar para nascer quando se é negra. A América daquela época, pelo menos o sul, odiava os negros: rixas, linchamentos, Ku Klux Klan. Os pais de Angela faziam parte da pequena burguesia - o pai era professor de história na escola secundária, mas recebia tão pouco que pediu demissão para abrir um posto de gasolina; a mãe ensinava na escola primária. Eram comunistas. Moravam no bairro de Dynamite Hill. Por que esse nome? Os brancos não aceitavam que negros se instalassem próximos a eles. De tempos em tempos, as casas explodiam.
Aos 12 anos, Angela participa do boicote a um ônibus que praticava segregação. Dois anos mais tarde, graças a uma bolsa, ela vai para Nova York e continua seus estudos em um liceu de esquerda chamado Little Red School House. A moça é brilhante. Radicaliza-se. Entra na Universidade de San Diego, na Califórnia, e ali começa a militar contra a Guerra do Vietnã. Primeira prisão.
Mas é um pouco solitária. Mesmo nos movimentos negros não encontra seu lugar. Eram duas as tendências dominantes: uns sonhavam com revoltas negras hiperviolentas, como as de Watts ou as de Detroit. Do outro lado, Martin Luther King, personagem suave e brilhante, preferia "o integracionismo". Angela rejeita as duas posições. A única saída que ela vê é o marxismo, a luta política cujo horizonte apenas o socialismo ilumina. Mas a maioria de seus amigos negros rejeita o marxismo, tido como "doutrina de homem branco". Além do mais, ainda que Angela Davis seja marxista, ela não deseja aderir ao comunismo oficial.
Black Panther
Finalmente, ela adere ao Black Panther Party, organização revolucionária que rejeita tanto o integracionismo quanto o separatismo. Criado em 1966 por Bobby Seale e Huey P. Newton, dois estudantes de Oakland, era para ser pacífico. No início, se chamavam de "os pombos". Mas o pombo, delicado e arrulhador, não estava dando certo. Influenciados por outro líder negro ilustre, Malcolm X, eles endurecem. Para responder com violência à violência dos brancos, adotam o símbolo da pantera negra.
Caçada
Em 1970, um pantera negra perigoso, George Jackson, estava encarcerado na prisão Soledad, na Califórnia, onde formava, com dois outros detentos, os "Irmãos de Soledad". Eram acusados de matar um guarda penitenciário branco em retaliação à execução de outros três detentos negros. Em agosto daquele ano, na alegada luta para denunciar os maus-tratos a negros nos presídios americanos, o irmão de 17 anos de George, Jonathan, invadiu o tribunal de Marin County e tomou o juiz Harold Haley como refém. Há luta. Quatro são mortos, inclusive Jackson e Haley. A polícia examina a arma. O relatório acusa: o fuzil de cano cortado cuja bala atingiu a cabeça do juiz pertencia a Angela Davis.
Estupor. O diretor do FBI, Edgar Hoover, lança seus exércitos à procura de Angela e a inscreve na lista das dez pessoas mais procuradas nos Estados Unidos, a famosa Lost Wanted List. Ela foge. Por quê? "Teria sido morta", diz ela hoje. Hoover manda prender centenas de mulheres que se parecem com ela. Sua foto está em todo lugar com a seguinte legenda de western: Armada e perigosa. Ela se disfarça. A polícia revista as comunidades negras. No sul do país, milhares de casas mostram este cartaz: Angela, nossa irmã, você é bem-vinda nesta casa. Mas o FBI tem mãos de ferro. Angela é presa em outubro em Nova York.
Reclusão
No exterior, um enorme movimento se ergue em seu favor, com as pessoas nas ruas. O poeta surrealista Jacques Prévert publica um texto belo com um choro: Angela em sua prisão escuta sem poder ouvi-las, e talvez sorrindo, as canções de seus irmãos de fé, de riso e de dor, e os refrões engraçados das crianças do gueto. Aqueles que enclausuram os outros sentem o enclausurado. Aqueles que estão enclausurados sentem a liberdade. (...) É preciso libertar Angela - enquanto não chega o dia em que serão condenadas todas as portas atrás das quais a vida negra está enclausurada.
Em Londres, Mick Jagger e Keith Richards cantam: Tem um doce anjo negro /Tem uma pin-up,/ Tem um doce anjo negro,/ Pregado na minha parede/ Bem, ela não é nenhuma cantora, ela não é nenhuma estrela/ Mas com certeza ela fala bem, com certeza ela se move rápido/ Mas essa garota está em perigo, ela está acorrentada (...) Não existe ninguém para libertá-la?/ Libertem a doce escrava negra/ Libertem a doce escrava negra.
Em Londres, outro canto é retomado por milhares de vozes. Este foi escrito por Yoko Ono: Irmã, você ainda é a professora do povo,/ Irmã, sua palavra chega longe/ Irmã, existem um milhão de raças diferentes,/ Mas todos nós dividiremos o mesmo futuro no mundo./ Eles te deram a luz do sol,/ Te deram o mar/ Te deram tudo menos a chave desta prisão,/ Sim, te deram café,/ Te deram chá/ Eles te deram tudo menos a igualdade.
Black is beautiful
Enquanto as multidões do mundo gritam seu nome, Angela permanece presa, em isolamento absoluto, durante 16 meses. "Eles queriam me quebrar, ela diria mais tarde. Me enlouquecer. Eu escrevi, refleti. Aprendi ioga nos livros. Vivi momentos muito duros, de angústia, de claustrofobia. E momentos de graça. Eu não podia desabar." Em 5 de janeiro de 1971, ela é acusada de assassinato, sequestro e conspiração pelo caso Marin County. Em 1972, é absolvida e, mais livre que nunca, se torna uma celebridade mundial. Em toda parte, aparece a longa silhueta da combatente, seu rosto de porcelana, a imensa cabeleira afro. Black is beautiful.
Às vezes imaginamos que Angela inventou esse penteado. Nada disso. O penteado afro lhe foi dado pela história. Ele vem das colônias italianas do Quênia, quando os negros rebelados rejeitam o cabelo liso europeu e criam o estilo afro, que, mais tarde, dará a volta ao mundo como um símbolo de orgulho negro, com o pente afro acabando em black fist colocado nos cabelos.
A prisão, o terror, o isolamento não destruíram Angela. Ela martela sua pregação mantendo-se distante tanto dos comunistas, que ela acha "psicorrígidos", quanto dos que defendiam o nacionalismo negro, com combates, criação de uma nação afro-americana ou mesmo a volta para a África.
Mulher e negra
A voz de Angela é quase única também por associar em uma mesma profecia a luta pela dignidade dos negros e a emancipação feminina. "Havia um machismo maciço, ela se lembra, tanto entre os comunistas quanto no nacionalismo negro. As mulheres não eram consideradas capazes de carregar a causa, de serem líderes." Seria não conhecer bem Angela acreditar que ela iria se limitar, nas organizações negras, à tarefa de passar o pano no chão ou preparar a marmita dos senhores.
Então será que ela vai adotar o combate das feministas americanas da década de 70? Meu Deus! "Mas essas mulheres eram burguesas demais para mim. Elas eram brancas e lutavam pelo direito ao trabalho e ao aborto. Mas as negras já tinham uma profissão. Elas eram domésticas. Minha concepção do feminismo é a de uma emancipação que vai além das fronteiras estabelecidas. As questões de sexualidade, de raça, de classe e de gênero estão intimamente ligadas."
E ela oferece esta bela fórmula: "Meu objetivo sempre foi encontrar pontos entre as ideias e derrubar os muros. E os muros derrubados se transformam em pontes". Inimigo, o raivoso Louis Farrakhan, chefe da Nação do Islã que organizou a Marcha do 1 Milhão em 1995, acusou Angela de ser lésbica. Por isso não. Em 1997, na revista Out, ela declara: "Sim, sou lésbica".
Longo caminho
 A América mudou muito desde o tempo em que a menina de 12 anos boicotava um ônibus porque os negros não tinham o direito de andar ao lado dos brancos nos transportes públicos. Ângela reconhece os progressos. Em sua juventude, raros eram os negros no ensino superior. Hoje, eles são milhões. Mas a estrada é longa ainda, ela repete. Diante da observação de que uma coisa inacreditável aconteceu, a eleição de um negro para a Presidência dos Estados Unidos, ela modera o entusiasmo. "Hoje, ninguém na Casa Branca parece se preocupar com o fato de que 1 milhão de negros estão nas prisões americanas."
É assim que fala a mulher de Santa Cruz, em uma universidade dessa Califórnia que Nixon e Reagan juraram lhe proibir para sempre. Ela ensina Kant e Hegel, Platão, Merleau-Ponty e Theodore Adorno, Herbert Marcuse. Ela não usa mais o cabelo afro. Às vezes ela tem dreadlocks, essas mechas misturadas que se formam sozinhas quando os cabelos crescem naturalmente ou quando são antes trançados. Ela está ali, tranquila, resoluta, intratável. Ela foi um momento trágico da história dos Estados Unidos. Ela permanece um momento da história do mundo.


quarta-feira, 22 de outubro de 2014

O GRITO



Eleição no Brasil envolve disputa de poder entre Obama e Putin.
E Dilma pode ser a bola da vez...

Como se sabe, os BRICS ‒ sob a liderança econômica de Beijing e política de Moscou ‒ vêm alavancando o comércio mundial, o que os contrapõe aos Estados Unidos cuja economia passa no momento por uma profunda crise e enfrenta graves desafios.
Habituados a considerar a América Latina como seu quintal (backyard, como o denominam) e forçados a aceitar o crescente intercâmbio comercial da China e da Rússia com seus antigos satélites na região, os ianques vêm ainda com crescente desconfiança as posições de independência que os governos de Luís Inácio da Silva e de Dilma Rousseff têm tomado nos organismos multilaterais como o G20 e os sinais de associação que começam a se formar entre Argentina, Venezuela, Bolívia, Equador e Nicarágua e o grupo formado pelo BRICS.
Como a desconfiança em relação à política belicista dos Estados Unidos é cada vez mais crescente e não há condições para o retorno dos golpes de estado do passado ‒ embora modalidades diferentes de derrubada de governos legítimos tenham sido executadas no passado recente em Honduras e no Paraguai ‒ o caminho mais plausível parece ser o recurso às revoluções coloridas e às campanhas eleitorais tumultuadas por acusações infundadas de corrupção, tráfico de influência e também em alguns casos por assassinatos programados.
Algumas atitudes independentes dos governos do Partido dos Trabalhadores como a não continuação do processo de privatização da Petrobras iniciado pelo governo entreguista de Fernando Henrique Cardoso, a descoberta das reservas submarinas do pré-sal, a recusa em entregar os bancos estatais remanescentes (Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal) à sanha da banca privada, assim como o crescente intercâmbio comercial com os BRICS fizeram com que os EUA começassem a temer que o “mau exemplo” do Brasil pudesse exercer uma indesejável influência sobre outros países menores e menos poderosos do subcontinente.
Não tendo obtido sucesso nas eleições de 2010, os setores mais reacionários do nosso país ‒ que têm naturalmente o seu epicentro em Washington ‒ voltaram à carga em 2014, utilizando de novo como isca a candidatura de Marina da Silva, desta vez sob a bandeira de um travestido Partido Socialista Brasileiro depois que este foi abandonado por alguns de seus principais membros em seguida a uma clara deriva à direita de sua direção.
No momento, aproveitando-se da fragilidade atual do partido do governo cujos importantes líderes se encontram na cadeia após um processo político em que sua culpabilidade não foi devidamente comprovada, preparam a sua estratégia e organizam a linha de combate para o que consideram ser o ataque final em que tentarão tomar o poder do partido dominante.
Para executar o seu plano, o império americano e seus esbirros no Brasil construíram uma ampla teia de alianças que abrange o agronegócio, os bancos, setores do funcionalismo público que agem como uma quinta coluna, a classe média sempre assustada e essencialmente conservadora e ‒ como o candidato de direita não tem projetos ‒ os meios de comunicação, que blindam o passado nebuloso e enevoado de Aécio Neves e atuam na prática como o verdadeiro partido de oposição.
No momento em que os Estados Unidos e a Europa tentam sufocar a Rússia por meio de sanções, uma vitória da candidata Dilma Rousseff irá certamente fortalecer os BRICS e sua política hoje claramente distanciada do belicismo de Israel e dos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) que aspiram a uma dominação mundial.
As eleições de 2014 ocorrem num momento em que, pela primeira vez na nossa história, não estamos mais na condição de vassalos de uma potência estrangeira. Por outro lado, pela segunda vez temos hoje, como nos tempos do chanceler San Tiago Dantas, uma política externa independente e não é por certo estranho que ‒ exatamente como durante o governo João Goulart ‒ o Brasil sofra agora um cerco verdadeiramente monumental que tem como exato objetivo a interrupção dos avanços sociais que foram alcançados nos últimos anos e que podem levar a um aumento de consciência da população.
Para impedir que isto ocorra, as atrasadas elites do Brasil ‒ hoje concentradas, como em 1932, no Estado de São Paulo ‒ recorrem aos mais sórdidos expedientes como o racismo e chegam até mesmo a propor a matança sistemática de nordestinos, como ocorreu recentemente em um diálogo entre profissionais da classe médica numa rede social.
No primeiro semestre desse ano, o jornalista Wayne Madsen informou que um dos principais objetivos do presidente Barack O’bomber (apelido que recebeu por seu hábito de bombardear de forma indiscriminada vastas regiões do planeta) era a implosão dos BRICS, em seu propósito de quebrar a emergente liderança agora exercida por Vladimir Putin na Rússia.
As eleições presidenciais, que terão lugar no próximo dia 26 de outubro, oferecem ao presidente afro-americano a possibilidade de recuperar um poder ‒ que muito em função dos seus erros, ganância e truculência ‒ os Estados Unidos vêm perdendo em nosso país. Em consonância com esse propósito, seu candidato Aécio Neves já anunciou uma política, que propõe a volta das privatizações, o aumento das tarifas públicas e o tradicional arrocho fiscal, temas que geralmente fazem parte do receituário do Fundo Monetário Internacional de triste memória para todos os brasileiros
Por outro lado, estar alinhado com um país cuja política tem consistido em bombardear e dividir – como vem fazendo de forma sistemática o governo americano no Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria e mais recentemente na Ucrânia – pode não trazer muitos votos para o candidato que hoje personifica a nova cara da direita no Brasil. Como sabemos, essa estratégia não produziu os resultados ambicionados e, ao contrário, tem isolado os Estados Unidos do resto do mundo.
Será que voltaremos aos tempos em que nossos ministros das Relações Exteriores pronunciavam frases como “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil” (Juracy Magalhães) e “o Brasil está fadado a ser, por tempo indefinido, um satélite dos Estados Unidos” (Raul Fernandes)?
9 de outubro de 2014
  Sérvulo Siqueira

domingo, 19 de outubro de 2014

DE UM CINEMA DA BAHIA


Orlando Senna e as reconstruções das mortes
 Por Filipe Barbosa *

Astronautas libertados vagam num barco vazio pela Baía “Boca do Inferno”
Brasil, 1968-69: em meio à inquietude de uma geração marcada, por um lado, pelo signo da náusea existencial e total cerceamento da liberdade de expressão, por outro, pela elevação espiritual (flower power) e desenvolvimento das capacidades extra-sensoriais, estavam três provocadores baianos realizando três filmes mais provocantes ainda: Orlando Senna, Álvaro Guimarães e André Luiz Oliveira. Em 1964 já havia acontecido o que o saudoso crítico baiano, André Setaro, considerava o canto do cisne do chamado Ciclo Baiano de Cinema, o filme O Grito da Terra (1964), de Olney São Paulo. O cinema baiano que existiu no fim da década de 60, apesar de estar ligado (minimamente que seja, mas está) ao que se fez a partir de 1959 na Bahia, aparece para arrebentar com as estruturas da linguagem, oxigenar a estética do filme, “extrapolar os limites aristotélicos das unidades de lugar, ação e tempo” (SETARO, 2012, p.82), imergir em outros universos.
Essa imersão começou quando Orlando e Álvaro traçaram um plano de produção para dois filmes, um para cada diretor – naquela época tinha-se que mandar os negativos para serem revelados e montados em São Paulo, por isso essa foi uma tática de produção inteligente e econômica. O filme do Álvaro era o posteriormente cult Caveira my friend (1970), e o do Orlando chamava-se A construção da morte (1969). Correndo por fora, em termos de produção, mas totalmente ligado à realização desses dois filmes, estava Meteorango Kid – o herói intergalático (1969), de André Luiz Oliveira, que no Festival de Brasília daquele ano recebeu o Prêmio do Público e a Margarida de Prata da Central Católica de Cinema. A “Boca do Inferno” (PUPPO, 2004, p.54), nome dado às realizações baianas daqueles idos, caracterizadas por uma estética marginal, se desenhava com esses e mais outros filmes, a exemplo dos longas-metragens Akpalô (1970), de José Frazão e Deolindo Checcucci, e Anjo negro (1972), de José Umberto, e do média-metragem Voo interrompido, de José Umberto, que, realizado em 1969, passou a ser considerado por Álvaro Guimarães “o primeiro filme realmente underground do cinema baiano” (SETARO, 2012, p.83).
Eram todos tripulantes desse barco vazio e sem capitão cantado angustiadamente por um Caetano Veloso prestes a partir para o forçado exílio, no famoso “disco da assinatura”, de 1969, com Lanny Gordin rasgando um de seus solos fuzz-psicodélicos. From the rudder to the sail / Oh my boat is empty / Yes, my hand is empty / From the wrist to the nail.
As reconstruções da morte
Escreve-se, e muito, sobre filmes. Alguns teóricos já ironizam ao dizer ser “todo cineasta um crítico frustrado”, tamanha a importância do debate cinematográfico na atualidade. Mas se escreve sobre filmes vistos e, de preferência, por muita gente. Não é comum se escrever sobre “películas avinagradas” (muitos sequer ouviram esse termo na vida). Quando se faz isso, inicia-se uma relação profunda com a tenuidade intrínseca na história oral, uma filha inevitável de nossa época, uma moderna e promissora solução para o entendimento das nervuras sociais. A história oral, assim como os filmes, se institucionaliza como reflexo de um momento histórico; principalmente na América Latina (e destaca-se o Brasil), onde esse tipo de saber autônomo esteve associado a processos de redemocratização após regimes despóticos. Através dessa prática independente e superando análises sócio-políticas moldadas em insuficientes conservadorismos acadêmicos, se deram as incessantes reconstruções das mortes – nesse caso o plural justifica-se por estarem intercaladas à morte de um filme, mortes de fluxos imagéticos, filosóficos, mortes de experimentações estéticas, poéticas e outras tantas ainda não compreendidas aqui nesse pobre e desajeitado escrito.
No longa-metragem de Orlando Senna, uma “transcodificação” – do molde literário para o audiovisual – feita através de um conto de Ariovaldo Matos, a história central é a de um jornalista que impede por acaso o suicídio de um homem prestes a se jogar de uma das janelas do Elevador Lacerda. O homem explica que é pobre e está com câncer de pulmão, que é melhor morrer logo do que sofrer e causar sofrimento à família; e o jornalista compra a morte dele, compra a exclusividade da notícia, oferece uma boa quantia de dinheiro para ele se suicidar outro dia, com hora marcada, saltando espetacularmente do próprio Elevador Lacerda. O homem aceita, convencido pela herança inesperada que vai deixar para a família, e o acordo é cumprido até o fim. Para tanto, o jornalista cativa uma amiga rica para conseguir o montante.
A adaptação da história se deu em dois momentos, ou melhor, existiram basicamente dois roteiros – que, entranhados de alguma forma no inconsciente de quem os escrevera, se perderam com o tempo e provavelmente não existem mais fisicamente. Em 1968, antes do AI-5, seria “apenas” a linha central do conto de Ariovaldo – evidentemente sem todas as nuances literárias: simplesmente um jornalista que compra a morte de um pobre coitado. Quando aconteceu o AI-5, em dezembro de 68, mudou-se a perspectiva do diretor na concepção do longa e o próprio inseriu as preocupações, pavores, tensões que se engendraram no ano seguinte, no chamado “ano do medo”. Talvez, por essas preocupações, pode-se interpretar que nem tantas outras obras daquele período tivessem uma relação tão íntima com o ano em questão como o filme do Orlando, que, pensado para ser realizado em 1968, por motivos de pré-produção só conseguiu ser rodado em 1969, passando o título a ser 69 – a construção da morte. Segundo o diretor, em entrevista dada em 5 de setembro de 2014:
“O projeto do filme muda quando entra em vigor o AI-5; é quando a gente entende o que acontecendo, e então muda o título e a história fica muito mais politizada. Daí o filme mostra todas as possibilidades que poderiam acontecer a partir dali: entra a questão das drogas, da guerrilha. Não se pode mais fazer aquele filme entusiasta, de quando se estava na rua, com passeatas de 100 mil pessoas em 1968. Houve uma radicalização do que se conta e o que se vê no filme, ou melhor, uma adequação ao clima da nova época (…) Era um filme sobre o medo, levado a um extremo enorme: medo de morrer, medo de que o cara não se matasse, tudo era medo!”
Terminados os processos de gestação do roteiro e pré-produção, o terreno estava pronto para o diretor começar a experienciar uma mostra da sua mais nova via-crúcis. Ou quase pronto: um dia antes das filmagens começarem, o produtor principal e financiador, o pai de André Luiz Oliveira, apareceu constrangido à casa de Orlando e disse não poder continuar na empreitada, pois descobriu que o seu filho também pretendia fazer um filme e contava com sua ajuda. O outro produtor associado, Braga Neto, figura histórica do cinema baiano, encorajou o diretor a ir adiante, mesmo com o orçamento em aberto e sem ter uma produção segura.
Foi-se adiante e se enfrentou novos desafios: rodar um filme numa cidade provinciana chamando o mínimo de atenção possível das autoridades. Orlando, que já havia conhecido a clandestinidade em 1964 – chegando a ter seu rosto mostrado na lista de subversivos que aparecia na televisão – temia a proximidade da repressão.
Por conta disso, a equipe de filmagens não foi gigantesca. Montou-se uma equipe profissional, com um desenho parecido com equipes do Rio de Janeiro e São Paulo na época, porém concisa em pessoal e equipamentos: tinha-se a necessidade de mascarar as filmagens. No elenco estavam Harildo Deda, Ian Sobanski, Conceição Senna, Sônia dos Humildes, Gessy Gesse, Marisa Urban e outros também bons atores da Bahia.
Em dois meses e meio de filmagens, com piques de até trinta horas de trabalho corrido, Orlando colocava em prática suas experiências com a linguagem cinematográfica, renovadas substancialmente através de sua participação nas filmagens de Caveira my friend, filme que coproduziu e auxiliou no roteiro. Aqui, um depoimento do diretor vem a calhar:
“A mise-en-scène era bastante despretensiosa, no sentido em que o ator tinha muita liberdade de movimentos. Ensaiávamos, claro, para não gastar filme à toa, mas era aquela coisa da composição a partir da direção e da atuação, não só da direção. Se soltava os atores, fazia uma primeira improvisação e a partir dali se fixava ou não, a palavra era essa. Fazíamos ligeiros ensaios para gastar o mínimo de negativo”
Esse aspecto do filme está intimamente ligado a sua estrutura narrativa, por se relacionar a “uma experiência cinematográfica que, menos pela violência que tematizou e mais pela sua violência estética, marcou a radicalização de um impulso de revolta que alguns cineastas julgavam estar saindo da pauta do Cinema Novo a partir de 1968” (PUPPO, 2004, p.23). No caso de 69 – A construção da morte, os dois vieses – temáticos e estéticos – parecem ter assumido digna importância: por um lado o filme refutava um estado de coisas daquela época, assumindo pretensões com a crítica política e social e não parecendo encarregar-se de uma postura tão nonchalance, hermética e puramente chanchadesca assumida por alguns dos filmes Udigrúdi (e isso fica mais claro se for levado em conta que Orlando Senna é filho do Cinema Novo); por outro lado o filme “fuma do mesmo cigarro alucinógeno” de seus filmes-irmãos do Udigrúdi baiano ao desarticular os cânones tradicionais do desenvolvimento do discurso fílmico. Os “eflúvios canábicos” perpassam as narrativas dos três filmes. Ainda segundo o diretor:
“O estilo narrativo de 69 – A Construção da Morte é mais parecido com Caveira My Friend do que com Meteorango Kid (…) O Caveira, apesar de seu estilo de fragmentação, narra alguma coisa que termina – se você entender bem o filme você vê que há uma história sendo contada. Meteorango Kid é mais fragmentado e muito menos linear. Esse estilo de narrativa vem de duas fontes, no meu caso: primeiro, a nossa fonte, o Cinema Marginal. E a outra referência era Godard – como ele montava os filmes dele, como fazia essa fragmentação de linguagem”.
Foi através do foco no jornalista, interpretado pelo polonês Ian Sobanski, que o diretor explorou uma inovação narrativa que só se concretizaria na sua obra anos mais tarde, com Iracema – uma transa amazônica, em 1976: o cinema híbrido, um arejamento da linguagem cinematográfica ao confundir ficção e documentário – ideia que em 69 não foi tão sutil como em 76. Orlando fez um acerto com a editoria de polícia do Jornal da Bahia e a equipe do filme acompanhava de perto coberturas de crimes, perseguições a bandidos, prisões em boca-de-fumo, etc; as cenas documentais se justificavam por conta desse personagem central. O tom do filme foi interferido fortemente pelo lado jornalístico do diretor.
As memórias viraram cinzas?
Em agosto de 1969 o Mercado Modelo, em Salvador, sofreu seu terceiro incêndio na história, até aquele ano. As proporções da desgraça foram tão grandes que destruiu completamente o prédio e obrigou os comerciantes a se mudarem definitivamente. Pois, acontecido esse evento, Orlando Senna teve a ideia genial de filmar uma das mais emblemáticas sequências do filme que, num esforço potente de rememoração, o diretor resgatou. Talvez tenha se lembrado por ser essa uma cena cheia de significados, e que pictoricamente (ainda que imaginativamente) nos traz uma atmosfera arrebatadora. O certo é que esse e mais outros resgates de memórias guardam uma relação simbiótica com a linguagem dos sonhos:
“Marisa Urban era basicamente uma modelo internacional, alta, bonita; era namorada do produtor Braga Neto. Ela é uma das amigas da moça rica (Conceição Senna) que está ajudando o jornalista no seu plano. Tem um momento em que se sai da história totalmente e está Marisa Urban num lindo traje longo, de noite, andando nas cinzas do famoso incêndio do Mercado Modelo. Eu esperei um ou dois dias, até que não tivesse mais perigo, com a ajuda dos bombeiros, claro, e fiz a cena em que ela passeia por esses escombros fumegantes – Corta! E vai pra cena onde está tendo uma festa à fantasia – tinha essa coisa de metáforas”.
O projeto que atravessava o filme era o conforto dos últimos dias de vida do pobre coitado que tentara se suicidar – interpretado por Harildo Deda – um lúmpen, como requer o extrato de personagens do Cinema Marginal. Para isso houve uma festa à fantasia, dada em sua homenagem. E mais uma alumbrada sequência do filme foi resgatada de algum porão da memória:
“A casa da personagem da Conceição, a mulher rica, é totalmente branca: chão, teto, móveis, tudo absolutamente branco e alvo. Era uma casa de milionários, e pintada com tinta de navios. Ficava uma coisa super contrastante – quem aparecia nessa casa era o Harildo, que fazia o suicida, vestido de esqueleto passando pela sala até a varanda, onde estava acontecendo a festa à fantasia – outra metáfora. Na festa é materializado o surrealismo que o tema pedia. Enquanto se narra a história existe um tom realista, mas o que tá se contando é surrealista; então na festa é o momento de dar um empuxo nesse lado surreal (…) Inclusive, a única fotografia que tenho do filme é dessa sequência da festa”.
Dentre essas sequências talvez a mais marcante seja a de Gessy Gesse contracenando com algum ator não identificado pelos entrevistados (talvez Luis Viana). Na sequência um casal, ao passar pela parte de baixo do Elevador Lacerda, comentava um plano terrorista de explodi-lo no horário de pique, como lembra Conceição Senna, uma das atrizes, em entrevista realizada em 6 de setembro de 2014:
“Tinha essa cena da Gessy – os terroristas planejando detonar o Elevador. Quando o produtor Braga Neto viu entrou em pânico. Contam (mas aí já não sei se é mitologia) que ele distribuiu as latas com o filme entre amigos e familiares (…) Anos depois Orlando descobriu, na Cinemateca do Rio, dois rolos, mas que logo avinagraram. Isso é uma violência tão grande que você prefere apagar da memória, sabe? (…) Destruiu todo um trabalho que já estava pronto; só faltava finalizar, aí chega uma pessoa, espera a gente sair do laboratório, entra durante a noite, com o poder de produtor tira as latas e nunca mais se vê o filme. Tempos depois ele apareceu lá em casa, conversamos, rimos e tudo mais, mas na época foi um golpe violento”.
Fardo, carma, raiva, medo…
Essas sequências, porém, não virariam uma espécie de fragmento onírico sem antes Orlando Senna e uma turma de baianos (que ficaram conhecidos como baihunos) terem aportados em São Paulo: os filmes, Caveira my friend e 69 – A construção da morte, tinham sido rodados e só restavam a revelação e montagem, que aconteceram no estúdio Odil Fonobrasil.
Na capital paulista o diretor pôde sentir que a “barra pesada” não se restringia a Salvador. O clima de tensão era iminente, a cada esquina um espreitador a pedir documentos, alguns chegando a rasgá-los ao notarem que vinham da Bahia. Orlando ainda precisava conciliar essa conjuntura com os perrengues de produção: não se tinha mais dinheiro para manter toda a equipe em São Paulo. Foi quando entrou na história George Jonas, um coprodutor paulista que contribuiu bancando a alimentação da equipe. Vale ressaltar que nessa turma estavam, além da equipe de “Caveira”, os recentes Novos Baianos, ali para gravar a trilha sonora do filme de Álvaro.
Como reflexo de toda aquela instabilidade a trilha sonora do filme de Orlando era incidental, bem voltada para lances tecnológicos; não havia música linear.
“Uma coisa muito feita com ruídos, com composição de ruídos. Tentava se fazer uma música dodecafônica, uma tentativa nesse sentido. Muito incidental – utilização de sons dramáticos, aproveitamento de sons para acrescentar na dramaticidade”.
Estava terminado o filme. Segundo Hermes Leal, “era um retrato contrastado (em preto-e-branco e em 35mm) daquele ano, daquela situação, confrontando seres humanos sem ética, sem piedade, poderosos, e seres humanos sob pressão determinados a mudar a vida, alguns a vida de todos, outros apenas a própria” (LEAL, 2008, p.164). Mostrou-se o filme à equipe e produtores, em banda dupla (bandas de imagem e som separadas, ainda sujeitas a correções). O resultado foi catártico e o produtor principal, o Braga Neto, entrou em pânico. Braga temia a reação dos militares – acreditava estarem, no mínimo, prestes a serem exilados, caso continuassem. Horas depois da exibição, mesmo após argumentações de Orlando, de que o filme poderia fazer carreira clandestina na Europa (caso de Manhã Cizenta (1969), de Olney São Paulo), não existia mais a obra. O produtor sumiu, junto com todas as latas que continham as películas, para só aparecer anos depois sem nenhuma delas em mãos.
O cinema mais uma vez se mostrava um terreno espinhoso para Orlando Senna. Anos antes, em 1963, já tinha tido uma de suas obras, a película de Rebelião em novo sol, um documentário feito em parceria com Geraldo Sarno para um espetáculo multimídia do Centro Popular de Cultura da Bahia, picotada em sua frente por um tenente, no quartel da Mouraria, na cidade de Salvador. O diretor se perguntava se era carma, ficava impressionado com a rejeição de seus filmes, ora por raiva, ora por medo. Harildo Deda, em depoimento de 10 de setembro de 2014, conta emocionado sua experiência com a realização e posterior sumiço da obra:
“Foi meu primeiro trabalho no cinema. A gente entrou na aventura de fazer o filme. E de repente o filme é feito e some. Eu não vi o filme e um dos maiores sentimentos que eu ainda guardo ao longo da carreira é não tê-lo visto, nem o copião. Sai o Caveira, mas o Construção da Morte some (…) É a partir de 1969 realmente que eu encaro isso como uma carreira e ponto final; talvez pela dureza do que foi aquilo. Até então era algo meio amador pra mim. A partir do trabalho com Orlando no filme que eu entendo o fazer cinema. Enquanto fazia o filme não sentia uma carga mística, decisiva, mas depois de ter feito e ter acontecido essas coisas todas eu vejo que isso foi o que reforçou a minha ideia de continuar nessa arte da autotransformação”.
As janelas do Elevador Lacerda encontram-se fechadas
Findado de maneira trágica, com dor e sentimento de perda irreparável para alguns envolvidos, o projeto do filme que vinha desde 1968 partiu para um espaço imaginário destinado às fragmentárias películas do subdesenvolvido cinema brasileiro.
Sumiu sem deixar rastros, comprovando a existência de um “raquitismo filosófico”, esse projeto ocupacionista instaurado há anos na cultura brasileira e que toma forma no cinema através de cada roteiro engavetado, cada película avinagrada, cada filme que demora mais de 30 anos para sair do roteiro (casos como O homem que não dormia (2011), de Edgard Navarro), cada filme que mal consegue ser distribuído; e, como é o caso de 69 – a construção da morte, o neocolonialismo toma forma através da imponente sensação de medo imposta a uma geração de artistas.
Que, em meio aos resquícios parasitários dos que aqui armaram botes, transcendam essas poderosas memórias, muitas narradas no presente, indício de que (in)conscientemente possam estar vivas no imaginário de uma geração, atestando a ideia de que “cinema é mais do que filme”.

REFERÊNCIAS
LEAL, Hermes. Orlando Senna: O homem da montanha. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. São Paulo, 2008.
PUPPO, Eugênio; HADDAD, Vera. Cinema Marginal Brasileiro e suas fronteiras: Filmes produzidos nos anos 60 e 70. Brasília, 2004.
COELHO, Frederico. Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado: cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
CARVALHO, Maria do Socorro Silva. A Nova Onda Baiana: cinema na Bahia (1958-1962). Salvador: Edufba, 2003.
SETARO, André. Panorama do Cinema Baiano. Salvador: FUNCEB / Diretoria de Imagem e Som.
ORMOND, Andrea. Caveira My Friend. 2011, Belo Horizonte. Disponível em <http://estranhoencontro.blogspot.com.br/2011/06/caveira-my-friend.html>. Acesso em: 26 set. 2014.

ENTREVISTAS
DEDA, Harildo. Salvador, Bahia, 10 set. 2014. Entrevista concedida para Filipe Barbosa de Oliveira.
GESSE, Gessy. Lençóis, Bahia, 5 set. 2014. Entrevista concedida para Filipe Barbosa de Oliveira.
LEAL, Hermes. Lençóis, Bahia, 6 set. 2014. Entrevista concedida para Filipe Barbosa de Oliveira.
SENNA, Conceição. Lençóis, Bahia, 6 set. 2014. Entrevista concedida para Filipe Barbosa de Oliveira.
SENNA, Orlando. Lençóis, Bahia, 5 set. 2014. Entrevista concedida para Filipe Barbosa de Oliveira.


* Filipe de Oliveira é estudante do curso de Cinema e Audiovisual da UFRB.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

UM CONTO DE REIS

MINHA ATRIZ NAQUELES DIAS
 Fábio Carvalho

Ave Maria Nossa Senhora! No mundo há pessoas que dão pena, outras dão asas. Uma frase anônima que não lembro mais de onde recolhi. A chuva tamborilava no telhado de zinco quente enquanto a gata branca, imóvel como uma esfinge, olhava dentro dos meus olhos fixamente. Comecei a ficar incomodado com aquela inquisição enigmática, dispersei-me então para o outro cômodo interrompendo meus afazeres como se estivesse fugindo da cruz assustado pelo maremoto que se passava dentro de mim. É certo que uma hora terei que enfrentá-lo, não existe transição sem turbulência onde é necessário ao menos um pouco de coragem para arriscar. Consegui escapar ainda longe do mar. Mário, o ator, me mostrou uma colagem da sua mais nova safra, quando fui visitá-lo no trás ante ontem. Vi mucos, mucosas, glandes, vulvas, clitóris, pequenos e grandes lábios, mamilos, gengivas, céus da boca e línguas em primeiro plano por sobre abstrações sem cor ou descoloridas antes do preto e do branco. A cor de amora e o calor umedecido construíram uma tessitura de sexualidade profunda, violenta, explodindo como mênstruos na água. Na conceituação do artista plástico ali estavam o movimento e o equilíbrio convergentes para um ponto de fuga, era isto que o resultado da obra revelava. Pensei em vão.  A linguagem é secreta na viagem livre e solta com passagem só de ida. Belo quadro. Mudando de pau pra cavaco, continuando nas artes plásticas, na segunda feira pela manhã estavam parados em frente à banca tem tudo do Salim, o Véio, o Feio e o Pereirinha, conversando entre pausas com muita seriedade. Disfarcei comprando um jornal e percebi que negociavam sobre a divisão das duas garrafinhas pitchula com pinga que tinham conseguido comprar na vaquinha, assunto realmente muito importante. Negativos valem ouro. Tortura mental, saudade é o meu mal. Válvula de escape, enquanto todos corriam atrás da idéia fugidia, parecia que nada ia dar certo, logo ela, a primeira do lado B veio me salvar: Rosa Menina. O tempo todo dia é menos do que ontem. Nem estou sabendo se hoje é ontem ou se agora é amanhã. Também pra que saber. Dizem que não existe vida sem esperança, hoje estou completamente desesperançado. Vou votar, coisa que não faço há anos por desobediência civil. Desci das alturas, vejo na esquina da Rua dos Guajajaras com a Avenida Amazonas uma mendiga negra sentada em cima de vários sacos de plástico cantando em altos brados afinadíssimos, com letra corretíssima, o Hino Nacional, algo de dar inveja a qualquer desportista que mastiga e finge que sabe o que finge cantar em close com olhos embargados. Quem vem lá, chegando lá de trás do mar. Refoga e escalda o sururu, apura o vinho de caju amigo. A bela bailarina Flor não se animou com nenhuma das músicas de vários gêneros que as outras mulheres da festinha no apê colocaram para dançar, curioso, perguntei qual música movia a bailarina a bailar, ela respondeu: é samba-rock meu irmão. Depois mais tarde ouvi a Flor bailarina falando para a Mariana que seu esmalte preferido chama-se “Flores para Iemanjá”, verde azulejo piscina. Luxuriante é a mesa vestida de chita com o verde translúcido da garrafa de Heineken misturada lá fora com lua crescente já visível no céu azul anil acima da comunidade multicor. A origem do mundo. Nada como a tristeza para te trazer a beleza, enquanto a alegria é a prova dos nove. O Lírio, que é uma planta subterrânea, se estressa com tanta secura quando ao primeiro pingo de água se reproduz loucamente nascendo em flor para salvar a espécie. Segundo disse o Rodolfo durante a primeira cerveja pública depois da eleição de frente ao lava-jato onde a garçonete da padaria trocava a roupa de porta aberta. O soutien e a calcinha eram pretos em combinação. Brilho de purpurinas, bolas e serpentinas, som vibrando metais, nus foliões, casais e eu sem ter você... Estou totalmente Moacir Santos. E veio a Quarta- Feira, cinzas, contrição e Orfeu. Peras de Rio Negro na falta de água. Recentemente aconteceu com meu pai um fato curioso, ele foi roubado dentro de casa pela menina que minha mãe trouxera do interior para trabalhar com eles. Ela levou uma pochete contendo todos os documentos, cartões de banco e algum dinheiro. Foi identificada pela câmera de segurança do caixa eletrônico, que ela se utilizou para sacar tudo que pode. Muito a contragosto, já que gostava da menina, meu pai foi convencido pelo banco a registrar uma ocorrência, fui com ele. Na delegacia, como não tinha mais documentos, o policial começou a procurar pelo seu nome na central de identificações, não encontrou.  Então pediu a filiação e tentou em nome do meu avô falecido em 1940, sem sucesso. Meu pai não lembrava o nome completo de sua mãe, assim ligou para minha tia, sua irmã, para perguntar: ô Dayse, como é que mamãe chamava mesmo? Nada foi encontrado. Com um sorriso maroto ele se virou para mim, do alto dos seus oitenta anos, perguntando sem duvidar: será que eu não existo? Certa vez o Guará me contou que ficou mais de dez anos sem vir a BH, com isso sem ver seus familiares, esteve durante este tempo viajando cinematograficamente pelo mundo afora. Rio, Londres, Paris, Marrocos, Índia, Afeganistão, Trancoso e por aí vai. Um dia sem aviso voltou, desceu do taxi em Santa Tereza em frente à sua casa, onde uma senhora regava as plantas. Foi correndo abraçá-la e beijá-la dizendo: mamãe que saudade! No que a senhora retrucou prontamente: não sou sua mãe, sou a vizinha, sua mãe está lá no quintal cuidando da horta. A sensibilidade apocalíptica. Voz interior que fala: felicidade inexprimível de estar ali, tendo em volta a “Rosa da África”. O professor olha a estudantada preta, invadido por aquela exaltante voz interior: o seu “idealismo”, o seu “estado de poeticidade”... Escreveu Pier Paolo Pasolini em “O Pai Selvagem”.  Continuei vagando, deambulando pelo mesmo trajeto, coisa que está enchendo meu saco. Cambiar se faz necessário.  Depois dessas implosões inter-galáticas, consegui terminar mais um pequeno filme. Nascido de um escrito que fiz por encomenda do meu ouvido e dos planos que filmei com a camereta fotográfica ao hazard, esse quadro movimento musicado me mostrou outras possibilidades de prazer, me fez enxergar mais adentro. Próximo ao meu inferno astral, não podemos dificultar o amadurecimento.  Não sei por que falo no plural novamente, deve ser meu outro eu. O Pica Pau está recostado em um galho de árvore sonhando com o prêmio da loteria que ele tem certeza que vai ganhar. Dentro do balãozinho que indica seu sonho está escrito o que o dinheiro vai lhe trazer: mulheres, iates, mulheres, mansões, mulheres, carrões, mulheres, viagens, mulheres, caviares, mulheres, champagnes, mulheres, banquetes, mulheres e etc. A mulher tem muito mais complexidade do que mulheres. Não deixa de ser engraçadinho o sonho do Pica Pau, seria mais ou menos como ser amado ou ser o amado. Naquele final de manhã, caí num botequim horroroso na Rua dos Caetés depois do teste de projeção, ele já estava ficando até agradável quando fui ao mictório e vi um cartaz onde estava escrito em letras garrafais: proibido dançar. Meu corpo de baile ali não teria vez, pensei com grande desilusão. Decidi parar de fumar e beber de uma tacada só, achando que não iria mais me reconhecer quando me olhasse no espelho, apesar do entorno insistir que esse pensamento era uma tremenda bobagem. Novamente ela sorriu para mim e passou. Fui cedo ao Mercado Central em busca de um prato feito, tudo estava lotado, de súbito encontrei-me com o Biscoito, o mundo se encheu de esperanças mais uma vez, subi de elevador.


domingo, 12 de outubro de 2014

DEPOIMENTO DE CINEMA


Depoimento de Paulo Emílio Sales Gomes à CPI do Cinema, realizado em 1964.

Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as atividades da indústria cinematográfica nacional e estrangeira.

Aos cinco de maio de mil novecentos e sessenta e quatro, perante esta Comissão Parlamentar de Inquérito, o senhor Paulo Emílio Sales Gomes prestou o seguinte depoimento:

[Sr. Presidente] Está aberta a sessão. Com a palavra o senhor Paulo Emílio Sales Gomes.
Senhor Presidente e senhores membros da Comissão, eu gostaria inicialmente de dizer o ângulo através do qual estudei a problemática do cinema brasileiro. Primeiramente foi de um ângulo histórico e se me permito aqui abordar rapidamente esse ângulo histórico é porque me parece que ele nos traz a chave para a problemática do cinema brasileiro, inclusive do contemporâneo. Se imaginarmos o que foi a chegada do cinema no Brasil reinava uma mentalidade importadora, veremos que era uma época em que nós, no Brasil, importávamos tudo. Ficamos surpresos quando lemos nas memórias de Gilberto Amado, por exemplo, ele que trabalhou na Anfândega de Recife quando moço, ficamos surpresos, repito, quando encontramos a enumeração daquilo que importávamos naquele tempo: sabonetes, doces, evidentemente toda uma espécie de bebidas e até palito. Éramos um país importador, inclusive de palitos. Naturalmente, quando surgiu o cinema, esse tipo de manifestação popular, que exige para a sua fabricação uma complexidade maior que para a fabricação de sabão ou de palitos, nós, imediatamente, nos pusemos na condução de importadores dessa forma de entretenimento e de diversão popular que em seguida adquiriu a fisionomia de arte. Apesar da mentalidade importadora que reinava no começo do século e que se desenvolveu no Brasil durante muito tempo, vemos que o período de ouro do cinema brasileiro vai até a Guerra de 1914-1918 e que nos fez sentir que essa época a proporção de filmes brasileiros exibidos em nossos cinemas era muito maior que a atual. Isso se explica: naquela época os programas cinematográficos eram compostos de vários filmes, filmes curtinhos. Em média geral, um programa cinematográfico tinha seis ou sete filmes de forma que um filme brasileiro entrava nessa programação constantemente, sem perturbar aquela importação de filmes estrangeiros. Por outro lado, naquela época o cinema não tinha a importância comercial que adquiriu depois e que num país como os Estados Unidos só a partir de 1906 e 1908 começou a ver grande número de cinemas estabilizados, casas de espetáculo especialmente dedicadas a passar filmes, quanto mais no Brasil. Nesse período o número de cinemas permanentes, de casas de espetáculos que existiam só para passar filmes era relativamente pequeno. O cinema era atividade de espécie de pessoas que viajavam mostrando o filme através do país. De qualquer maneira, e apesar dessa presença, o cinema brasileiro, quando a Guerra impediu a importação de filme virgem, praticamente desapareceu do mercado e nunca mais conquistou a posição que havia obtido naqueles anos. Vemos, então que toda a atividade cinematográfica no Brasil, tudo que se referia a nossa legislação da época, aliás, reflete isso muito bem, quando o legislador se interessava pela classe cinematográfica brasileira. Se formos examinar o que essa essa classe cinematográfica brasileira veremos que eram as pessoas todas empenhadas no comércio de importação de filmes, primeiro através de marcas como a Pathé francesa, inclusive a Nordest, depois a Nordest Dinamarca, a Itália, italiana, e outras americanas que se afirmaram em 1914-1918. Toda a movimentação cinematográfica brasileira existia em termos de importação. Naturalmente, alguns brasileiros, desde o começo do século, tentaram fazer filmes e continuaram a fazê-los. O que vemos, cada vez que há uma tentativa, seja a tentativa de 1910, em Pelotas, seja a tentativa de Campinas ou em Pernambuco, dos anos de 1920, sejam as mais permanentes do Rio ou São Paulo, seja algumas das tentativas de Belo Horizonte, o que vemos sempre, desde as aspirações mais humildes até o empreendimento mais ambicioso, como foi o da Vera Cruz que ainda está na nossa memória, o que temos visto acontecer é sempre a mesma coisa: surgem pessoas que resolvem fazer um filme, pensando que basta fazer um filme e que esse filme automaticamente encontrar escoamento, encontrará um mercado. Eles se lançam na aventura, fazem os filmes e quando estes estão prontos encontram a maior dificuldade para que eles sejam distribuídos, para que sejam exibidos, porque no momento em que o filme brasileiro está pronto, ele entra em conflito com toda uma estrutura organizada, tendo em vista exclusivamente a importação de filmes estrangeiros. A história do nosso cinema é constantemente esta. É sempre esta. Há do nosso lado os filmes que não conseguem conquistar o seu próprio mercado, que não encontram lugar em seu próprio país para sobreviver e para desenvolver. Este é o esquema histórico do cinema brasileiro. Tendo-se esse esquema histórico, essa visão, compreende-se o que acontece, inclusive, atualmente e compreende-se qual o único problema do cinema brasileiro, porque frequentemente as pessoas que estão empenhadas nos negócios cinematográficos perdem de vista a seriação dos problemas e n˜åo percebem qual aquele fundamento que de todos nós depende. E o problema fundamental é este: os nossos filmes não têm lugar no mercado brasileiro, não têm um lugar condigno, o nosso filme continua a ser um caso num esquema organizado para a importação, a distribuição e a exibição do filme estrangeiro. Esta é a situação. De forma que pensar na possibilidade de resolver o cinema brasileiro sem resolver inicialmente esse problema é impossível, é uma utopia. O Brasil, no que se refere aos grandes países do mundo, é hoje o último país onde há praticamente mercado aberto. Tenho certeza de que muitos depoentes, com estatísticas completas, já vieram diante desta comissão apresentar cifras, demonstrando, por exemplo, que tínhamos há dois anos, não sei as cifras do ano passado, trezentos milhões de espectadores por ano. Temos, no nosso mercado, inicialmente, cerca de setecentos filmes, ao passo que um país como os Estados Unidos da América do Norte, que têm um mercado de dois bilhões e quinhentos milhões de espectadores por ano, têm no seu mercado, de início, aproximadamente a metade da quantidade desses filmes. Isso parece que define bem a situação. De forma que eu não vejo nenhuma possibilidade de se resolver o problema do cinema brasileiros, de se salvar o cinema brasileiro. Precisamos de medidas a fim de diminuir de forma substancial a importação de filmes estrangeiros, precisamos chegar a um momento em que se diminua de 50% a importação do filme estrangeiro com a finalidade de permitir que o nosso filmes tenha chance, a nossa indústria tenha chance e se desenvolva. Aliás, esse corte massivo da importação será inclusive favorável, não será desfavorável para aqueles filmes que serão importados, porque os que serão importados irão lucrar muito mais, terão um lucro muito maior ao mesmo tempo em que esse abrirá chance para o cinema brasileiro. Os filmes que conseguirem ultrapassar as barreiras que deverão ser feitas para a sua importação terão depois, em virtude de o mercado estar muito mais saneado, eles terão chance muito maior. Esta é a visão global, inicial, que queria dar da minha posição diante do problema. E me ponho inteiramente à disposição do senhor presidente e dos demais membros da Comisssão para responder às perguntas que porventura me queiram fazer.

[Sr. Presidente] Tem a palavra o nobre relator, Deputado Evaldo Pinto.
[Sr. Relator] Retomando a mesma linha sua exposição inicial, vou solicitar agora alguns pormenores sobre os pontos fundamentais se sua explanação. Quais as medidas práticas que o depoente recomenda para chegarmos à defesa do mercado brasileiro para o cinema brasileiro?
Esse problema eu já o examinei algumas vezes e cada vez fico mais perplexo, porque vejo que essa situação que sufoca a existência do cinema brasileiro é uma situação perfeitamente legal, o que não me espanta porque, conforme disse no decorrer de minha exposição, toda a legislação existente a respeito do cinema é uma legislação destinada a amparar a importação. Por exemplo, quando vejo o que se paga na Censura para censurar um filme é uma some ridícula de quarenta centavos, se não me engano, que foi fixada em 1939, então eu pergunto a juristas, pessoas autorizadas, bem-informadas sobre esse problema, se não é possível modificar isso e essas pessoas me explicam que essa soma foi fixada num decreto-lei, numa época em que o decreto-lei tinha força de lei. De forma que para ser modificado precisa de uma outra lei. Quando examino algum problema tarifário, algum problema de licença de importação, de taxação ad valorem, dizem-me que também nesse terreno nó´s estamos com os braços mais ou menos tolhidos, porque a coisa está vinculada a compromissos internacionais do Brasil com o GATT e fico também perplexo. De forma que, de maneira global, eu vejo que essa situação nefasta par ao desenvolvimento do cinema brasileiro é situação perfeitamente legal. Nós todos sabemos que as leis podem ser modificadas e eu penso, inclusive, que seria importante, talvez, aproveitar o momento em que as leis, em que a legalidade tem menor importância do que habitualmente (grifo meu – paulada do Paulo Emílio), para criar nossos meios dirigentes, nos nossos meios não só do Legislativo, mas do Executivo, uma mentalidade que permita talvez forçar um pouco e modificar essa lei. Realmente, na situação atual, sobretudo na situação nova em que nos encontramos, que cabe a iniciativa de fazer toda uma série de leis. Acho que o trabalho a ser feito seria o de convencer o Executivo a pedir a seu órgão, que é o GEICINE, que preparasse todo um plano a fim de permitir que 50%, dentro de "X"tempo, cinquenta por centos do filmes importados fossem pagos.

[Sr. Relator] Qual a opinião de V.Exa sobre dispositivos legais que tratem da obrigatoriedade de exibição de filmes brasileiros?
Parece-me totalmente inócua, porque quando uma lei não corresponde à realidade profunda das coisas ela é certamente violada. É uma visão sociológica do problema e que me parece válida. A nossa situação, a legislação, a situação de fato do Brasil, vincula de tal maneira o interesse do comércio cinematográfico à importação de filmes que esses comerciantes são levados, necessariamente, a não aceitarem, a violar, a fraudar todas as leis de proteção ao cinema brasileiro. Esses comerciantes só teriam um comportamento diferente, e aqui não estou fazendo nenhuma manifestação pejorativa a esses comerciantes, eles são comerciantes como os outros, tão patriotas ou menos patriotas do que os outros, em geral são homens que pensam nos seus negócios. Acontece que a situação criada faz com que os seus negócios dependam fundamentalmente de importação de filmes. No momento em que fosse criada uma situação, no Brasil, que vinculasse o interesse desses comerciantes ao cinema brasileiro, esses comerciantes se vinculariam ao destino do nosso cinema com o mesmo prazer e entusiasmo com que se vinculam atualmente ao destino do filme estrangeiro, porque nesse momento seria com o filme brasileiro que ganhariam mais.

[Sr. Relator] Qual a opinião do depoente sobre o problema de incorporação? O desenvolvimento de acordo de vários países poderia constituir medida vantajosa para o cinema brasileiro?
Na situação atual não teríamos condição de fazer acordo de igual pra igual. Nosso mercado é pequeno, nós não controlamos nosso mercado e não podemos garantir aos nossos partners. De outro lado, poderemos exibir o filme aqui com as mesmas garantias e vantagens com o que a outra parte poderia exibir em seu país. Isso por um lado. Por outro lado, a situação geral do cinema brasileiro desencoraja os nosso capitalistas ou encoraja muito pouco. De forma que não podíamos também, nesse terreno, ter uma participação equivalente àquela que os nossos companheiros de negócios do exterior trariam para o negócio em comum. De forma que nós, necessariamente, ficaríamos numa situação de inferioridade. E essa situação de inferioridade teria como consequência, praticamente, fazer esses filmes estrangeiros aqui no Brasil, utilizando exclusivamente a nossa barateza de mão de obra, inclusive de nossa mão artística. Atualmente, estamos em condições de fazer coproduções que sejam válidas em países em situação cinematográfica igual à nossa ou em situação de inferioridade, inclusive já com a Argentina, numa situação mais sólida, podíamos fazer acordos de coprodução. Mas mesmo nesse caso, pelas razões já expostas, nós ficaríamos em situação de inferioridade.

[Sr. Relator] Os jornais noticiaram que a delegação brasileira mais uma vez chegou ao festival cinematográfico de Cannes sem um centavo sequer para promoção de sua mercadoria. O depoente não acredita que, com tratamento publicitário mais intenso, com uma divulgação razoável, o cinema brasileiro, determinados filmes brasileiros, pelo menos, poderiam ter possibilidades maiores do que as atuais no mercado mundial de filmes?
Certamente, senhor deputado. Isso, não tanto devido ao nosso cinema, mas devido ao nosso país. Há, atualmente, no mundo – e eu, que viajo de vez em quando para congresso, para trabalhos internacionais, posso sentir até que ponto isso é verdadeiro – crescente interesse pelo Brasil, pelos nossos problemas, pela nossa afirmação como nação e, inclusive, pela nossa afirmação cultural. Na medida em que há esse interesse, essa curiosidade pela nossa pátria, esse interesse e essa curiosidade se refletem pelos nossos filmes. Os nossos filmes poderão ter possibilidades no estrangeiro. Mas devo dizer que não é possível calcular-se, imaginar-se indústria cinematográfica baseada na exportação. A exportação é algo que pode vir como suplemento. Basicamente uma indústria cinematográfica tem que buscar-se no mercado interno. os filmes têm que ser pagos no mercado interno.

[Pulei algumas perguntas sobre a Cinemateca e outras coisas que me interessavam pouco no que diz respeito ao imperialismo estrangeiro sobre o cinema brasileiro e prossegui na transcrição]

[Sr. Presidente] Com a palavra o nobre Deputado Alceu de Carvalho.
[Sr. Alceu de Carvalho] Sr. Paulo Emílio, no decorrer de seu depoimento V.Sa.m – aliás destacando bem esse ponto – frisou que, para proteção do cinema nacional, no sentido de seu desenvolvimento, se sua existência real, necessitaríamos levantar barreiras à importação. Pergunto à V.Sa. se, dentre essas providências, não seria aconselhável, atendendo-se a ambos os aspectos – oferecer certa resistência à importação e possibilitar a exportação de nossa produção – o sistema de reciprocidade. Quer dizer: para importarmos determinado número de filmes, esses países produtores dos quais importássemos seriam forçados a adquirir ou exibir filmes nossos. V.Sa. acha possível, exequível, esse sistema de reciprocidade?
O sistema de reciprocidade apresente o seguinte defeito: mostra a prática que ele só é possível quando, numa das partes, há o controle governamental da indústria e do comércio cinematográficos. No caso, por exemplo, da Polônia com os Estados Unidos, foi feito um acordo de reciprocidade, acordo curioso, aliás, porque no fundo n˜åo foi um acordo de Governo para governo. Foi um acordo entre o governo polonês que controla toda a indústria e todo o comércio cinematográfico e a indústria cinematográfica norte-americana. Foi um acordo comercial nessa forma de reciprocidade feito de uma indústria para um governo.

[Sr. Deputado Alceu de Carvalho] Porque na Polônia existe o monopólio estatal.
Exatamente.

[Sr. Deputado Alceu de Carvalho] Mas, por exemplo, entre o Brasil e os Estados Unidos, entre entidades privadas, isso não seria possível?
Sr. Deputado, não vejo qual o interesse que poderia ter o industrial do cinema norte-americano numa reciprocidade com filmes brasileiros. Conforme tive ocasião de ler em depoimento que foi feito aqui tudo aqui é tão fácil para a entrada de filmes estrangeiros que os produtores estrangeiros não teriam razão alguma para modificar essa situação, a não ser que fossem obrigados.

[Sr. Deputado Alceu de Carvalho] O meu raciocínio - e quero que V.Sa. entenda – parte do seguinte princípio: se nós estabelecemos determinadas restrições à importação, evidentemente o produtor estrangeiro se procurará ressarcir também adotando medidas em sentido de represália, taxando o preço do filme de uma forma exorbitante, com certo ágio. Tenho a impressão que, com reciprocidade, se diminuiria essa possibilidade de represália do produtor estrangeiro com relação ao nosso mercado.
No terreno cinematográfico, propriamente, eu não vejo qual é a represália que se poderia fazer contra o cinema brasileiro. Não vejo o que se poderia fazer de pior em relação aos filmes brasileiros do que já se faz por parte do estrangeiro, isto é, ignorar a existência do filme brasileiro. A pior coisa que um país estrangeiro pode fazer em relação ao filme brasileiro é nem tomar conhecimento de sua existência.

[Sr. Deputado Alceu de Carvalho] Mas essa represália seria com relação ao exibidor nacional. O nosso mercado consumidor é que seria forçado a dispender maiores quantias porque, diminuindo a importação deles, evidentemente cobrariam mais.
Diminuindo a importação o que acontecerá automaticamente é o desenvolvimento de nossa produção. Isso é que nós queremos.

[Sr. Deputado Alceu de Carvalho] Quer dizer que V.Sa. não acredita, como aconteceu com outro depoente, que os produtores estrangeiros procurassem impor maiores ônus ao nosso mercado na hipótese de se diminuir a importação?
Não acredito.

[Sr. Deputado Alceu de Carvalho] Aliás, é a minha opinião. Sr. Presidente, estou satisfeito com as respostas do ilustre depoente.
[Sr. Presidente] Tem a palavra o sr. Deputado Ruy Santos.
[Sr. Deputado Ruy Santos] Sr. Presidente, antes da primeira pergunta, agradecendo a referência do depoente, queria apenas ponderar que o que por acaso eu fiz na Bahia não foi tanto por mim mesmo, mas em função da orientação do próprio Governador da Bahia então, sr. Juracy Magalhães. Atendendo às orientações de S. Exa. é que me foi possível ajudar não só os produtores nacionais, como Glauber Rocha, como Anselmo Duarte, como Nelson Pereira dos Santos, como mesmo aos pequenos produtores estrangeiros. No caso do auxílio ao produtor estrangeiro o nosso interesse era, naturalmente, o interesse na divulgação da ambiência, o interesse na propaganda da terra. eu mesmo tive oportunidade de ir até ao Nordeste quando um grupo que fez Carnaval veio para estudar a possibilidade de fazer Canudos com base o livro de Euclides da Cunha. Eu mesmo larguei meus afazeres para acompanhar os produtores até Canudos. Tive, inclusive, oportunidade até de colaborar na retirada de certos senões, de certos equívocos do roteiro elaborado pelos roteiristas franceses com base apenas no livro de Euclides, sem conhecer o ambiente. Ainda me lembro de uma das passagens. Quem conhece o Nordeste e conhece a fruta nativa do umbu sabe como o umbu é colhido. Balançando-se o galho a fruta cai. É uma fruta mais ou menos como o limão. Pois bem: no roteiro estava que o jagunço tirava a faca e cortava a fruta do pé. E como isso havia coisas que, naturalmente, não têm cabimento, coisas, afinal, de contas, próprias da dialogação mesmo. O que fizemos na Bahia foi fruto, até certo ponto, não so do interesse pelo cinema que o Governador tinha, mas também do próprio estímulo que vem do ambiente baiano. O ambiente baiano, como todos sabem, ajuda a produção do cinema, desse cinema no bom estilo. Nele há possibilidade, por exemplo, de serem realizados filmes como O pagador de promessas, com a utilização do Zé do Burro, isto porque temos naquela igreja, aquela escadaria muito boa e muito bonita que possibilitou todo aquele cenário que realmente deu uma vida espetacular ao filme. Agora mesmo está em Cannes um filme de Glauber, Deus e o diabo na terra dos pobres (sic). O Glauber é indiscutivelmente um rapaz de talento. Mas – e eu afirmo isso porque já disse isso ao Glauber mais de uma vez – ele é inteiramente louco. Mas, muitas vezes, desses loucos é que veem as grandes coisas. O que fizemos na Bahia – e apenas falei isso porque fui provocado a como uma retificação – foi em função não do meu interesse, mas da orientação do próprio Governador do Estado. Como, no entanto, tenho um projeto da Ordem do Dia, de constituição de uma Comissão de Inquérito, e terei já de subir ao plenário, vou apenas fazer duas perguntas rápidas. A primeira é a seguinte: acha o depoente que a indústria cinematográfica brasileira já saiu da fase artesanal, vamos assim dizer, para a fase industrial?
Já tentou, mas não conseguiu sair, porque uma indústria só é possível quando os seus produtos têm mercado.