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quarta-feira, 28 de maio de 2014

EM MEMÓRIA



CARTOGRAFIA DA AMIZADE
 Fábio Carvalho

Estive pela primeira vez com o Ricardo no Cine Unibanco da Rua Augusta em Sampa, ele então morava por lá. Era como se há muito já tivéssemos nos conhecido. Lembro agora dessa estranha sensação, um reconhecimento através dos olhos.  A senha para a aproximação era a amizade que eu já desenvolvia com seu parceiro e irmão de fé cinematográfica Paulo César Saraceni. Na sexta feira bem cedo, dia 28 de Março do ano 14, íamos para o Aeroporto dos Confins, embarcar num avião rumo ao Rio de Janeiro. Prestes a se levantar, ainda na cama, a Isabel me conta que sonhara a noite inteira com o Ricardo e o Saraceni em um parque. O Sarra, embora muito envelhecido e enrugado, corria e pulava como se fora ainda um menino, e o Ricardo sentado ao seu lado, cochichava repetidas vezes no ouvido dela o seguinte: ele é doido, ele é doido. O avião atrasou, estávamos na lanchonete da sala de embarque, quando o post da Helena Ignez nos atingiu feito um raio: “nosso amadíssimo e insubstituível Ricardo Miranda morreu.” Como assim? Era a pergunta. A verdade. Um corte seco desferido por um golpe de cutelo. Naquela manhã de mudança de planos, temerosos de dar a terrível notícia por telefone ao Rosemberg, Bárbara Vida e o Gabriel se encaminharam para o apartamento dele carregando a triste missão. Lá chegando ao abrirem a porta do elevador, encontram com o Rosemberg que ia ao correio postar uma carta para o amigo que não mais a receberia. Estou aqui nas alturas recolhendo os cacos da memória. Antes, quando estivemos pela primeira vez juntos na bela Cataguases, ficamos hospedados na pequena Miraí e, nas idas e vindas pela Avenida Ataulfo Alves de taxi ou de Van, selamos nossa amizade que se evoluiu filosoficamente. Estivemos outras vezes em Cataguases, uma delas na cachoeira do Humberto Mauro, reunidos a um grupo extraordinário, logramos realizar o filminho chamado Casa do Polanah. A aparente tranquilidade com o entendimento do desenrolar do tempo, vinda de sua estatura intelectual e sofisticação como pensador montador, sincronizou as expectativas, que enfim descobri que tinha. Falo de mim para falar dele. Continuo me dirigindo a ele. De outra vez em Itu, me colocou na condição de jurado, coisa que nunca tinha aceitado, talvez para aprender a perder um pouco de minha recôndita empáfia. Confesso que nessa função presidido por ele, vi que no cinema tudo pode ser devidamente escrutinado sem parcialidades de outra ordem. Pode-se e deve-se levar em conta o cinema, ele mesmo o organismo vivo em questão. Das três ou quatro vezes em que estivemos no Festival de Cinema de Brasília, guardo comigo os papos noturnos depois das sessões dos filmes, nas mesas da piscina do Hotel Nacional. Seu sotaque arrastado e pausado de Araribóia e a maneira de nunca falar sem antes pensar eram para mim bastante peculiares. Mesmo calado o seu olhar falava muito. De outras feitas, os passeios matinais friorentos pela barroca cidade Ouro Preto, acompanhados pelos amigos mineiros e por sua assistente naquele momento, a bela morena carioca Litza. Continuei apreendendo cinema por vários anos luz. Hoje, depois que saí do meu bureau secreto, só vi mulheres andando pelas ruas, todas muito bonitas, embora ainda não se soubessem, determinadas e altaneiras em busca de tesouros perdidos, carregando suas grandes bolsas, onde seus mundos e fundos eram guardados. Era como a Cidade das Mulheres do Fellini, apenas elas existiam e regiam a sinfonia do anoitecer. A hora da Ave Maria. Ainda tinha a lua cheia de Maio ali presente, a histeria estava no ar. O Ricardo nasceu no dia 10 de Maio, dia da primeira exibição em BH do filme Guignard Imaginário, apenas mais uma coincidência inexplicável. Podemos perder as manias. Reunidos em torno do mistério da existência e da finitude, mais um ciclo se fechou, outro se inicia. Agora resta uma mesa na sala. Trabalho muito melhor com o frio. Ontem à noite recebi um telefonema do Otávio Terceiro, me falando de maneira bastante eloquente, como ele bem sabe, sobre a cópia que acabara de rever de O Filme da Montagem, onde o Saraceni e o Ricardo são os protagonistas de uma espécie de registro dos bastidores da montagem do filme O Gerente, que veio a ser a última parceria dos dois velhos amigos. Não resisto e transcrevo aqui um parágrafo da crônica do Carlos Drummond de Andrade, intitulada Declarações à Colegial que veio Entrevistar-me. “Confesso que meu trabalho de ser é afetado pela necessidade de dar satisfações aos outros, seja sob a forma de deveres políticos e sociais, seja para explicar porque não admiro, digamos, os filmes do Bergman. Cercado de prazos, papéis, condicionamentos, cortesias e outros empecilhos, não sei me explicar bem. Donde os juízos críticos: é selvagem, é pueril, é espertíssimo, está escondendo alguma coisa”.  O Ricardo detestava o artigo nos títulos. Não se faz cinema com boas intenções. Tudo é tudo e nada é nada diante do movimento do mar. Voltamos a Minas, das caminhadas dificultosas pelas pedras dos becos de Tiradentes, às Janelas de Belo Horizonte cercados por diversas Joanas. A Palavra Exata nos levou de novo para as ladeiras e catedrais da velha Ouro Preto, onde o pintor Ronaldo, seu único irmão, viveu por algum tempo, as imagens imaginantes fizeram a ponte até Guignard. O cais da paz interior. No litoral do nosso Rio de Janeiro, me apresentou o Botafogo, região até então desconhecida por mim, a não ser por Famas e Cronópios. Integrei-me naquelas ruas estreitas que sentia mais machadianas que as do próprio Cosme Velho, pelos quatro apartamentos em que o Ricardo me hospedou durante os últimos anos. Dois na  Voluntários da Pátria, um na Alzira Cortes onde morei por temporadas maiores e por fim na Desembargador Burle, pertinho do quadrilátero de bares e restaurantes, onde ainda perdura o Aurora e também da Cobal. Uma vez o Ricardo foi para Europa e me confiou seu apartamento na Alzira Cortes. Como chovia aos cântaros no Rio e eu estava em meio de uma crise de misantropia, fiz um estoque alimentar para todos os níveis de fome, assim enfurnei-me durante três dias naquela cinemateca-biblioteca rara. O amor nos foge pela janela. Depois destes dias, cresci alguns centímetros imensuráveis na minha média estatura. Voltei a caminhar pelas ruas com alguma altivez. Os cafés da manhã na Padaria Imperial da Real Grandeza, os cozidos do Bismarck quase no fim ou no começo da Voluntários perto da praia, onde conversávamos com o cineasta David Neves, tendo eu chegado anos depois que o David já não estava, afora os ótimos restaurantes, especialmente portugueses, com as melhores comidinhas que localizava com sabedoria. Mesa Brasileira. O Largo dos Leões. Enfim tudo é muito perto do pouco que não tivemos tempo de realizar: um filme. O samba é pai do prazer. Agradeço ao mistério da vida o privilégio desta convivência que, embora cumprida a passagem por este plano, sinto que jamais terminará. Vamos lá.



terça-feira, 27 de maio de 2014

Vamos Reformar o Brasil (homenagem ao trabalhismo)


AS REFORMAS
Este texto é uma simples contribuição de um artista sonhador.
Gostaria de contribuir com os políticos candidatos para tornar algumas dessas ideias possíveis.
O Brasil precisa das reformas gerais que ainda não foram feitas pelos governos eleitos nestes 30 anos em que vivemos o estado democrático.
A consciência da Liberdade, no conjunto das regras que compõem a sociedade brasileira, é a gênese, a ideia fundamental, o primeiro passo, para se reformar o nosso sistema político.
Como imagino as reformas:
A reforma educacional. 
Todas as crianças nas escolas de tempo integral aos moldes imaginados por Darcy Ribeiro e Brizola.
Criar as Universidades Federais livres para os estudos de arte, aonde os alunos, de qualquer idade, dependendo de seu talento, podem escolher as matérias que queiram estudar.
Criar e incentivar as escolas técnicas direcionadas as necessidades da região onde serão implantadas.
Criar centros de cultura dentro de todas as escolas, aonde os alunos, além do ensino acadêmico, tenham contatos e conheçam a fundo a sua identidade nacional, contida na nossa centenária cultura, através da literatura, do cinema, do teatro e das artes brasileira de todos os tempos.
A Reforma na mídia nacional, Rádios e TVs.
O Estado brasileiro deve estar atento aos meios de comunicação, rádio, tevê (aberta e fechada), e deve aumentar significativamente a sua presença na mídia nacional, porque sem o auxílio e a compreensão da mídia não há reforma que resiste.
Devem-se criar leis de proteção a cultura brasileira na mídia, pois ela é a alma da nação.
A reforma política.
Todo brasileiro pode ser candidato a qualquer mandato sem necessariamente estar filiado a nenhum partido.
Todos os candidatos terão um tempo de mídia igual ao menor tempo instituído para todas as outras candidaturas.
Os partidos e os candidatos avulsos terão suas campanhas financiadas só pelo erário.
Serão eleitos os que obtiverem mais votos em uma única eleição de cinco em cinco anos.
Ficam abolidos os votos de legenda e também a reeleição.
Os Senadores passam a representar o país e serão votados em todo o território nacional.
Fica abolida a eleição de vice. Na morte do presidente, assume a presidência o senador que tenha sido o mais votado com um único compromisso que é convocar imediatamente novas eleições.
Nos Estados e Municípios, assume o deputado ou o vereador mais votado, na falta do governador ou do prefeito.
Fica abolido o segundo turno, é eleito o mais votado.
A maioria dos senadores pode propor um plebiscito e o povo passara a ter o direito, pelo voto, de derrubar o presidente, o governador ou o prefeito que não está cumprindo o prometido em campanha.
A Reforma na Saúde Pública
O Estado deve ser o único responsável pela saúde do povo brasileiro.
Centenas hospitais de urgência devem ser construídos por todo país, hospitais regionalizados, grandes centros de saúde de excelência, com número de leitos compatíveis com sua localização, dispondo da melhor equipe de profissionais (todos os médicos que se formaram nas universidades federais tem uma dívida com o país) e também dos mais novos equipamentos disponíveis no mercado, tratando a saúde do cidadão com toda a dignidade que ela merece.
Médicos e dentistas nas escolas de tempo integral.
Médico de família.
A Reforma nos meios de reprimir todas as formas de violência.
Liberação das drogas conforme estudo já existente.
Urbanização dos morros e periferias das cidades.
Unificação das polícias civil e militar.
Fortalecer e apoiar a polícia federal.
Privatizar as cadeias – preso tem de trabalhar.
Reforma Urbana
Saneamento básico e despoluição das águas dos rios que cortam as cidades.
Criar impostos progressivos para imóveis que permanecem fechados, ou são produtos de especulação imobiliária nas grandes e médias cidades.
Nenhum brasileiro sem casa.
Reforma agrária
Nenhum brasileiro, que queira viver no campo, pode ficar sem um pedaço de terra para tirar o seu sustento e dos seus filhos.
Incentivar os proprietários de pequenas extensões de terra, a estudar as teorias sobre as aplicações da biodiversidade em seus sítios.
Reforma dos meios energéticos
Suspender de imediato à extração desordenada, abrupta, sem a segurança ambiental, necessária e absoluta, do petróleo no pré-sal.
Encerrar as atividades das usinas nucleares.
Incentivar a energia solar e eólica para compensar as perdas com as desativações.
Reforma dos meios de transporte
Incentivar o transporte coletivo de passageiros e cargas por trilhos.
Incentivar o transporte fluvial nos grandes rios do Brasil.
Incentivar o transporte aéreo popular por todo nosso interior.
Reforma do Judiciário
Tornar céleres todos os processos, rompendo com a burocracia excessiva dos tribunais.
Reforma administrativa
Desburocratizar e assim agilizar a máquina administrativa.
Reforma Tributária
Diminuir ao máximo os impostos sobre as pequenas empresas.

Aumentar ao máximo os impostos sobre as grandes empresas.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Pinturas da Nina, minha neta de 3,5 anos

VIVA NINA!
É importante dizer algo a respeito das pinturas (dos traços) esboçadas por Nina, minha neta, nas duas imagens que aqui publico. Imaginei, quando observei suas pinceladas de cores fortes, quando aqui ela esteve brincando em meu estúdio, que haveria uma essência figurativa no que originalmente ela havia desenhado com movimentos de um pincel desordenados sobre o papel branco. Passados alguns dias, notei casas no meio da floresta, que só passaram a existir quando inverti o papel. No outro quadro, também invertido, surgiu logo um misterioso rosto no escuro de uma mancha sobre o amarelo, o que de pronto me pareceu ser uma bailarina. Na hora pensei que tinha duas opções: deixar como estava ou compor, sem exagero, o quadro que o inconsciente daquela menina me presenteava. Optei em intervir, realçando as cores e achando a imagem escondida. Pensei que com o tempo Nina, mais velha, pudesse ver ali um signo atávico e que ao descobri-lo, desvenda-lo, lhe provocaria um grande prazer. Se atingi assim esse meu objetivo intervencionista, só o tempo dirá.  


domingo, 11 de maio de 2014

CINEMA NA TV

No CANAL BRASIL, segunda, dia 12 de maio, às 24 horas.

UM FILME 100% BRAZILEIRO

28 anos depois (1986) de ser realizado e exibido em alguns cinemas do mundo e de ganhar alguns prêmios em festivais, (1985 Melhor Produção e Melhor Linguagem Cinematográfica do I Rio Cine Festival / 1986 Melhor Cenografia do I Festival de Cinema de Fortaleza / 1987 Convidado para o Festival de Cinema de Berlim, Alemanha), com um elenco de estrelas, este ainda desconhecido filme ganha a sua primeira exibição na televisão brasileira.
Esta produção é uma ficção modernista sobre a vinda ao Brasil do grande poeta e aventureiro francês Blaise Cendrars, que amou sabendo a nossa terra mais do que ninguém, durante o carnaval no Rio de Janeiro de 1924. São três as histórias por ele aqui vividas: Febrônio Índio do Brasil; O Lobisomem de Minas; Coronel Bento, que neste filme são retratadas, reescritas, em textos cinematográficos.
“... Um filme 100%Brazileiro é uma experiência avançada e revolucionária, tanto no que diz respeito à releitura da obra de Cendrars, quanto às inúmeras facetas da transposição cinematográfica... é uma espécie de divisor de águas, fazendo ponte entre certas heranças do Cinema Novo e alguns aspectos do cinema de Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, mas com total autonomia e independência por parte de seu autor.” Jose Tavares de Barros,, crítico e professor de cinema na UFMG para a revista Cadernos de Cinema.
“Obra experimental, difícil, mas importante... Um Filme 100%Brazileiro é uma obra belíssima. Uma fotografia caprichada, perfeita cenografia e uma trilha sonora de Luiz Eça (Tamba Trio) que tranquilamente merecia ser premiada nos festivas em que o filme foi exibido...” Aramis Millarch no jornal O Estado do Paraná.
“…Sette plunges the viewer from one exotic scene into the next, filling his film with visual and literary references which will be lost on many…” Films Reviews, Variety, EUA, 1987.


sábado, 10 de maio de 2014

GUERREIROS


A espiral de McLuhan    
Estou vivendo uma experiência especialmente estimulante: assessorando a cineasta Alice de Andrade na criação do webdoc 80 Destinos, história não linear e interativa de 40 casais cubanos filmados 20 anos atrás, quando começavam suas vidas a dois. A intenção de Alice é estimular essas pessoas, seus filhos, parentes, amigos a participarem na construção de um relato fragmentado, múltiplo, com distintos pontos de vista, sobre o que aconteceu e está acontecendo com aqueles jovens amantes. Um relato coletivo e colaborativo que admite a participação de pessoas não relacionadas com os personagens, de qualquer pessoa que queira participar, opinar. Experiência estimulante porque expõe um velho contador de histórias como eu, que estudou screenwriting e técnicas de roteiro na senda aberta por Aristóteles, ao universo desregrado do ciberespaço. 
O webdoc, que só pode ser realizado na internet, é um sistema modular que vai se formando a partir de uma Interface Inicial que determina o tema (no caso de 80 Destinos, o material gravado por Alice há duas décadas), à qual se vão agregando informações, sugestões, opiniões, concordâncias, discordâncias, etc. Uma operação que pode ser restrita a um grupo de pessoas ou aberta na infinitude da internet. Que pode conter apenas fotos e narração off (como a maioria que encontramos hoje na web) ou uma gama de informações expressada em vídeos, animação, textos, músicas e pequenos games ou demos jogáveis. Enfim, um documentário expandido, como se mil câmeras, mil visões personalizadas e diferenciadas, focassem o mesmo objeto.
A interação plena é a grande meta das novas tecnologias da comunicação, sua Pedra Filosofal. O marco inicial da era da comunicação, no sentido prático, foram os jogos eletrônicos. A primeira manifestação de um cinema interativo foi o Tennis for Two, simulação de jogo de tênis para computadores, criado em 1958 nos EUA. Era só um ponto branco cruzando a tela de um lado para o outro, controlado através de joysticks primitivos. Hoje temos o sensor Kinect, que dispensa aparelhos, é comandado pelos movimentos do corpo do jogador, e está em desenvolvimento o controle mental (sensores leem os impulsos do cérebro e os transmitem ao computador). 
À medida em que os games avançavam tecnologicamente, também avançou a crítica sobre a “desumanização” dos jogos, que a virtualidade é um fator excludente da sociabilidade, é cada um por si, cada pessoa é uma ilha em um arquipélago de egos. Pois, o acontecimento cibernético mais importante neste momento são as experiências voltadas para a integração da virtualidade com o real, como a Realidade Alternativa (Alternate Reality Games), que permite a coexistência de “universos paralelos” com a vida de verdade, como acontece com a complementaridade da vida material e do imaginário. Também a mencionar os Pervasive Games, nos quais o jogador está envolvido durante o tempo todo, onde estiver, em um jogo específico que tenha a ver com suas atividades. A menção a esse progresso na conexão inteligência natural/inteligência artificial, ou emoção/bytes, nos remete tanto à interatividade “realista” do webdoc como à possibilidade da imersão absoluta e sensorial da Realidade Virtual, ainda em estágio primário com suas luvas e capacetes digitais.
E também ao entendimento dos significados e significantes da interação homem/máquina e suas consequências no comportamento humano, na relação do ser humano com o real e o simulacro, com a verdade e a mentira, com si mesmo e com os outros, com o amor, na nossa relação com a vida e a morte, unidade binária da filosofia. A tecnologia está causando impactos de grande profundidade na ciência, educação, economia em um ritmo alucinante para os parâmetros de velocidade da História e o pensamento crítico é sempre mais lento do que a evolução do seu objeto de estudo. Mas tratando-se do aspecto comunicacional dessa revolução, a sua interface mais importante devido à penetração psicológica de suas linguagens e ao fato de estar na base dos outros avanços, tivemos a sorte de contar com Marshall McLuhan, um filósofo-profeta. Nos anos 1960 ele projetou cenários futuros da Revolução na comunicação, título de um de seus livros. Outros títulos seus explicitam a perspicácia de sua análise: O meio é a mensagemGuerra e paz na Aldeia Global. "Quanto mais sabem a seu respeito, menos você existe", disse.
Meio século depois uma nova qualidade de entendimento se faz necessária diante dos rumos que as tecnologias estão tomando. O canadense Derrick de Kerckhove está desenvolvendo ideias contaminantes, como a Psicotecnologia (“cada vez que muda o suporte para a linguagem, muda a sensibilidade do usuário e da cultura”). Ele afirma que a predominância do hemisfério esquerdo do cérebro sobre a atuação humana, que resultou no processamento autônomo da informação por cada um de nós, sofreu um abalo terminal com a eclosão das mídias eletrônicas: “sua personalidade digital é cada vez menos uma propriedade sua e mais uma propriedade do conjunto”. Essas reflexões estão inspirando a Tecnofilosofia. Também a mencionar novos conceitos analíticos como a Narratologia (potencial expressivo da interatividade) e Ludologia (potencial lúdico e simbólico da interatividade), que se propõem como disciplinas universitárias, como ferramentas indispensáveis para que os estudantes de comunicação se situem adequadamente em seu (nosso) tempo.
Por Orlando Senna

sexta-feira, 2 de maio de 2014

UM VISIONÁRIO

Fome, secas, epidemias, matanças: a Terra aproxima-se do apocalipse.
Talvez daqui a 50 anos nem faça sentido falar em Brasil, como Estado-nação. Entretanto, há que resistir ao avanço do capitalismo. As redes sociais são uma nova hipótese de insurreição. Presente, passado e futuro, segundo um dos maiores pensadores brasileiros.
 (no Rio de Janeiro)

Eduardo Viveiros de Castro, 62 anos, é o mais reconhecido e discutido antropólogo do Brasil. Acha que “a ditadura brasileira não acabou”, evoluiu para uma “democracia consentida”. Vê nas redes sociais, onde tem milhares de seguidores, a hipótese de uma nova espécie de guerrilha, ou resistência. Não perdoa a Lula da Silva ter optado pela via capitalista e acha que Dilma Rousseff tem uma relação “quase patológica” com a Amazônia e os índios. Não votará nela “nem sob pelotão de fuzilamento”.
Professor do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, autor de uma obra influente (destaque para A Inconstância da Alma Selvagem ou Araweté — O Povo do Ipixuna, este último editado em Portugal pela Assírio & Alvim), Viveiros de Castro é o criador do perspectivismo ameríndio, segundo a qual a humanidade é um ponto de vista: a onça vê-se como humana e vê o homem como animal; o porco vê-se como humano e vê a onça como animal. Humano é sempre quem olha.
Nesta longa entrevista, feita há um mês no seu apartamento da Baía de Botafogo — antes ainda da greve dos garis (homens e mulheres do lixo), um exemplo de revolta bem sucedida — Viveiros foi da Copa do Mundo ao fim do mundo. Acredita que estamos à beira do apocalipse.
Vê sinais de uma revolta nas ruas brasileiras? Aquilo que aconteceu em 2013 foi um levantamento, mas não uma revolta generalizada. Acha que isso pode acontecer antes da Copa, ou durante?
É muito difícil separar o que você imagina que vai acontecer daquilo que você deseja que vá acontecer.
Vamos separar. O que desejaria que acontecesse?
Revolta popular durante a Copa.
E isso significa o quê, exatamente?
Manifestação. Não estou imaginando a queda da Bastilha nem a explosão de nada, mas gostaria que a população carioca o deixasse muito claro. Embora a Copa vá acontecer em várias cidades, creio que o Rio se tornou o epicentro do problema da Copa, em parte porque o jogo final será no Maracanã.
Mesmo nas manifestações, o Rio foi a cidade mais forte.
São Paulo também teve manifestações muito importantes, mais conectadas com o Movimento Passe Livre [MPL, estudantes que em Junho de 2013 iniciaram os protestos contra o aumento dos transportes]. Voltando ao que eu desejaria: que a população carioca manifestasse a sua insatisfação em relação à forma como a cidade está sendo transformada numa espécie de empresa, numa vitrine turística, colonizada pelo grande capital, com a construção de grandes hotéis, oferecendo oportunidades às grandes empreiteiras, um balcão de negócios, sob a desculpa de que a Copa iria trazer dinheiro, visibilidade, para o Brasil. O problema é que vai trazer má visibilidade. Vai ser uma péssima propaganda para o Brasil. Primeiro, porque, se estou bem entendendo, vários compromissos contratuais com a FIFA não estão sendo honrados, atrasos muito grandes, etc. Segundo, porque essa ideia de que os brasileiros estão achando uma maravilha que a Copa se realize no Brasil pode ser desmentida de maneira escandalosa se os turistas, tão cobiçados, chegarem aqui e baterem de frente com povo nas ruas, brigando com a polícia, uma polícia despreparada, brutal, violenta, assassina. Tenho a impressão de que não vai fazer muito bem à imagem do Brasil. Outra coisa importante é que a Copa foi vendida à opinião pública como algo que ia ser praticamente financiado pela iniciativa privada, que o dinheiro do povo, do contribuinte, ia ser pouco gasto. O que está se vendo é o contrário, o governo brasileiro investindo maciçamente, gastando dinheiro para essas reformas de estádios, dinheiro dos impostos. Então, nós estamos pagando para que a FIFA lucre. Porque quem lucra com as copas é a FIFA.
Desejaria que essa revolta impedisse mesmo a Copa?
Impedir a Copa é impossível, não adianta nem desejar. Não sei também se seria bom, poderia produzir alguma complicação diplomática, ou uma repressão muito violenta dentro do país. Existe uma campanha: Não Vai Ter Copa. O nome completo é: Sem Respeito aos Direitos Não Vai Ter Copa. No sentido desiderativo: não deveria haver, desejamos que não haja. O que se está dizendo é que os direitos de várias camadas da população estão sendo brutalmente desrespeitados, com remoções forçadas de comunidades, desapropriando sem indemnização, modificando aspectos fundamentais da paisagem carioca sem nenhuma consulta. Isso tudo está irritando a população.  Mas não é só isso: a insatisfação com a Copa foi catalisada por várias outras que vieram surgindo nos últimos anos, que envolvem categorias sociais diversas, e não estão sendo organizadas nem controladas pelos partidos. Essas manifestações têm de tudo, uma quantidade imensa de pautas [reivindicações]. Tem gente que quer só fazer bagunça, tem gente de direita, infiltrados da polícia, neonazistas, anarquistas. Um conjunto complexo de fenômenos com uma combinação de causas. Uma coisa importante é que são transversais: tem gente pobre e de classe média misturada na rua. É a primeira vez que isso acontece. O que talvez tenha em comum é que são todos jovens. Da classe média alta à [favela da] Rocinha.
Mas agora não são muito expressivas em termos de números. E não são as favelas que estão em massa na rua.
Tem gente pobre e de classe média misturada na rua. É a primeira vez que isso acontece. O que talvez tenha em comum é que são todos jovens. As famosas massas ainda não desceram, e provavelmente não vão descer durante a Copa. Nem sei se vão descer em alguma momento, se existe isso no Brasil. Mas acho que vai haver uma quantidade de pequenas manifestações. Por exemplo, a Aldeia Maracanã [pequena comunidade de índios pressionada a sair, por causa das obras do estádio] produziu uma confusão muito grande, se você pensar no tamanho da população envolvida. Os moradores daquela casa eram 14 pessoas e não obstante mobilizaram destacamentos do Bope [tropa de elite], bombas, etc. Quem está, em grande parte, criando a movimentação popular é o estado, com a sua reação desproporcional. O Movimento Passe Livre ganhou aquela explosão em São Paulo por causa da brutalidade da reação policial. O Brasil nunca teve esse tipo de confronto entre a polícia e jovens manifestantes. A polícia não sabe como reagir, não tem um método, então reage de maneira brutal. Os próprios manifestantes não têm experiência de organização. O que estão chamando de black bloc não é a mesma coisa que black bloc na Dinamarca, na Alemanha ou nos Estados Unidos.
Mais volátil.
Ideologicamente pouco consistente. Sabemos que o black bloc europeu é essencialmente uma táctica de proteção contra a polícia. Noutros países, como os Estados Unidos, tem uma certa táctica de agressão a símbolos do capitalismo. Aqui no Rio está uma coisa meio misturada, ainda não se consolidou uma identidade, um perfil táctico claro para o que se chama de black bloc. E eles estão sendo demonizados. Acho até que, no caso do Brasil, o fato de que sejam black coloca uma pequena ponta de racismo nessa indignação. Não duvido de que no imaginário da classe média por trás da máscara negra esteja também um rosto negro. Pobres, bandidos, etc. Mas isso está acontecendo ao mesmo tempo que a polícia continua invadindo as favelas, matando 10, 12, 15 jovens por semana. Até recentemente esse comportamento clássico do estado diante da população muito pobre, isto é, mandar a polícia entrar e arrebentar, era algo que a classe média tomava como... [sinal de longínquo].                                   Quando a violência começou a atingir a classe média — ainda que uma bala de borracha não seja uma bala de fuzil, porque o que eles usam na favela é bala de verdade e o que eles usam na rua é bala de borracha, ainda assim você pode matar com bala de borracha, pode cegar, etc —, à medida que a polícia começou a atacar tanto a rua quanto o morro houve um aumento da percepção da classe média em relação à violência da polícia nas favelas, o que é novidade. A imprensa fez uma imensa campanha para santificar a polícia com a coisa das UPP [Unidade de Polícia Pacificadora, programa para acabar com o poder armado paralelo nas favelas, instalando a polícia lá dentro], mas todo o mundo está percebendo que essas UPP são no mínimo ambíguas. Basta ver o caso do [ajudante de pedreiro] Amarildo, que foi sequestrado, torturado e morto pela polícia [em Junho de 2013, na Rocinha], e sumiu da imprensa.
Vinte e cinco policiais foram indiciados.
No Brasil, há um racismo político muito forte, não só ideológico como o americano. O Brasil é um país escravocrata, continua sendo. O imaginário profundo é escravocrata. Quero ver o que vai acontecer. Quem deu visibilidade à morte do Amarildo não foi a grande imprensa. Foram as redes sociais, os movimentos sociais. Essa morte é absolutamente banal, acontece toda a semana nas favelas, mas calhou de acontecer na altura das manifestações, então foi capturada pelos manifestantes, o que produziu uma solidariedade entre o morro e a rua que foi inédita.
Num país como este, em que a desigualdade, a violência, continuam, porque é que as massas não saem?
Quem dera que eu soubesse a resposta. Essa é a pergunta que a esquerda faz desde que existe no Brasil. Acho que há várias razões. O Brasil é um país muito diferente de todos os outros da América Latina, por exemplo da Argentina. Basta comparar a história para ver a diferença em termos de participação política, mobilização popular. Tenho impressão de que isso se deve em larga medida à herança da escravidão no Brasil. O Brasil é um país muito mais racista do que os Estados Unidos. Claro que é um racismo diferente. O racismo americano é protestante. Mas no Brasil há um racismo político muito forte, não só ideológico como o americano, interpessoal. O Brasil é um país escravocrata, continua sendo. O imaginário profundo é escravocrata. Você vê o caso do menino [mulato] amarrado no poste [no bairro do Flamengo, por uma milícia de classe média que o suspeitava assaltante] e que respondeu de uma maneira absolutamente trágica quando foi pego: mas meu senhor, eu não estava fazendo nada. Só essa expressão, “meu senhor”... O trágico foi essa expressão. Continuamos num mundo de senhores. Porque o outro era branco.
Como um DNA, algo que não acabou.
Não acabou, pois é. É o mito de que no Brasil todas as coisas se resolvem sem violência. Sem violência, entenda-se, sem revolta popular. Com muita violência, mas sem revolta. A violência é a da polícia, do estado, do exército, mas não é a violência no sentido clássico, francês, revolucionário. E toda a vez que acontecem coisas como essas manifestações de Junho, por exemplo, há aquela sensação: dessa vez o morro vai descer. O morro não desceu. Em parte porque já não é mais o morro, boa parte do morro é de classe média. Evidentemente, houve um crescimento econômico. As favelas da minha infância, nos anos 50, eram completamente diferente, como essas vilas da Amazônia, feitas de lona preta. Hoje são casas de alvenaria, feitas de tijolos. Ainda assim a miséria continua. Quero dizer apenas que a distância entre a classe média e o morro diminuiu do ponto de vista econômico.
Ao fazer ascender esses milhões da miséria, o PT neutralizou a revolução?
Em parte pode ser isso. Houve uma espécie de opção política forçada do PT, segundo a qual a única maneira de melhorar a renda dos pobres é não mexer na renda dos ricos. Ou seja, vamos ter que tirar o dinheiro de outro lugar. E de onde é que eles estão tirando? Do chão, literalmente. Destruindo o meio ambiente para poder vender soja, carne, para a China. Não está havendo redistribuição de renda, o que está havendo é aumento da renda produzida pela queima dos móveis da casa para aquecer a população, digamos. Está um pouquinho mais quente, não estamos morrendo de frio, mas estamos destruindo o Brasil central, devastando a Amazônia. Tudo foi feito para não botar a mão no bolso dos ricos. E não provocar os militares.    A ditadura brasileira não acabou. Nós vivemos numa democracia consentida pelos militares. Compare com a Argentina: porque é que no Brasil não houve julgamento dos militares envolvidos na tortura?  Porque os militares não deixam. Vamos ver o que vai acontecer agora, no dia 1 de Abril.
Com o aniversário do golpe militar.
Já existe uma campanha aí, subterrânea, para que no dia 31 de Março apaguem-se as luzes, toquem-se buzinas, para comemorar o 50º aniversário do golpe. Ou seja, existe uma campanha da direita para mostrar que a população ainda apoia a direita. Não sei que sucesso vai ter, mas não duvido que haja uma manifestação, oculta, pessoas que vão apagar as luzes das suas casas ou piscar as luzes à meia-noite, alguma coisa assim.
Mas nenhuma possibilidade de viragem à direita.
Não creio.
O atual regime não é uma democracia?
O Brasil é uma democracia formal, claro, mas consentida pelo status quo. A abertura foi permitida pelos militares. A Lei da Anistia foi imposta tal qual pelo governo militar. Eles não foram destronados, presos, criminalizados. Simplesmente foram anistiados. E boa parte do projeto de desenvolvimento nacional gestado durante a ditadura militar está sendo aplicado com a maior eficiência.
Pela esquerda.
Pela chamada esquerda, pela coalizão que está no poder, na qual a esquerda é uma parte mínima, porque tem os grandes proprietários de terra, os grandes empresários.
Está cumprindo um ideário que vem da ditadura?
O PT é um partido operário do século XIX. Eles têm um modelo que é indústria, crescimento, como se o Brasil fosse os Estados Unidos do século XXI. Com grande consumo de energia. Uma concepção antiga, fora de sintonia com o mundo atual. Agora está começando a mudar um pouco, mas a falta de sensibilidade do governo para o fato de que o Brasil é um país que está localizado no planeta Terra, e não no céu, é muito grande. Eles não percebem. Acham que o Brasil é um mundo em si mesmo.
Ou seja, que não vai ser afetado pelo aquecimento global, etc.
A única visão global que o Brasil tem é de se tornar uma potência geopolítica. O Brasil, hoje, é um ator maior, de primeira linha, em Moçambique, em Angola, nos países latino-americanos. Está disputando com a China pedaços de Moçambique. A Odebrecht está construindo hidrelétricas [barragens] em Angola e assim por diante. O Brasil se imagina como potência que vai oprimir. Agora é a vez de sermos opressores, deixarmos de ser os oprimidos. Agora os brasileiros da vez vão ser os haitianos, os bolivianos, os paraguaios, que trabalham nas “sweatshops” de São Paulo, nas terras em que plantamos soja e etc. O PT nunca foi um partido de esquerda. É um partido que procurava transformar a classe operária numa classe operária americana.
E nunca o Brasil foi um país tão capitalista.
Minha mulher me contou que, conversando com um desconhecido, operador da bolsa de valores, isto em 2007, 2008, ele dizia: se eu soubesse que ia ser tão bom para nós jamais teria votado contra o Lula.
Onde está a esquerda? Qual é a sua opção de voto? Ou a opção deixou de ser votar?
Tanto a esquerda como a direita são posições políticas que você encontra dentro da classe média. A classe dominante é de direita de maneira genética, a grande burguesia, o grande capital. E os pobres, a classe trabalhadora... se eu fosse fazer um juízo de valor um pouco irresponsável diria que 60 a 70 por cento do Brasil estaria muito feliz com um governo autoritário, que desse dinheiro para comprar geladeira, televisão, carro, etc. Uma população que tem uma profunda desconfiança em relação a esses jovens quebradores de coisas na rua, que seria a favor da pena de morte, que é violentamente homofóbica.
Depois do garoto do Flamengo ter sido amarrado por aquela milícia, ouvi trabalhadores negros pobres dizerem: tem mais é que botar bandido na cadeia, fizeram foi pouco com ele.
Ou seja, é um país conservador, reacionário, em que os pobres colaboram com a sua opressão. Não todos, mas existe isso. A escravidão venceu no Brasil, ela nunca foi abolida. Sou muito pessimista em relação ao Brasil, digo francamente. Em relação ao passado e ao futuro. Em relação ao passado no sentido de que é um país que jamais se libertou do ethos, do imaginário profundo da escravidão, em que o sonho de todo o escravo é ser senhor de escravos, o sonho de todo o oprimido é ser o opressor. Daí essa reação: tem mais é que botar esses caras na cadeia. Em vez de se solidarizar. E podia ser o filho dele facilmente. E às vezes é o filho dele. Oswald de Andrade, o poeta, dizia: “O Brasil nunca declarou a sua independência.” Em certo sentido é verdade, porque quem declarou a independência do Brasil foi Portugal, um rei português. Eu diria: e tão pouco aboliu a escravidão. Porque quem aboliu a escravidão foi a própria classe escravocrata. Não foi nenhuma revolta popular, nenhuma guerra civil. E em relação ao futuro sou pessimista porque... talvez ainda tenha um pouco de esperança, mas acho que o Brasil já perdeu a oportunidade de inventar uma nova forma de civilização. Um país que teria todas as condições para isso: ecológicas, geográficas.
Uma espécie de terceira via do mundo?
É, outra civilização. Porque civilização não é necessariamente transformar um país tropical numa cópia de segunda classe dos Estados Unidos ou da Europa, ou seja, de um país do hemisfério norte que tem características geográficas e culturais completamente diferentes. Lembremos que houve um projeto explícito no Brasil, e que deu certo, que está dando certo, por isso é que sou pessimista, que é o projeto iniciado com Pedro II, em parte inspirado pelo célebre teórico racista Gobineau, que era uma grande admiração de D. Pedro: o Brasil só teria saída mediante o braqueamento da população, porque a escravidão tinha trazido uma tara, uma raça inferior.
Havia que lavar o sangue.
É uma ideia antiga, que já vem dos cristãos-novos que vieram de Portugal, que tinham de limpar o sangue. A gente sabe que quase toda a população portuguesa que se instalou no Brasil é de cristãos-novos, Diria que 70 por cento desses brancos orgulhosos de serem brasileiros são judeus, marranos, convertidos a ferro e fogo pela Inquisição. Então, havia essa ideia de que o Brasil era um país racialmente inferior porque era composto de negros, índios, portugueses com essa origem um pouco duvidosa. E já Portugal em si não é...
A Holanda.
Exato. Não é a coisa mais branca que podemos encontrar na Europa. A Península Ibérica é um pouco africana, foi dominada 800 anos pelos árabes. Então o Brasil só ia melhorar com branqueamento. Isso foi uma política de estado que durou décadas e trouxe para o Brasil milhões de imigrantes alemães, italianos, mais tarde japoneses. Com o propósito explícito de branquear, não só geneticamente, mas culturalmente e economicamente. E eles foram para o Sul, de São Paulo até ao Rio Grande. Mas, esse que é o ponto curioso, a partir do governo militar para cá essa população branca invadiu o Brasil, a Amazônia. A colonização da Amazônia a partir da década de 70 foi feita pelos gaúchos, muitos deles pobres, que foram expulsos, alemães pobres, italianos pobres, cujas pequenas propriedades fundiárias foram absorvidas pelos grandes proprietários, também gaúchos, também brancos, e que foram estimulados pelo governo, com subsídios, promessas mirabolantes, a irem para a Amazônia. Hoje, tem um cinturão de cidades no sul da Amazônia com nomes como Porto dos Gaúchos, Querência, que é um lugar onde se guarda o gado, típico do Rio Grande do Sul. Os gaúchos [de origem europeia] chegaram numa região temperada, subtropical [sul do Brasil] em que você podia mais ou menos copiar um tipo de estrutura agrícola, de produção alimentar do país de origem. Só que na Amazônia isso é uma abominação. É um preconceito muito difundido essa ideia de que pessoal do Norte não sabe trabalhar, é preguiçoso. Você ouve muito isto no Paraná, no Rio Grande do Sul. Quem sabe trabalhar é o colono alemão, italiano. Hoje o Brasil foi branqueado. Essa cultura country aí é uma mistura de cultura europeia com cultura americana, de grande carrão, 4x4, pick ups, rodeos, chapéus americanos, botas. Existe um projeto de transformar o Brasil num país culturalmente do hemisfério norte, seja Estados Unidos, seja essa Europa mais reacionária. Porque estamos falando de colonos alemães que vieram do campesinato reacionário, bávaro, pomerano, e dos camponeses italianos, que eram entusiastas do nazismo e do fascismo na II Guerra. Continuam sendo. O que tem de grupo de extrema-direita no sul do Brasil é muito. O foco da direita fascista, nazista é o Paraná e o Rio Grande do Sul. Então o Brasil é um país dividido entre um sul branco e o resto não branco, português, negro no litoral, índio no interior.
O censo da população dá por uma unha uma maioria não-branca.
O agronegócio é na verdade o modelo gaúcho, desenvolvido no pampa, nos campos do Rio Grande. Plantação extensa de monocultura, de soja, de arroz, de cana. Então o Brasil está perdendo a oportunidade de se constituir como um novo modelo de civilização propriamente tropical, com uma nova relação entre as raças, que fosse efetivamente multinacional. Um país que se constituiu em cima do genocídio indígena, da escravidão, da monocultura. Que continua fazendo o que fez desde que foi criado, exportando produtos agrícolas. Que continua a alimentar os países industrializados. Primeiro a Europa, depois os Estados Unidos, agora a China. Continua sendo o celeiro do capitalismo.
E o matadouro.
O segundo maior rebanho bovino do mundo, depois da Austrália. Um país que se está destruindo a si mesmo para se transformar numa caricatura dos países que lhe servem de modelo cultural. Em vez de, ao contrário, saber utilizar a sua situação geográfica altamente privilegiada, a sua situação demográfica, uma população imensa, para construir um novo estilo de civilização.
O senhor está descrevendo a derrota do “Manifesto Antropófago” de Oswald de Andrade [visão de um Brasil que se torna forte por comer, absorver o outro]
É, acho que sim. Bom, nenhuma derrota é definitiva. O meu pessimismo nem passa tanto pelo fato de que o Brasil não tem jeito, porque acho que ainda poderia haver uma revolução antropofágica no Brasil. Mas hoje isso é uma questão que já não teria mais sentido colocar pelo simples fato de que estamos numa situação planetária em que a catástrofe já se iniciou. O mundo está entrando, num sentido físico, termodinâmico, num outro regime ambiental que vai produzir catástrofes humanas jamais vistas, no meu entender: fome, epidemias, secas, mudança de regime hidrológico, tudo. Nessas circunstâncias, é possível que cheguemos a um momento em que noções como Brasil, Estados Unidos, países, comecem a perder a sua nitidez. Pode ser que daqui a 50 anos a palavra Brasil não tenha mais nenhum sentido. Que tenhamos que falar em Terra.
É um pré-apocalipse?
Diria que sim. Isabelle Stengers, filósofa belga, diz que a palavra crise não é adequada porque supõe que você pode superá-la, quando o que estamos vivendo é uma situação que não tem um voltar atrás. Vamos ter que conviver com ela para sempre. Um novo regime do mundo, de climas, de águas, não haverá mais peixes, os estoques estão acabando no mundo, a quantidade de refugiados que vão invadir a Europa vai ser brutal nas próximas décadas. Se a temperatura subir quatro graus, que é o que todos os climatologistas estão imaginando, isso vai produzir uma mudança total no que é viver na Terra. E a quantidade de africanos que vai invadir a Europa vai ser um pouco maior do que aqueles pobres que morrem afogados ali em Lampedusa. E como os países ricos vão reagir? É uma questão interessante. Vai ser com armas atômicas? Vão bombardear quem? O meu pessimismo passa mais por aí. No Brasil as crises são estritamente políticas. Faz reforma política? Vai ter revolta da população? Será que há Copa? Tudo isso é verdade, fundamental, mas a gente não pode perder de vista o cenário mais amplo.
Não vê ninguém no Brasil, politicamente, que tenha uma visão ampla? O senhor votou na Marina Silva [nas últimas presidenciais].
Votei na Marina em 2010, com certeza. Não tenho certeza nenhuma de que votaria nela em 2014, talvez não.
Eduardo Campos [candidato pernambucano que fez uma aliança com Marina]?
De forma nenhuma. A Dilma, nem sob pelotão de fuzilamento voto nela. Esses idiotas do PSDB nem pensar. Então talvez eu não vote. Talvez vote nulo.
Qual é a missão, o papel, a hipótese para alguém como o senhor? Virar uma espécie de guerrilheiro nas redes sociais?
É. Eu diria que a revolução antropofágica do Oswald de Andrade só é possível sob o modo da guerrilha. Estamos falando de uma coisa que foi pensada em 1928...
Mas que foi revivendo, anos 60, agora.
O Oswald, um homem da classe dominante, pensava no Brasil como uma coisa sobre a qual você podia pôr e dispor. Nesse sentido, ele pertence à geração dos teóricos do Brasil, que eram todos da elite dominante paulistana ou pernambucana: Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Eduardo Prado. Os modernistas eram uma teoria do Brasil, de como o Brasil deve ser organizado, governado. Talvez os muitos povos brasileiros que compõem esse país só tenham chance de ganhar uma certa emancipação cultural, política, metafísica, no contexto do declínio geral do planeta. Nessas condições é possível que haja esperança para os negros, os índios, os quilombolas [descendentes de escravos], os gays, os pobres desse planeta favela. Não esqueçamos que o mundo tem três bilhões e meio de habitantes vivendo em cidade, metade da população mundial. Desses, no mínimo um bilhão vive em favelas. Ou seja, um sétimo da população mundial vive em favelas. O Brasil deve ter uma proporção maior que a Alemanha, Estados Unidos. Diria que deve andar na casa dos 30 milhões. [A população de] um bom país europeu.
Seria uma guerrilha nas redes sociais? Admite o uso de violência ou uma guerrilha virtual apenas?
Nem uma coisa nem outra. A existência da Internet mudou as condições da guerra, em geral, sim. O maior ato de guerra recente, no bom sentido, de que me consigo lembrar foi o Edward Snowden. Não mais os Estados Unidos espionando a Rússia, nem a Rússia espionando os Estados Unidos, mas o vazamento de informações secretas dos estados. Isso é muito significativo. Um jornalista morando aqui no Rio de Janeiro, que trabalha para um jornal inglês, que recebeu informações de um analista americano, que estava escondido em Hong Kong: isso só é possível com Internet. As redes sociais mudaram completamente as condições de resistência ao capitalismo.
Uma nova forma de guerrilha?
Que não é necessariamente violenta, embora exista o problema do hacker, do bombardeio de sistema eletrônico. Mas o que penso não é bem por aí. Quando penso em guerrilha, é no sentido de combates locais, ponto a ponto. Não estou falando de quebrar a porta do banco ou bater na polícia. Falo em combates em que você seja capaz de conectar combates locais através do mundo inteiro. Existem formas novas de resistência e aliança entre as minorias étnicas, culturais, econômicas do planeta que passam pela conectividade universal da rede, que é frágil, ao contrário do que se imagina, com pontos fracos, nós, gargalos, em que os Estados Unidos têm um poder muito grande. Mas eu diria que é muito difícil controlá-la até porque essa rede é indispensável para o capitalismo. Difícil o capitalismo danificá-la demais, senão vai perder seu principal instrumento hoje. Ainda que haja várias tentativas, no Brasil inclusive, de vigilância. É possível que a gente passe para um estado de vigilância à la George Orwell. Tudo isso é possível. Mas acho também que a situação atual permite o desenvolvimento de uma guerrilha de informação, muito mais que de ação física, porque a informação hoje é uma mercadoria fundamental, estamos na economia do conhecimento, então a guerra é uma guerra também pela informação. É por aí que tenho alguma esperança, muito mais que numa saída nas ruas, com ancinhos, forcados, machetes.
Parar de imaginar uma luta de classes e imaginar uma guerrilha de classes. Classe definida, agora, não só de maneira classicamente econômica, mas no contexto da nova economia, que mudou a composição de classes. Vários intelectuais hoje pertencem à classe dominada, operária. Então, vejo mais uma guerrilha do que uma guerra, com a vantagem de que as guerras em geral terminam na constituição de um novo poder totalitário, um novo terror. O “Manifesto Antropófago” pode acabar se realizando mais por esse lado. O sonho clássico da revolução, como transformação de um estado A em estado B é um sonho pouco interessante.
Não há desfecho.
Não há desfecho. Prefiro falar em insurreição do que em revolução, hoje. Um estado de insurreição permanente como resistência. A palavra talvez seja mais resistência, insurreição, do que revolução e guerra. Guerrilha é sempre de resistência. O modelo da resistência francesa [na ocupação alemã], criar redes subterrâneas de comunicação. Estamos nessa posição, somos um planeta invadido por alienígenas, digamos, que é o grande capital, a TV Globo, o agronegócio, a hegemonia norte-americana sobre os sistemas de entretenimento; como é que você cria uma rede de resistência a esses “alemães”? Sou um ativista das redes, de fato. Mas não convoco para manifestações, não pertenço a nenhuma organização, estou um pouco velho para sair na rua. É, mas para sair na rua como black bloc [sorriso]... Posso ir atrás do black bloc, na frente não dá.
Começou tarde a ser um ativista/guerrilheiro. Por quê?
É uma questão interessante. A minha relação com o ativismo na ditadura não foi receio físico. Não que eu não tivesse medo de enfrentar a repressão. Vi vários amigos presos, torturados, todo o mundo tinha medo. Mas não foi por isso que não entrei na luta contra a ditadura. Foi porque não acreditava nela, em tomar o poder para instituir uma nova ordem não muito diferente. Eu achava que era uma briga entre duas frações da classe média alta para saber quem ia mandar no país. E eu não tinha a menor simpatia pela ideia de mandar no país. Tinha uma desconfiança, que infelizmente se confirmou, quando a gente vê que uma das pessoas que fez a luta armada está mandando no país. E ela está fazendo coisas muito parecidas com o que os militares queriam fazer, pelo menos na Amazônia. O projeto da Dilma na Amazônia é idêntico ao do Médici [terceiro presidente da ditadura, no período 1969-74].
O senhor se configura como um anarquista?
Talvez...
Fora do estado.
Digamos que sim. Mas não sou um anarquista daqueles que acham que a sociedade atual pode prescindir do estado. Acho isso um sonho um pouco infantil.
Acha que não pode prescindir do estado, mas que é importante cultivar...
Uma oposição, sim. A ideia de uma abolição do estado nas presentes condições é fantasia. Existem algumas contradições que não podemos evitar. Por exemplo, o maior inimigo dos índios brasileiros, num certo plano, é o estado, que representa uma sociedade que os invadiu, exterminou, escravizou, expropriou de suas terras. Ao mesmo tempo, o estado brasileiro é a única proteção que os índios têm contra a sociedade brasileira. Se não fosse o estado, os fazendeiros já teriam aniquilado todos os índios. Mas é uma quimioterapia, como se o Brasil fosse o câncer e o estado fosse aquele remédio. Faz um mal horrível, mas você tem de tomar, é o único jeito de ter esperança de se curar. Portanto, não posso ir contra o estado. Tenho simpatia pela tese do antropólogo francês Pierre Clastres, “A Sociedade Contra o Estado”, um tipo de sociedade como ele entendia que era o caso de várias sociedades indígenas, mas não imagino que isso possa ser transferido para as nossas dimensões demográficas. Isto dito, não sei por quanto tempo vamos ter essas dimensões no planeta, estados-nação com milhões de habitantes. Precisamos guardar os anti-corpos contra o estado porque podemos precisar deles no futuro.
Defende que toda a lógica do que o Brasil poderia ser, oferecer, passaria por se tornar mais índio. Não os índios tornarem-se brasileiros, mas o Brasil tornar-se índio, o que significaria uma outra forma de vida, não para produzir, não para consumir. Que significa isso na guerrilha das cidades e das redes? Como os índios podem estar presentes aí? O que podem dar à tal insurreição contínua?
Vou juntar isso com o final da pergunta anterior. Fui-me tornando mais activo nas redes porque apareceram, antes não existiam, e em função da minha enorme decepção com o final da ditadura, o fato de que continuamos reféns do grande capital, dos grandes clãs, dos capitães hereditários que continuam mandando no Brasil, José Sarney, Fernando Collor, Renan Calheiros. Essa aliança entre o mais arcaico, que é Sarney, e o mais moderno do capitalismo, que são esses agronegociantes de alta tecnologia do Mato Grosso do Sul, todos eles combinados para manter a tranquilidade política: não deixemos as massas virem atrapalhar. Então, a minha decepção com a trajetória depois da ditadura; a minha decepção maior ainda com a trajetória do PT, a partir da eleição do Lula, na qual ele escreveu uma carta aos brasileiros dizendo que não ia tocar no bolso dos ricos; a minha decepção ainda maior com a performance do governo Dilma em relação ao meio ambiente, à Amazônia, aos índios, a total incapacidade política da presidente para ter o mínimo de diálogo, por mais fictício que seja com as populações indígenas, ao contrário, ela demonstra um desprezo, um ódio mesmo, que me parece quase patológico; tudo isso me levou ao ativismo. Todo o mundo tem uma imagem do Brasil como país preguiçoso, relaxado, laid back, onde tudo é mais devagar. E existe uma grande ambiguidade nossa em relação a essa imagem. Por um lado achamos interessante a imagem de um país easy going, por outro lado temos uma grande vergonha disso, nos queremos transformar num país performante, que vai para a frente, produtivo. A gente quer ao mesmo tempo ser sambista e grande potência mundial. Eu acho que devia continuar sendo sambista. Que a gente devia saber explorar as virtudes do não-produtivismo. A ética protestante, que nos deu o espírito do capitalismo, para falar como Weber, nunca esteve inscrita no DNA do Brasil, graças a vocês portugueses, que também não a tinham [risos]. Tiveram durante século e meio, mas depois... Então, por um milagre histórico fomos preservados dessa maldição que é a ética produtivista do capitalismo. Fomos capturados pelo capitalismo porque nos invadiu, domou. O capitalismo foi possível porque a Europa invadiu a América. Se não fosse a America, a Europa não teria deixado de ser o que era na Idade Média, um fundo de quintal. Na Idade Média, as sociedades desenvolvidas eram o Islã, a India e a China. Os europeus eram um bando de bárbaros, sujos, mal vestidos, católicos. Mas por acaso os portugueses e os espanhóis deram de cara com o novo mundo e o capitalismo tornou-se possível. Porque foi o ouro do Novo Mundo, milhares de toneladas, e tudo o que saiu da América, novas plantas, novos recursos alimentares, que permitiu a expansão do capitalismo e  depois a revolução industrial. Se não tivesse havido invasão da América, destruição da América não teria havido Europa moderna. Hoje, no mundo, as principais plantas que servem de alimentação mundial são de origem ameríndia: o milho, que se planta em toda a parte, a batata, que permitiu a revolução industrial inglesa, a mandioca, da qual toda a África do Oeste hoje vive. Só que a América já era, não tem mais Novo Mundo para descobrir, a terra fechou, arredondou, além de que o pólo dinâmico do capitalismo foi para a China.
Voltando aos índios.
O Brasil tem muito poucos índios comparado com os países andinos ou mezo-americanos. Estão na casa de um milhão, num país de 200 milhões. Mas têm um poder simbólico muito grande, até porque têm uma base muito grande, 12 por cento do território brasileiro. Está tudo invadido [por obras ou fazendeiros] mas oficialmente é terra indígena. Além de que têm um poder de sedução no imaginário ocidental. A Amazônia tem um poder simbólico imenso. Embora, ao contrário do que os brasileiros pensam, não seja só brasileira, a maior parte da Amazônia está no Brasil. E é um objeto transcendente, uma espécie de última chance, último lugar da terra. O que dá ao Brasil um poder simbólico que ele não sabe usar, ao contrário, a Amazônia tem servido para atacar o Brasil por não saber cuidar da Amazônia. E sabe uma coisa? Não sabe mesmo. E não está sabendo se valer da Amazônia como um trunfo mundial. Nem como um lugar onde poderia se desenvolver uma civilização menos estúpida, do ponto de vista tecnológico e social. Os índios aí servem como exemplo. Estão na Amazônia há pelo menos 15 mil anos. Boa parte da floresta amazônica foi criada pela atividade indígena. Boa parte do solo foi criado com cinza de fogueira, detritos humanos. A Amazônia é essa floresta luxuriante em parte por causa da ação humana, dos índios. Perante isto, o modelo sulino, gaúcho, europeu, de ocupação da Amazônia, é um plano liso que você possa encher de fertilizante, para poder plantar plantas transgênicas, resistentes a herbicidas, para produzir soja para vender para China, para em seguida pegar esse dinheiro e dar Bolsa Família. Não seria mais simples fazer com que essas pessoas não precisassem de Bolsa Família dando para elas terra para plantar, fazendo a célebre reforma agrária que jamais foi feita no Brasil? Estamos exportando terra, solo e água na forma de carne, de soja. Um quilo de carne precisa de 15 mil litros de água para ser produzido, um quilo de soja, 7500 litros. Essa água toda, que poderia estar sendo usada para plantar comida para nós, está sendo usada para produzir soja para alimentar gado europeu, ou em tofu e miso na China. O Brasil destruiu mais de metade da sua cobertura vegetal, a Mata Atlântica, que era igual à Amazônia do ponto de vista ambiental, para plantar cana e café durante a colonização. E ficamos mais ricos? Agora estão devastando a Amazônia para produzir soja e gado. Estamos ficando mais ricos? Os pobres estão melhores porque está caindo mais migalha da mesa dos ricos, não porque vieram sentar na mesa.
Isso também afetou os índios, não? Em São Gabriel da Cachoeira, o município mais indígena do Brasil [estado do Amazonas], um dos grandes problemas é o alcoolismo. Impressionante ver o estado em que muitos índios vivem em São Gabriel. É um resultado desse erro de tentar converter o índio em brasileiro nesse modelo que está a descrever?

O alcoolismo é uma praga da população indígena das três Américas. Tem a ver com várias coisas. Uma delas é genética, mesmo. Os índios têm, por razões de evolução, muito menos resistência ao metabolismo do açúcar no organismo. Por isso que eles têm essa tendência à obesidade e à diabetes. Segundo, os índios sempre tiveram álcool, na América do Norte menos, mas todos os índios da Amazônia preparavam bebidas fermentadas, etc. É a mesma coisa com o tabaco, só que ao contrário. O tabaco é indígena. Os índios fumavam, mas não tinham câncer, ou a taxa devia ser muito pequena, assim como o alcoolismo existe entre nós, mas é muito menos violento. Porquê? Os índios, para fazerem o tabaco deles e a bebida deles, tinham que produzir à mão. Tabaco tinham de plantar, de enrolar, de fazer um charuto, levava cinco dias para fumar, eram objetos custosos. A cerveja que faziam levava semanas. Aí, chega de repente a cachaça, seis meses de trabalho indígena concentrado numa garrafa que custa dois reais. A mesma coisa com a gente: quando você pega num maço de cigarro que tem concentrado seis meses de trabalho indígena, você fuma um atrás do outro. Você morre de câncer aqui e os índios morrem de cirrose lá. O capitalismo apresenta aos índios uma coisa que eles nunca tiveram: o infinito mercantil. Os objectos não acabam nunca. Você tem uma quantidade infinita de cachaça. É como se chegassem aqui marcianos que nos dessem soro da vida eterna. Os índios não entendem e consomem, consomem, consomem. Eles produziam pouco para ter tempo livre. O que acontece agora é que continuam produzindo pouco mas os produtos chegam em quantidade infinita. E eles não têm estrutura social, política, institucional. Vai levar séculos para que desenvolvam resistências. Todo o ser humano gosta de se drogar, alterar a consciência, desde o café até ao LSD, então nos índios o álcool entrou destruindo tudo. É certamente a coisa mais destrutiva em todos os índios das Américas. Não há sociedades perfeitas. É preciso distinguir entre modelo e exemplo. Os índios são um exemplo, não um modelo. Jamais poderemos viver como os índios, por todas as razões. Não só porque não podemos como não é desejável. Ninguém está querendo parar de usar computador ou usar antibiótico, ou coisa parecida. Mas eles podem ser um exemplo na relação entre trabalho e lazer. Basicamente trabalham três horas por dia. O tempo de trabalho médio dos povos primitivos é de três, quatro horas no máximo. Só precisam para caçar, comer, plantar mandioca. Nós precisamos de oito, 12, 16. O que eles fazem o resto do tempo? Inventam histórias, dançam. O que é melhor ou pior? Sempre achei estranho esse modelo americano, trabalha 12 horas por dia, 11 meses e meio por ano, para tirar 15 dias de férias. A quem isso beneficia? A única vantagem indiscutível que a civilização moderna produziu em relação às civilizações indígenas foram os avanços na medicina. Se você fosse viver o resto da vida no mato o que levaria? Penicilina. Foi de fato um avanço. Mesmo assim nossos avanços sempre avançam demais. Hoje preferimos manter uma pessoa de 90 anos sofrendo horrivelmente, tem de viver, tem de viver, a família vai à falência. Ou seja, não sabemos mais morrer. Todo o mundo antes do século XX sabia morrer.