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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

ENSAIO

GRANDE SERTÃO: VEREDAS
Carlos Sepúlveda
Certa feita, indagado por que seu romance era tão difícil de ler, Guimarães Rosa respondeu que apenas chamava as coisas pelo nome.
De outra vez, questionado acerca da mesma dificuldade de leitura, Rosa argumentou que seu romance não era para ser lido, mas sim para ser declamado, como um epos grego.
Nestas duas anedotas, já parte do folclore sobre um autor que Carlos Drummond de Andrade certa vez perguntou se existia de se pegar, pode se esconder uma face importante da explicação deste extraordinário romance, um dos livros mais belos jamais escritos na língua de Camões.
Se prestarmos um pouco mais de atenção ao que foi dito, vamos notar que, de um lado, existe a nomeação que é, afinal de contas, por onde se conduz toda e qualquer arte de contar, uma vez que narrar, contar, ficcionar constituem um artifício de realidade, um fingimento, um fazer de contas. É a nomeação que nos conduz como leitores, no sentido de levar para o outro lado, para além dos vínculos do cotidiano, da finitude burocrática de nosso horizonte corriqueiro e imediato. Afinal, o leitor só existe porque o real é pouco e pobre, em face da facticidade obrigatória do viver.
Assim, chamar as coisas pelo nome é uma forma de possuí-las, é reintegrá-las em outro universo de significação, fazendo nascer outros vínculos, surpreendentes e inovadores, desterritorializando-nos ao apelo comum do mundo e das coisas, das palavras e as coisas.
Nomear é instaurar mundos. É o poder babélico do mundo a ser desmoronado ou o poder do clarão de pentecostes para um mundo a ser fundado. Os limites do mundo são os limites de minha linguagem, recitaria o inexplicável Ludwig Wittigenstein.
Esta é, talvez, a grandeza primeira e imediatamente compreensível nesta obra magistral. Retornarei a este ponto mais adiante.
A segunda réplica aponta para a oralidade.
Ao reivindicar o aspecto declamatório de seu discurso, GR busca recuperar a discursividade, no sentido de aproximar o mundo narrado de uma fala do outro para o outro da fala. Com isto, desfazer o nó logocêntrico que manteve cativo um número considerável de narradores, sobretudo durante o período romântico, que se caracterizou pela formação das grandes narrativas.
Com isto quero dizer que Guimarães Rosa parte da ruptura moderna em torno a todo saber teórico, isto é, o saber presidido por uma relação de identidades entre a tradição e a autoridade que são as formas clássicas de transmissão do saber. O acento na oralidade significa a opção pelo pragmatismo, pelo senso-comum, a meu juízo o elemento fundamental, a base mesma do argumento desta estória monumental. Voltarei a este ponto mais adiante e com mais detalhes.
Por enquanto, vale lembrar o modo como o autor introduz seu enredo.
Na cena comunicativa de Grande Sertão: veredas, estabelece-se a figura de dois personagens apenas: Riobaldo e seu ouvinte ilustre, um doutor da grande cidade que passou, acidentalmente, pela propriedade do jagunço aposentado e lá permaneceu por três dias. Assim, simples e direto, sem grandes rodeios, o que há é uma prosa mineira, em busca de um consenso em que nenhum dos dois interlocutores dispõem do monopólio da verdade, por isso mesmo trata-se de um espaço de convivência radicalmente aberto, livre, emancipatório.
Mas, qual o tema da conversação? Nada menos do que a travessia, isto é, o nonada da vida, a vida nonada, este intrigante e indecifrável estar-no-mundo.
Pretendo com estas observações preliminares estabelecer meu modo de compreensão desta obra ímpar em nossa literatura, deste texto surpreendente, esperando desta generosa audiência que lhe faça justiça com uma visita ou uma re-visita. Não creio que um brasileiro que se suponha culto, no sentido acadêmico da palavra, possa dispensar esta leitura.
Resumindo, pois, minha hipótese de trabalho: admito três aspectos estruturais, de início:
a) nomeação, isto é, os vínculos estabelecidos entre o nome e a coisa, no romance, como uma espécie de função encantatória da linguagem e que promove uma espetacular ruptura nos clássicos modelos de verossimilhança. É o que acontece sob a rubrica do maravilhoso e do fantástico na palavra SERTÃO. Nada do que o narrador conta existe antes ou depois do ato de nomear. Tudo só existe enquanto na emergência do que está dito, no exato momento em que escutamos, como um acontecimento fundador. O resto é silêncio, ou melhor: o resto é nonada.
b)A oralidade, isto é, o revolucionário estatuto do narrador-Riobaldo, abrindo um abismo entre o narrar enquanto saber centrado e concentracionário e o narrar-com, verdade que se constrói ao lado de, sem exclusões. Narrar como se vida fosse, mas vida enquanto totalidade do vivido, incluindo os interditos, a falta, os fracassos, porque, como na palavra poética de Cecília Meirelles, a vida só é possível reinventada. Diadorim, Dia-dorim, é a metáfora deste transitar transgressor.
c) O senso-comum, isto é, a mathesis ou, se preferirmos, a matéria mesma que faz deste romance um dos mais competentes acervos da sabedoria do jagunço ( quer dizer:do simples) que nos conduz a uma dimensão transcendental, para além de todo particularismo, abrindo uma nova percepção do regionalismo. É esse verdadeiro tratado universal do senso-comum que nos possibilita recolher, neste particularismo ontológico, a dimensão do eterno, do tesouro comum da humanidade. É por este caminho que nosso Guimarães Rosa é um iluminista radical, sobretudo no sentido da liberdade. É também por este trajeto que sua narrativa é moderna, no sentido de recolher o eterno daquilo que é efêmero, transitório, cotidiano. É aí, na transcendência do familiar que o senso-comum se constitui em discurso literário.
Espero, pois, conduzindo estes três aspectos em permanente diálogo, complexo como convém a uma obra desta importância, chegar a uma interpretação crítica deste romance excepcional em nossa produção contemporânea.
Nas edições de Grande sertão:veredas pela editora José Olímpio, há um apêndice em que se reproduz a nota escrita pelo autor e na qual se lê o seguinte:
Aos leitores, e aos que escreverem sobre este livro, pode-se não revelar a seqüência de seu enredo, a fim de não privarem os demais do prazer da descoberta de Grande sertão: veredas.
Peço licença, pois, ao velho e querido e encantado Rosa para não obedecer o seu pedido, uma vez que seria impossível falar desse romance na suposição de que todos tivessem lido. Não parto desta hipótese.
É necessário, portanto, adiantar alguns aspectos e revelar o enredo, para que se possam entender as considerações que se seguem.
Trata-se, na verdade, de uma estória até certo ponto, singela, muito simples em sua superfície, como aliás são todas as estórias complexas e geniais. A complexidade, porém, se desvenda à medida em que o enredo vai-se desdobrando enquanto cifra da memória do narrador-personagem.
Riobaldo Tatarana, o Reinaldo, o Urutu Branco, é um jagunço em retiro na sua propriedade. Velho em busca da sabedoria, espelhada no compadre Quelemém, ele é um depósito inesgotável de memórias e de reflexões luminosas sobre a existência, sobre a vida e sobre a morte, sobre as coisas, o estar-no-mundo. Com seu compadre, Quelemém, kardecista, trava longas discussões sobre a transcendência, sobre os mistérios de viver e morrer, Deus e o diabo.
Este velho jagunço em preparação para a morte recebe, por três dias e três noites, a visita de um homem da cidade, isto é, de um citadino, supostamente cosmopolita e culto, no sentido elitista do termo, um doutor, que se dispõe, aparentemente com boa vontade, a ouvi-lo. Não há, em nenhum momento da narrativa, a fala explícita desse ouvinte, apenas, no discurso de Riobaldo ou através dele, é que se supõe a fala do outro.
De um ponto de vista estrutural, trata-se de um deslocamento da grafocracia para a escuta, a oralidade, pois é um longo monólogo em que o narrador e seu ouvinte atravessam, pelo viés da memória do primeiro, as trilhas e veredas imaginárias do Grande Sertão.
Vamos nós também, intrusos nesta prosa, com um terceiro ouvido, seus leitores, a partir da primeira palavra dessa grande fala ( nonada) viajando juntos, como ouvintes do ouvinte, intrusos, como dissemos, onde não fomos chamados, que ouvimos atrás da porta uma conversa de dois.
Mas o que nos seduz nesta interminável conversação e que nos leva a querer saber qual seu desenrolar – o seu novelo – são os conflitos entre a vida vivida pelo narrador e sua interpretação depois do vivido: isto é, a essência mesma daquilo que o narrar é, o porquê precisamos contar, da originalidade de todo ato de ficcionar: o verossímil.
Para dar sustentação a este jogo, Guimarães Rosa, com sua diabólica sensibilidade e sutileza, introduz Diadorim, certamente ao lado de Capitu os dois mais intrigantes enigmas de nossa literatura romanesca, ambas emulações de uma fina ambigüidade.
Pois bem, é isto e nada mais. Acontece porém que esta aparente redução acaba se desenrolando ao longo de 500 páginas, num jogo de extraordinária humildade, de sedução, encantamento e lucidez, porque narrar é também um certo sabor de saber.
Haja leitor para tanta obra prima!
Cumpre-se aqui o preceito da poética de Aristóteles segundo a qual a verdade poética é superior – enquanto dizer essencial – à verdade histórica. Acho mesmo que não exagero se disser que Grande Sertão:Veredas é, de certo modo, um elogio da verdade poética, como o elogio da loucura de Erasmo também o é. Um elogio da inesgotável possibilidade de falar o homem naquilo que ele tem de universal, transcendente e, sobretudo, provisório.
É este aspecto que gostaria de enfatizar neste momento.
Não pretendo dizer com isto que a verdade poética e a verdade histórica sejam territórios autônomos e que se podem estabelecer hierarquias imperiais entre uma coisa e outra, não se trata disto. Pretendo que haja uma verdade essencialmente vivida pelo homem, como experiência única, para além de todo particularismo, de toda convenção e que vale para além de sua precária temporalidade e finitude e que isto não anula o fato de que viver é circunstância, que o sujeito é sempre situado. O que imagino, e que Grande Sertão:Veredas me permite fazer entender, é que na condição de ser histórico e situado, falado em suas inscrições na sociedade, na história, no desejo, Riobaldo é a metáfora do homem onde há este mistério, com o qual está condenado a viver: a vontade de transcendência, de ir-além e para além do Bem e do Mal. Só o homem pode viver a experiência da verdade como revelação. Ao contrário dos outros animais que se ocupam das coisas, o homem se pré-ocupa com as coisas.
Podemos talvez chamar a isto liberdade, no sentido sartriano do termo, na ânsia de tornar-se livre, autônomo, face-a-face com seu advento. Portanto, estou falando de uma antropologia metafísica mas também de uma ontologia fundamental e enquanto achamos que esta possibilidade existe, acontecemos humanos, repetindo as palavras do Professor Manuel Antonio de Castro em suas análises heideggerianas desse romance.
Mas humano é uma coisa que somos ou em que nos tornamos? É uma construção, uma determinação, uma invenção?
Eis o mistério de todo Saber, pois só nos reconhecemos humanos porque incompletos na busca dessa comunhão essencial: o Ser é transitório, transitivo e travessia.
Voltemos agora ao primeiro aspecto que mencionei nesta conferência: a nomeação.
O romance é um poema, no sentido de que se move no reino das metáforas e das palavras que precisam ser deslocadas de seu acervo semântico habitual e condicionado. Justifica aquela assertiva de Fernando Pessoa quando diz que em prosa é difícil de se outrar. Trata-se pois de um exemplo perfeito do que, no seu clássico ensaio, Roman Jakobson denomina função poética da linguagem.
Diadorim é um duplo, uma travessia, uma revelação feita a Riobaldo na outra margem do rio e que vai fasciná-lo a vida inteira com seu misterioso poder de sedução. A ele e a nós, leitores enveredados, surpreendidos que somos por aquilo para que o autor pediu silêncio.
Lembro que o primeiro encontro de Riobaldo e Diadorim acontece justamente nas margens do rio, na terceira margem do rio.
Diadorim é uma mulher, chama-se Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins, que nasceu para guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor.Diadorim vai seguir o pai e depois vingar-lhe a morte. Transveste-se de homem e vive, com Riobaldo, todas a dimensões de um amor ambíguo, no possível impossível do desejo não realizado, enquanto peleja a vingança, por Joca Ramiro.
É neste conflito que o autor joga toda a essencialização e todo o engenho de seu narrar intertextual, tanto que, se este aspecto fosse eventualmente excluído da narrativa, simplesmente não haveria narrativa a se cumprir, como obra de arte superior e incomparável, como é superior, este texto magistral. Por que é lá, no fundamento desta ambigüidade, no lugar desse desejo, que se realiza a força do não dito, que se desvela, no fim, no dizer fundamental:
Sendo isto. Ao dôido, doideras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção. (79)
Este outro para quem Riobaldo conta suas aventuras no Grande Sertão e de quem se espera alguma decifração é parte do enigma. Não pode ser descartado mas também não dispõe de razão suficiente para mergulhar no enigma do mundo do Ser do Sertão. Sua razão é desse mundo e a razão de Riobaldo não está nas coisas, mas no que se esconde por detrás delas, ele quer o avesso, a sobrecoisa, porque o outro não se deixa eliminar, subsiste, persiste; é o osso duro de roer, lá onde a razão perde os dentes ( Antonio Machado)
Falo por palavras tortas. Conto minha vida, que não entendi. O senhor é homem muito ladino, de instruída sensatez. Mas não se avexe, não queira chuva em mês de agosto. Já conto, já venho – falar no assunto que o senhor está de mim esperando. E escute. (370)
Voltemos agora ao primeiro aspecto do que lhes falei em minha interpretação: a nomeação.
O romance é um poema, no sentido de que se move no reino das palavras que precisam ser deslocadas de seu acervo semântico habitual. Trata-se, pois, do que no seu já clássico ensaio Roman Jakobson denomina função poética da linguagem.
A função poética projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação
Isto significa, em última análise, uma desautomatização do signo, isto é, uma relação diferente entre o liame significado-significante, abolindo os referentes condicionados na e pela experiência do cotidiano e, mais ainda, a autonomia do dizer que não tem mais a obrigação de restringir-se aos referenciais imediatamente reconhecíveis. Ao contrário, o privilégio na equivalência da combinação ( sintagmas) sobre a seleção ( paradigmas) liberta o sentido e desobriga a lógica deste mesmo sentido, por isso a alogicidade é uma das marcas mais importantes do lirismo.
Assim é que no dizer poético reside a possibilidade de recolher a experiência do fundamento, aquilo em que nos tornamos enquanto ser-aí e que só a linguagem pode revelar, porque somente ela, a linguagem, sabe mais do que nós.
A nomeação poética é como fundar outro idioma dentro de nossa própria língua, por isso existe a língua portuguesa, sistema lingüístico comum aos falantes, e a língua de Guimarães Rosa. Daí que ler Rosa é como exercitar uma tradução.
O que pretendeu o autor com esta nomeação fundamental? Que vínculos se estabeleceram a partir das novas possibilidades de significação entre o nome e a coisa, experiência historicizada pela geração de 1945? Que leitura foi esta que os modernismos de 22 e 30 fizeram e que levou muitos críticos, como José Guilherme Merquior, a chamar a geração de 45 de falência da poesia ou uma geração enganada e enganosa?
Estou, é claro, levantando alguns problemas que este romance suscitou quando de sua publicação em maio de 1956.
Sobre este último aspecto, é preciso que se esclareça o fato de que a palavra poética, conduzida como um retorno a uma certa sofisticação, não estava de todo ausente do programa modernista. O que houve foi um certo exagero nas posições radicais da geração combativa de 22 e que se expandiram, especialmente no sentido de uma aproximação com o discurso cotidiano, na língua coloquial. Deste último aspecto, Guimarães Rosa utilizou-se plenamente: GS:V é pura oralidade.
Não que o coloquialismo seja um dialeto menos ou mais poético, não é esta a questão. Mas é que há sempre o risco de, sob a rubrica do coloquial, cair-se na banalização pura e simples do discurso de comunicação de massa e com isto perder-se o vigor essencial da nomeação poética que é, sobretudo, uma busca do sentido mais profundo ( puro) para as palavras da tribo, portanto menos visíveis nas falas habituais. O que não quer dizer que não se possa, a partir destes dialéticos, encontrar o fundamento do dizer essencial. Mas aí é outra coisa…
Guimarães Rosa fez algo de genial neste romance. Tomando o coloquialismo do jagunço, sua fala social e sertaneja, por ele recriada, conseguiu um tal nível de expressividade poética que a conduziu até ao lugar privilegiado da verdade por excelência, isto é, criou um novo idioma, que é uma forma de verossimilhança radical, no sentido de que, quem cria linguagens, produz mundos. Do mesmo modo, por exemplo, Cervantes fez com o espanhol pouco refinado que usou, no século XVII; que Kafka fez com o alemão de Praga, enquanto língua menor, no dizer de Deleuze e Guattari.
Depois deste romance, podemos dizer que há uma língua portuguesa, que é uma coisa, e a língua portuguesa de Guimarães Rosa, que é outra, sem deixar de ser a mesma.
Pois é este novo liame entre o nome e a coisa a mais radical possibilidade de dizer a diferença, de transformar o silêncio em expressão poética, num trabalho de Sísifo capaz de tornar dizível o indizível.
É neste sentido que a obra de GS, à semelhança dos grandes gênios da literatura é uma metaliteratura.
Eis aonde a nomeação nos conduz.
Complementarmente a esta característica, segue-se a oralidade.
O narrador supõe um ouvinte ilustrado para o qual conta sua vida, como Scherezade conta suas estórias para um Califa entediado e predestinado. Esta figuração é propriamente um epos, uma épica, conduzindo, pois, à estrutura do épico.
Se buscarmos com cuidado, vamos notar que lá estão as marcas clássicas de um discurso épico: o narrador, o desenrolar progressivo da matéria narrada, a autonomia das partes, a articulação entre o real e o maravilhoso, o plano histórico confluindo com o mítico, as intertextualidades, etc…
Quem pretender pesquisar nesta linha, como fazem alguns pesquisadores brasileiros, com notável competência, terá aí material para muito trabalho.
Do ponto de vista que escolhi, no entanto, imagino articular esta oralidade mais no sentido de um diálogo intertextual com os narradores modernos ( e eventualmente pós-modernos), em especial aqueles narradores que se descentram de suas certezas e narram, como no caso de Machado de Assis, seus fracassos também, isto é, narram suas trajetórias. Porque a vida é trajetória e nela cabem todos os eventos que nos afetam.
É aí que a condição épica clássica se despe de suas marcas genéricas, fato que o professor Anazildo Vasconcellos da Silva analisa muito bem em seus textos sobre o modelo épico moderno.
Seguindo seu ponto de vista, com o qual concordo inteiramente, o narrador épico moderno ( no caso, Riobaldo) não pode narrar senão suas perdas, até porque a imagem do mundo que ele elabora se perde na impossibilidade de confrontá-la com a ordem do real, em razão do caráter fragmentário imprimido pela técnica moderna ao mundo familiar. É a dissolução do mundo contemporâneo que Weber denominou Entzauberung, algo como desencantamento.
Este descentramento encontra uma espécie de apoio tático no ouvinte, para quem Riobaldo desenrola sua vida. É neste contar, miudamente, que ele pode – como Brás Cubas, Bentinho, Aires, em Machado de Assis – recompor seu viver, semelhantemente ao que sucede na metáfora das Mil e uma noites, onde Scherezade encontra no narrar a possibilidade de não ser morta pela Califa de Bagdá. Ela se salvou porque sabia contar estórias. Riobaldo quer atravessar seu rio-baldo, onde a água se torna rasa e ele pode fazer sua travessia, ou melhor, sua baldeação.
Cumpre-se então a identidade entre o narrar e o viver. A oralidade é seu ritual, seu gesto, sua instituição.
Neste jogo entre dizer e escutar, mil segredos se confundem até que o narrador se recolha no humano, seu enigma e desafio, dolorosamente marcado em sua alma com o ferro e o fogo de uma perda irreparável.
Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O Rio de São Francisco – que de tão grande se comparece – parece um pau grosso, em pé, enorme… Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que digo, se for… Existe é homem humano. Travessia.
∞ (460)
O infinito que encerra a grafia do texto é o símbolo matemático remetendo a um tempo mágico e circular, ao Mistério do nada. Não exatamente o infinito, porque já seria um lugar determinado, mas ao não-finito, ao indeterminado do que não tem fim. A temporalidade negada pelo signo é, antes de tudo, negada enquanto linearidade, racionalidade previsível.
Nosso terceiro e último ponto é o que se refere à mathesis, isto é, à matéria mesma com que o autor elabora sua poiesis e sua semeiosis. Mais explicitamente: uma narrativa – qualquer narrativa – é uma re-elaboração do material disponível, por meio da verossimilhança que, por sua vez, articula, invariavelmente, quatro elementos- a retórica, a sociedade, o estilo e a representação.
Estes elementos transitam como linguagem que nos conduz, nos remete, para o outro lado – a metáfora – em que se transmigra toda e qualquer estória.
Assim, pois, Guimarães Rosa utiliza, como elemento funcional de seu romance, o senso-comum, isto é, o acervo de um saber original, e originário, simplesmente, no que é imediato. Esta aparente pobreza é, na realidade, o maior tesouro desta extraordinária obra de arte.
Gostaria de enfatizar este ponto.
Trata-se de um tema caro ao cristianismo, portanto, à herança do saber ocidental, a partir dos Gregos. Trata-se de ver, na indigência e na simplicidade do mundo em redor, no despojamento, na kenosis paulina, a possibilidade de um encontro com o Ser, com a iluminação, com a verdade revelada, sem a autoridade do adequatio res ad intelectum, porque significa superar todo saber codificado, institucionalizado, transformado em disciplina e em poderes, portanto um saber organizado e patrimonializado que se encolhe e se perde na impossibilidade de falar o que é humano, porque confinado nos limites de uma lógica formal.
Trata-se do encontro da coisidade das coisas, aritotelicamente proposto e que parte do progressivo despojamento do que está demais, dos excessos, da hybris, para encontrar a substantia do essencial. Alguém já se perguntou porque os grandes iluminados da humanidade, esses homens superiores, sempre nascem na pobreza, no despojamento?
Heidegger no seu Sobre o humanismo, em competente tradução de Emanuel Carneiro Leão, copila o seguinte encantamento:

De Heráclito se contam umas palavras, ditas por ele a um grupo de estranhos que desejavam visitá-lo. Ao aproximarem-se, viram-no aquecendo-se junto ao forno. Detiveram-se surpresos, sobretudo porque Heráclito ainda os encorajou – a eles que hesitavam - fazendo-os entrar com as palavras: pois também aqui deuses estão presentes. ( 86)

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

TEXTOS DE ORLANDO SENNA

Nosso futuro chinês

Em 2013 a China se tornou a maior potência comercial do mundo, superando os EUA. É o país mais populoso do planeta (mais de 1,3 bilhão de habitantes), com uma história e uma cultura que remontam a 38 séculos. No século passado aconteceu um fato importante nessa saga milenar, que foi a polêmica Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung, de onde resultou a atual e socialista República Popular da China.
Com esse currículo, a China sempre dedicou especial atenção à cultura e, na atualidade, às indústrias culturais. Segundo Sergio Capparelli, jornalista italiano radicado em Pequim, “a China está ansiosa para mostrar ao mundo que pode ser a primeira em termos globais em todos os campos econômicos possíveis, inclusive no da indústria cultural”. Em 2012 a produção dessa indústria aumentou 17% com relação ao ano anterior, respondendo por cerca de 4% do PIB. A meta é elevar a 6% nos próximos dois anos.
A indústria audiovisual é a menina dos olhos deles. Duas gigantescas instituições governamentais cuidam do assunto: a Administração Estatal de Rádio, Cinema e Televisão (com nível de ministério) e o Ministério da Cultura. A TV é administrada pela Televisão Central da China (para se ter uma ideia, a sede é um prédio de 44 andares). O cinema está sob jurisdição da China Film Corporation, sempre em conflito com os EUA porque a China permite a importação anual de apenas 34 filmes estrangeiros.
Em 2018 será inaugurada, na costa leste chinesa, o maior centro mundial de produção audiovisual, empreendimento de seis bilhões de euros, uma parceria público privada. E por aí vai, o paisão asiático está se preparando para inundar o mundo não apenas com os produtos baratos (domésticos, digitais, cosméticos, brinquedos) que conhecemos, mas também com filmes, séries de TV, videogames, música, literatura e todos os possíveis produtos que possam mexer com nosso imaginário e com nosso comportamento. Com o nosso way of life, que eu ainda não sei como se diz em chinês, mas não demora muito e saberei. 
No seu avanço como potência planetária, a China está de olho grande na América Latina. Está de olho no mundo todo, é claro, mas com uma mirada mais amorosa em direção à América Latina, aqueles olhos puxados nos paquerando misteriosamente. Razões não faltam, a América Latina é uma região em ascensão econômica. A porta de entrada é o Brasil (tem a ver com os BRICs), o quarto principal destino de recursos chineses, atrás apenas de Austrália, EUA e Canadá. Nos últimos cinco anos a China aplicou no Brasil cerca de 30 bilhões de dólares. A modernidade humana já foi culturalmente influenciada pela Europa, depois pelos EUA, e deu no que deu. Como será o mundo sob influência majoritária chinesa? Como será o mundo para nós, ocidentais, os de olhos redondos, “olhos de diabo” como eles dizem. 

Dispensados por motivo de morte
                                                                                                          “O operário emocionado / olhou sua própria mão / sua rude mão de operário / de operário em construção / e olhando bem para ela / teve um segundo a impressão / de que não havia no mundo / coisa que fosse mais bela”. Esse poema de Vinicius de Moraes, O operário em construção, tão pungente e engajado, me vem à mente com as notícias de mais um operário que morre em acidente de trabalho nas obras dos estádios da Copa do Mundo. Já são seis vítimas fatais. Não sabemos, jamais saberemos, quantos operários caíram ou foram esmagados ou afogados ou explodidos na história das mega construções, desde as pirâmides dos faraós do Egito ao One World Trade Center que está acabando de ser construído em Nova York, com 541 metros de altura.
Estima-se que seriam necessários 100 mil operários trabalhando sem parar durante 20 anos para construir as 100 pirâmides erguidas na margem oeste do Nilo, há quase cinco milênios. O que se sabe, via pesquisas arqueológicas, é que eram turnos ou temporadas com 10 mil trabalhadores e que havia grandes cemitérios para operários ao lado das pirâmides. Sobre a Muralha da China se sabe menos ainda. Sobre a Represa Hoover, maior construção dos EUA, erguida nos anos 1930, sabemos que o governo celebrou o fato de apenas 96 pessoas perderem a vida na obra, número severamente contestado por sindicatos de trabalhadores.
Voltando ao país da Copa, as grandes obras do “milagre econômico” da ditadura são de estarrecer. Na ponte Rio-Niterói morreram 33 operários segundo o governo ditatorial e mais de 400 segundo engenheiros que trabalharam na construção. Na Transamazônica até hoje é comum ouvir uma frase arrepiante: “a beira da estrada toda é um cemitério”. A ereção de Brasília, em tempos democráticos, é uma hecatombe, somando os acidentes mortais com massacres a bala de operários pela Guarda Especial de Brasília. Os acidentados e assassinados, sepultados no cimento, nas fundações de Brasília, eram registrados como “dispensados por motivo de morte”. Vejam o filme Conterrâneos velhos de guerra de Vladimir Carvalho, está tudo lá. E também a trágica poesia de O romance do vaqueiro voador de Manfredo Caldas.
Atualmente as empresas e os governos que contratam as empresas oferecem explicações, porque antes isso não existia, tudo era “fatalidade”. Agora é defeito mecânico ou falha humana. No setor das mega construções a explicação é, na grande e vergonhosa maioria das vezes, que a culpa é do operário que morre. A vítima é culpada, não há acidentes, há suicídios. Como aconteceu nos óbitos na Arena de Manaus, onde autoridades e empresários disseram que os operários não usavam o equipamento de segurança “por preguiça”.
Um aspecto grave e inexplicável da questão é a ineficiência da tecnologia, tão avançada em tantos aspectos e não consegue resolver a segurança do operário em construção. Existem alarmes para carros que estão com a porta aberta e não existem dispositivos para impedir que um operário entre na obra sem o equipamento de segurança necessário. Comecei com Vinicius e encerro com A construção de Chico Buarque, e com dor: “e tropeçou no céu como se fosse um bêbado / eflutuou no ar como se fosse um pássaro / e se acabou no chão feito um pacote flácido / agonizou no meio do passeio público / morreu na contramão atrapalhando o tráfego”.


Poluição audiovisual

> Estou vendo filmes da década 1940, franceses e estadunidenses. Em preto e branco, fotografia com forte contraste luz e sombra, narrativa com tempos para reflexão e respiração. Sem jorros de sangue ou vísceras expostas, um tratamento da violência completamente distinto do que vemos nos filmes e telesséries da atualidade. De vez em quando organizo essas mostras particulares, vistas em casa pela família, de filmes antigos. Funciona como uma desintoxicação audiovisual.

> A visita à arte cinematográfica de 70 anos atrás se me apresentou como uma necessidade sanitária porque sofremos, minha mulher e eu, forte exposição à pirotecnia e à velocidade das informações na TV. Estávamos tentando ver uma telenovela e, durante os intervalos ou porque nos cansávamos de ver, mudávamos constantemente de canal, zapeando como adolescentes. Os anúncios dos próprios canais e a propaganda comercial se transformaram em poluição audiovisual. O estilo "velozes e furiosos" produz em mim, na minha companheira, em muita gente que conheço e creio que em muita gente que não conheço uma espécie de agressão à sensibilidade, um assédio aos neurônios.

> Além de ser uma mesmice, formato igual para todos os canais (apenas alguns canais públicos não o utilizam), é de uma pobreza estética e conceitual de dar dó. A novidade e a qualidade dos videoclipes que inspiraram o formato ficaram para trás, o que hoje se vê e ouve é uma degeneração da proposta surgida há meio século (Now de Santiago Alvarez, o primeiro kinoclipe) de aceleração do ritmo ao juntar música e imagens. O que resta é um pipocar exagerado de cortes, fusões e algaravia sonora. A propaganda do comércio varejista é a pior, parece que cada cenário é uma casa de loucos em momento de surto.

> Sabe-se que a vida humana ganhou ritmos mais rápidos e sincopados nos últimos tempos e que a arte tende a acompanhar o diapasão da vida. Isso é uma coisa, outra coisa é acentuar, enfatizar além da conta, ostentar o tictac da edição em uma medida exagerada. O efeito é adverso ao que se está tentando, não resulta em uma comunicação mais efetiva e sim em monotonia.

> Nas muitas possibilitadas aventadas para a máquina do tempo, se vier a existir, está a de que um ser humano de hoje levado à Roma Antiga não resistiria muito tempo, seria sufocado pelos odores da época, pela sujeira, que para nós seria como um bafo de pestilência, um miasma insuportável. Também se profetiza que um espectador de cinema dos anos 1910, se transportado aos dias de hoje e posto diante de uma tela cinematográfica ou televisiva, além de não entender nada, seria vitimado por enjoos e náusea, por vômitos e enxaquecas oftálmicas.

> O lado bom dessa situação é que se trata de uma tendência que em algum momento será superada pelo engenho humano, agora contando com instrumentos que abrem novos horizontes para a invenção, para novos caminhos de comunicação. E também que o Cinema se compõe de várias artes: o cinema mudo provoca sensações estéticas específicas, o cinema em preto e branco é um campo até hoje inesgotável para outro tipo de apreensão também específica e Matrix gera prazeres ou rejeições que outras artes do Cinema não geram.

> Sobre o preto e branco minha companheira de vida e das mostras domésticas chamou a atenção para o não naturalismo desses filmes, embora narrados de forma realista. Porque a vida não é em preto e branco e o que isso produz, disse ela, "é pura fantasia". Na mosca: Cidadão Kane é mais irreal que Matrix. Confiemos no poder da arte.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

PIADA DE MINEIRO


1) NUDEZ MINEIRAs
- Cumpade, u quê quiocê acha desse negóço de nudez?
- Acho bão, sô!
- Ocê acha bão purcaus diquê, cumpade?
- Uai! É mió nudês do que nunósso, né mesmo?
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2) TREM CAIPIRA
Uma mulher estava esperando o trem quando sentiu uma vontade de ir urgentemente ao banheiro.
- Purcaus diquê qui a sinhora tá chorano?
- É que eu fui urinar e o trem partiu...
- Uai, dona! Por caus dissu num precisa chorá não...tenho certeza bissoluta qui a sinhora já nasceu com esse trem partido...
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3) MUIÉ MINEIRA
- Ô cumpadre, cumé que chama mesmo aquela coisa que as muié tem , quentim, cabeludim, que a gente gosta, é vermeia e que come terra?
- Uai...quentim... vermeia..? A gente gosta? Uái sô, só pode ser ******. Mas eu num sabia que comia terra, sô!!
- Pois come, cumpadre. Só di mim, cumeu treis fazenda.
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4) DIPROMA
- Diproma, vai falar para sua avó trazer um cafézim aqui pra visita!
- Mas que nome engraçado tem esse menino!! É seu parente?
- É meu neto! Eu chamo ele assim porque mandei a minha filha estudar em Belzonte e ela voltou com ele!
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5) MINEIRIM NO RIDIJANEIRO
Um mineirim tava no Ridijaneiro, bismado cas praia, pé discarço, sem camisa, caquele carção samba canção, sem cueca pur dibacho. Alheio a tudo, o mineirim olhou pro marzão e num se güentô: correu a toda velocidade e deu um mergúio, deu cambaióta, pegô jacaré e tudo mais. Quando saiu, o carção de ticido finim tava transparente e grudadim na pele. Tudu mundo na praia tava oiano pro tamanho do 'amigão' que o mineirim tinha.
O bicho ia até pertim do juêio...A turma nunca tinha visto coisa igual.. As muié cum sorrisão, os homi roxo dinveja, só tinham olhos pro bicho.
- Qui qui foi, uai? Seus bobãum... vão dizê qui quando oceis pula na agua fria, o pintim doceis num incói tamém...?
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6) O EMPRESÁRIO E O MINEIRIM
Num certo dia, um empresário viajava pelo interior de Minas. Ao ver um peão tocando umas vacas, parou para lhe fazer algumas perguntas:
- Acha que você poderia me passar umas informações?
- Claro, sô!
- As vacas dão muito leite?
- Qual que o senhor quer saber: as maiáda ou as marrom?
- Pode ser as malhadas.
- Dá uns 12 litro por dia!
- E as marrons?
- Tamém uns 12 litro por dia!
O empresário pensou um pouco e logo tornou a perguntar:
- Elas comem o quê?
- Qual? As maiáda ou as marrom?
- Sei lá, pode ser as marrons!
- As marrom come pasto e sal.
- Hum! E as malhadas?
- Tamém come pasto e sal!
O empresário, sem conseguir esconder a irritação:
- Escuta aqui, meu amigo! Por quê toda vez que eu te pergunto alguma coisa sobre as vacas você me diz se quero saber das malhadas ou das marrons, sendo que é tudo a mesma resposta?
E o matuto responde:
- É que as maiáda são minha!
- E as marrons?
- Tamém!
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7) INDO PARA A PESCARIA...
- Então cumpade, tá animado?
- Eu tô, home!
- Ô cumpade, pro mode quê tá levano esses dois embornal?
- É que tô levano uma pingazinha, cumpade.
- Pinga, cumpade? Nóis num tinha acertado que num ia bebê mais?!
- Cumpade, é que pode aparece uma cobra e pica a gente. Aí nóis desinfeta com a pinga e toma uns gole que é pra mode num sinti a dô..
- É... e na outra sacola, o que qui tá levano?
- É a cobra, cumpade. Pode num tê lá...
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8) MINEIRIM COMPRANDO PASSAGEM
- Quero uma passage para o Esbui
- Não entendi; o senhor pode repetir?
- Quero uma passage para o Esbui!
- Sinto muito, senhor, não temos passagem para o Esbui.
Aborrecido, o caipira se afasta do guichê, se aproxima do amigo que o estava aguardando e lamenta:
- Olha, Esbui, o homem falou que prá ocê não tem passagem não!
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9) A PESQUISADORA E O MINEIRIN
Uma pesquisadora do IBGE bate à porta de um sitiozinho perdido no interior de Minas.
- Essa terra dá mandioca?
- Não, senhora.
- Dá batata?
- Também não, senhora!
- Dá feijão?
- Nunca deu!
- Arroz?
- De jeito nenhum!
- Milho?
- Nem brincando!
- Quer dizer que por aqui não adianta plantar nada?
- Ah! ... Se plantar é diferente.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

O Fato Novo

ÍNTEGRA DO DISCURSO DE PEPE MUJICA NA ASSEMBLEIA GERAL DA ONU

Amigos todos,

Sou do sul, venho do sul. Esquina do Atlântico e do Prata, meu país é uma peneplanície suave, temperada, uma história de portos, couros, charque, lãs e carne. Teve décadas púrpuras, de lanças e cavalos, até que por fim, no começo do século XX, se transformou em vanguarda no social, no Estado, na educação. Diria que a social democracia foi inventada no Uruguai.

Durante quase 50 anos o mundo nos viu como uma espécie de Suíça. Na verdade, na economia fomos bastardos do império britânico e quando este sucumbiu vivemos o mel amargo de termos comerciais funestos, e ficamos estagnados, saudosos do passado.

Quase 50 anos recordando o Maracanã, nossa façanha esportiva. Hoje ressurgimos neste mundo globalizado talvez aprendendo da nossa própria dor. Minha historia pessoal, a de um rapaz – porque uma vez fui um rapaz – que como outros quis mudar sua época, seu mundo, o sonho de uma sociedade libertária e sem classes. Meus erros são em parte filhos de meu tempo. Obviamente os assumo, mas há vezes em que medito com nostalgia.

A FORÇA DA UTOPIA

Quem me dera ter a força de quando éramos capazes de abrigar tanta utopia! Sem embargo não olho para trás porque o hoje real nasceu das cinzas férteis do ontem. Pelo contrário, não vivo para cobrar contas ou reverberar memórias.

Me causa angústia, e de que maneira, o futuro que não verei, e por ele que me comprometo. Sim, é possível um mundo com uma humanidade melhor, mas talvez hoje a primeira tarefa seja cuidar da vida.

Mas sou do sul e venho do sul, a esta Assembleia, em débito com milhões de compatriotas pobres, nas cidades, nos campos, nas selvas, nos pampas da América Latina, pátria comum que se está construindo.

O BLOQUEIO INÚTIL A CUBA

Venho em débito com as culturas originais esmagadas, com os restos do colonialismo nas Malvinas, com bloqueios inúteis a esse lagarto sob o sol do Caribe que se chama Cuba. Venho em débito com as consequências da vigilância eletrônica que não faz outra coisa que não seja semear desconfiança. Desconfiança que nos envenena inutilmente. Venho em débito com uma gigantesca dívida social, com a necessidade de defender a Amazônia, os mares, nossos grandes rios da América.

Em débito com o dever de lutar por pátria para todos. Para que a Colômbia possa encontrar o caminho da paz, e reconheço o débito de lutar pela tolerância, a tolerância que se precisa com aqueles que são diferentes, e com os que temos diferenças e discordamos. Não se precisa da tolerância para aqueles com quem estamos de acordo.

A TOLERÂNCIA É A PAZ

A tolerância é o fundamento de poder conviver em paz, e entendendo que no mundo somos diferentes. O combate à economia suja, ao narcotráfico, à fraude e à corrupção, pragas contemporâneas embarcadas por este antivalor, esse que sustenta que somos felizes se nos enriquecemos seja como for. Sacrificamos os velhos deuses imateriais. Ocupamos o templo deles com o deus mercado, que nos organiza a economia, a política, os hábitos, a vida e até nos financia em parcelas e cartões, a aparência de felicidade.

Parece que nascemos só para consumir e consumir, e quando não podemos sofremos com a frustração, a pobreza e até a autoexclusão.

O certo hoje é que para gastar e enterrar os detritos nisso que a ciência chama “pegada de carbono”, se aspirássemos nessa humanidade consumir a média consumida por um americano padrão, seriam necessários três planetas para podermos viver.

O DESPERDÍCIO DE VIDA

Quer dizer, nossa civilização montou um desafio mentiroso e assim como vamos, não é possível para todos manter esse sentido de desperdício que se deu à vida. Na verdade, é cada vez mais difundido como uma cultura de nosso tempo, sempre dirigida pela acumulação e pelo mercado.

Prometemos uma vida de extravagância e desperdício, e no fundo ela se constitui em uma contagem regressiva contra a natureza, contra a humanidade como futuro. Civilização contra a simplicidade, contra a sobriedade, contra todos os ciclos naturais.

“CIVILIZAÇÃO” CONTRA O AMOR

Pior: civilização contra a liberdade que supõe ter tempo para viver as relações humanas, o único transcendente, o amor, a amizade, aventura, solidariedade, família. Civilização contra o tempo livre não paga, que não se compra, e que nos permite contemplar e esquadrinhar o cenário da natureza.

Arrasamos a selva, as selvas verdadeiras, e implantamos selvas anônimas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com caminhadores, à insônia com comprimidos, à solidão com equipamentos eletrônicos, porque somos felizes alijados do ambiente humano.

Cabe fazer esta pergunta, fugimos de nossa biologia que defende a vida por si própria, como causa superior, e a suplantamos pelo consumismo em função da acumulação.

A política, eterna mãe do acontecer humano, ficou limitada à economia e ao mercado, de pulo em pulo a política não pode mais do que se perpetuar, e como tal delegou o poder e se entretém, aturdida, lutando pelo governo. Malfadada marcha da história humana, comprando e vendendo tudo, e inovando para poder negociar de algum modo, o que é inegociável. Há marketing para tudo, para os cemitérios, os serviços fúnebres, as maternidades, para pais, para mães, passando pelas secretarias, os carros e às férias. Tudo, tudo é negócio.

No entanto as campanhas de marketing caem deliberadamente sobre as crianças, e sua psicologia para influir sobre os mais velhos e ter no futuro um território assegurado. Sobram provas destas tecnologias bastante abomináveis que as vezes, conduzem às frustrações e muito mais.

O “homenzinho médio” de nossas grandes cidades,vagando entre as financeiras e o tédio rotineiro dos escritórios, as vezes temperados com ar condicionado. Sempre sonha com as férias e a liberdade, sempre sonha em terminar de pagar as contas, até que um dia, o coração para, e adeus. Haverá outro soldado cobrindo as garras do mercado, assegurando a acumulação. A crise se faz impotência, a impotência da política, incapaz de compreender que a humanidade não foge, nem fugirá do sentimento de nação. Sentimento que quase está encrustado em nosso código genético.

UM MUNDO SEM FRONTEIRAS

Hoje, é tempo de começar a esculpir um mundo sem fronteiras. A economia globalizada não tem mais condução do que o interesse privado, de muitos poucos, e cada estado nacional olha sua estabilidade continuista, e hoje a grande tarefa para nossos povos, em minha humilde maneira de ver, é o todo.

Como se isso fosse pouco, o capitalismo produtivo, francamente produtivo, está meio prisioneiro na caixa dos grandes bancos. No fundo são o auge do poder mundial. Mais claro, acreditamos que o mundo demanda a gritos regras globais que respeitem as conquistas da ciência, que abundam. Mas não é a ciência que governa o mundo. São necessárias, por exemplo, uma grande agenda de definições, quantas horas de trabalho e toda a Terra, como converter as moedas, como financiar a luta global por água e contra os desertos.

SOLIDARIEDADE COM OS OPRIMIDOS

Como se recicla e se pressiona contra o aquecimento global? Quais são os limites de cada grande esforço da humanidade? Seria imperioso conseguir consenso planetário para desencadear solidariedade aos mais oprimidos, castigar impositivamente o desperdício e a especulação. Mobilizar as grandes economias, não para criar descartáveis, com obsolescência programada, mas sim com bens úteis, sem fidelidade, para ajudar a levantar aos pobres do mundo. Bens úteis contra a pobreza mundial. Mil vezes mais rentável que fazer guerras. Derrubar um neo-keynesianismo útil de escala planetária para abolir as vergonhas mais flagrantes que existem nesse mundo.

A POLÍTICA E A CIÊNCIA

Talvez nosso mundo necessite de menos organismos mundiais, esses que organizam os foros e conferências, que servem muito às cadeias hoteleiras e às companhias aéreas, no melhor dos casos, mas que ninguém recolhe nada e transforma em decisões…

Necessitamos sim mascar muito o velho e eterno da vida humana junto à ciência, essa ciência que se empenha pela humanidade não para se tornar rica; com eles, com homens de ciência, primeiros conselheiros da humanidade, estabelecer acordos pelo mundo inteiro. Nem os grandes Estados nacionais, nem as transnacionais e muito menos o sistema financeiro deveria governar o mundo humano. Mas sim a alta política entrelaçada com a sabedoria científica, aí está a fonte. Essa ciência que não se importa com o lucro, mas que olha para o futuro e nos diz coisas que não atendemos. Quantos anos faz que nos disseram determinadas coisas que não nos demos por inteirados? Creio que temos que convocar a inteligência ao comando da nave acima da terra, coisas desse estilo e outras que não pude desenvolver nos parecem imprescindíveis, mas requereriam que o determinante fosse a vida, não a acumulação.

NÃO SOMOS TÃO ILUDIDOS

Obviamente, não somos tão iludidos, estas coisas não irão ocorrer, nem outras parecidas. Resta-nos muitos sacrifícios inúteis por diante, muito remendar consequências e não enfrentar as causas. Hoje o mundo é incapaz de criar uma regulação planetária à globalização e isto se dá pelo enfraquecimento da alta política, isso que se ocupa do todo. Por último vamos assistir ao refúgio dos acordos mais ou menos “reclamáveis”, que vão reclamar um mentiroso livre comércio interno, mas que no fundo vão terminar construindo parapeitos protecionistas, supranacionais em algumas regiões do planeta. Por sua vez, vão crescer ramos industriais importantes e serviços, todos dedicados a salvar e melhorar o meio ambiente. Assim vamos nos consolar por um tempo, vamos estar entretidos e naturalmente tudo vai continuar como está para manter a rica a acumulação, para regojizo do sistema financeiro.

IR CONTRA A ESPÉCIE

Continuaram as guerras e portanto os fanatismos até que talvez a mesma natureza chame a ordem e faça inviável nossas civilizações. Talvez nossa visão seja demasiado crua, impiedosa e vemos o homem como uma criatura única, a única que há sobre a terra capaz de ir contra sua própria espécie. Volto a repetir, porque alguns chamam a crise ecológica do planeta, é consequência do triunfo avassalador da ambição humana. Esse é nosso triunfo, também nossa derrota, porque temos impotência política de enquadrarmos em uma nova época. E contribuímos a construir nos damos conta.

Por quê digo isso? São dados nada mais. O certo é que a população se quadruplicou e o PIB cresceu pelo menos vinte vezes no último século. Desde 1990 aproximadamente a cada seis anos se duplica o comércio mundial. Poderíamos seguir anotando os dados que estabelecem a marcha da globalização. O que está ocorrendo conosco? Entramos em outra época aceleradamente mas com políticos, enfeites culturais, partidos, e jovens, todos velhos diante da pavorosa acumulação de mudanças que nem sequer pudemos registrar. Não podemos manejar a globalização, porque nosso pensamento não é global. Não sabemos se é uma limitante cultural ou estamos chegando aos limites biológicos.

OS EFEITOS DA GANÂNCIA

Nossa época é portentosamente revolucionária como não conheceu a história da humanidade. Mas não tem condução consciente, ou menos, condução simplesmente instintiva. Muito menos, todavia, condução política organizada porque nem sequer temos tido filosofia precursora ante a velocidade das mudanças que se acumularam.

A ganância, tão negativa e tão motor da história, isso que empurrou o progresso material técnico e científico, que fez aquilo que é nossa época e nosso tempo e um fenomenal avanço em muitas frentes, paradoxalmente, essa mesma ferramenta, a ganância que nos empurrou a domesticar a ciência e transformá-la em tecnologia nos precipita a um abismo brumoso. A uma história que não conhecemos, a uma época sem história e estamos ficando sem olhos nem inteligência coletiva para seguir colonizando e perpetuarmos transformando-nos.

O QUE É O TODO?

Porque se uma característica tem este bichinho humano, é que é um conquistador antropológico. Parece que as coisas tomam autonomia e as coisas submetem aos homens. Por um lado ou outro, sobram ativos para vislumbrar essas coisas e em todo caso, vislumbrar o rumo. Mas nos é impossível coletivizar decisões globais por esse todo. Mais claro, a ganância individual triunfou grandemente sobre a ganância superior da espécie. Esclarecemos: o que é o todo? O que é essa palavra que utilizamos?

Para nós é a vida global do sistema terra incluindo a vida humana com todos os equilíbrios frágeis que fazem possível que nos perpetuemos. Por outro lado, mais fácil, menos opinável e mais evidente. Em nosso ocidente, particularmente, porque daqui viemos ainda que venhamos do sul, as repúblicas que nasceram para afirmar que os homens somos iguais, que ninguém é mais do que ninguém, que seus governos deveriam representar o bem comum, a justiça e a equidade. Muitas vezes, as repúblicas se deformam e caem em esquecimento da gente corrente, a que anda pelas ruas, o povo comum.

As repúblicas não foram criadas para vegetar em cima do rebanho, mas sim o contrário, são um grito na história para fazer funcionais à vida dos próprios povos e, portanto, as repúblicas se devem às maiorias e a lutar pela promoção das maiorias.

A CULTURA CONSUMISTA

Pelo que for, por reminiscências feudais que estão aí em nossa cultura; pelo classismo dominador, talvez pela cultura consumista que nos rodeia a todos, as repúblicas frequentemente em suas direções adotam um viver cotidiano que exclui, que coloca distância com o homem da rua.

De fato, esse homem da rua deveria ser a causa central da luta política na vida das repúblicas. Os governos republicanos deveriam se parecer cada vez mais a seus respectivos povos na forma de viver e na forma de se comprometer com a vida.

O fato é que cultivamos arcaísmos feudais, cortesanismos consentidos, fazemos diferenciações hierárquicas que no fundo minam o melhor que existe nas repúblicas: que ninguém é mais do que ninguém. O jogo destes e outros fatores nos retém na pré-história. E hoje é impossível renunciar a guerra quando a política fracassa. Assim se estrangula a economia, desperdiçamos recursos.

DOIS MILHÕES POR MINUTO

Escutem bem, queridos amigos: em cada minuto do mundo se gastam dois milhões de dólares com orçamento militar nesta terra. Dois milhões de dólares por minuto com orçamento militar!! Na pesquisa médica (de todas as doenças que avançaram grandemente, e é uma benção para a promessa de viver alguns anos mais), essa pesquisa apenas equivale a quinta parte da pesquisa militar.

Este processo do qual não podemos sair, é cego. Assegura ódio e fanatismo, desconfiança, fonte de novas guerras e isto também, desperdício de fortunas. Eu sei que é muito fácil, poeticamente, autocriticarmos, pessoalmente. E creio que seria uma inocência nesse mundo desejar que ali existam recursos para economizar e gastar em outras coisas úteis. Isso seria possível, outra vez, se fossemos capazes de exercitar acordos mundiais e prevenções mundiais de políticas planetárias que nos garantissem a paz e que deem, aos mais fracos, garantias que não temos. Aí haveria enormes recursos para recortar e atender as maiores vergonhas sobre a Terra. Mas basta uma pergunta: nesta humanidade, hoje, aonde se iria sem a existência dessas garantias planetárias? Então cada país faz acordos de armas conforme sua magnitude e aí estamos porque não podemos pensar como espécie, mas apenas como indivíduos.

As instituições mundiais, particularmente hoje vegetam à sombra consentida das dissidências das grandes nações que, obviamente, querem reter sua cota de poder.

O PAPEL DA ONU

Bloqueiam a essa ONU que foi criada com uma esperança e como um sonho de paz para a humanidade. Mas pior ainda, a desassociaram da democracia no sentido planetário porque não somos iguais. Não podemos ser iguais em um mundo onde existem mais fortes e mais fracos. Por tanto esta é uma democracia planetária ferida que está cerceando a história de um possível acordo de paz mundial, militante, combativo e que verdadeiramente exista. E então, curamos doenças lá onde elas eclodem e se apresentam segundo parecem a algumas das grandes potencias. Os demais olhamos de longe. Não existimos.

Amigos, eu creio que é muito difícil inventar uma força pior que o nacionalismo chauvinista das grandes potencias. A força que é liberadora dos fracos. O nacionalismo, pai dos processos de descolonização, que é formidável para os fracos, se transforma em uma ferramenta opressora nas mãos dos fortes e que, nos últimos 200 anos, tivemos exemplos por todas as partes.

NOSSO PEQUENO EXEMPLO

A ONU, nossa ONU definha, se burocratiza por falta de poder e de autonomia, de reconhecimento e sobretudo de democracia em direção aos mais fracos que constituem a maioria absoluta do planeta. Dou um pequeno exemplo, pequenino. Nosso pequeno país tem em termos absolutos, a maior quantidade de soldados em missões de paz dos países da América Latina espalhados pelo mundo. E lá estamos, onde nos pedem que estejamos.

Mas somos pequenos, fracos. Onde se repartem os recursos e se tomam as decisões, não entramos nem para servir o café. No mais profundo de nosso coração, existe um enorme anseio de ajudar para que o homem saia da pré-história. Eu defino que o homem enquanto viva em clima de guerra, está na pré-história, apesar dos muitos artefatos que possa construir.

AS SOLIDÕES DA GUERRA

Até que o homem não saia desta pré-história e arquive a guerra como recurso quando a política fracassa, essa é a longa marcha e o desafio que temos por diante. E o dizemos com conhecimento de causa. Conhecemos as tristezas da guerra. No entanto, esses sonhos, esses desafios que estão no horizonte implica lutar por uma agenda de acordos mundiais que comecem a governar nossa história e superar passo a passo, as ameaças à vida. A espécie como tal, deveria existir um governo para a humanidade que supere o individualismo e lute por recriar cabeças políticas que trilhe o caminho da ciência e não apenas aos interesses imediatos que não estão governando e afogando.

Paralelamente temos que entender que os indigentes do mundo não são da África ou da América Latina, são de toda a humanidade e esta deve como tal, globalizada, tender a empenhar-se em seu desenvolvimento, para que possam viver com decência por conta própria. Os recursos necessários existem, estão nesse desperdício depredador de nossa civilização.

A BOMBA DE 100 ANOS

Há poucos dias fizeram ali, na Califórnia, em um corpo de bombeiros, uma homenagem a uma bombinha elétrica que há 100 anos está ligada. Cem anos que está ligada, amigo! Quantos milhões de dólares nos tiraram do bolso fazendo deliberadamente porcarias para que as pessoas comprem, comprem e comprem.

Mas esta globalização de olhar para todo o planeta e por toda a vida significa uma mudança cultural brutal. É o que nos está requerendo a história. Toda a base material mudou e oscilou, e os homens, com nossa cultura, permanecemos como se não houvesse ocorrido nada e em lugar de governar a civilização, esta é que nos governa. Há mais de 20 anos que discutíamos a humilde taxa Tobin. Impossível aplicá-la ao nível do planeta. Todos os bancos do poder financeiro se levantam feridos em sua propriedade privada e que sei lá eu quantas coisas mais. No entanto, isso é o paradoxal. No entanto, com talento, com trabalho coletivo, com ciência, o homem passo a passo é capaz de transformar em verde aos desertos.

O HOMEM É CAPAZ

O homem pode levar a agricultura ao mar. O homem pode criar vegetais que vivam com água salgada. A força da humanidade se concentra no essencial. É incomensurável. Ali estão as mais portentosas fontes de energia. Que sabemos da fotossíntese? Quase nada. A energia no mundo sobra se trabalharmos para usá-la com ela. É possível extirpar toda a indigência do planeta. É possível criar estabilidade e será possível às gerações futuras, se lograrmos começar a pensar como espécie e não só como indivíduo, levar a vida à galaxia e seguir com esse sonho conquistador que nós, seres humanos, levamos em nossos genes.

Mas para que todos esses sonhos sejam possíveis, necessitamos governarmos a nós mesmos ou sucumbiremos porque não somos capazes de estar a altura da civilização que fomos desenvolvendo.

Este é nosso dilema. Não nos entretenhamos apenas remendando consequências. Pensemos nas causas de fundo, na civilização do desperdício, na civilização do use-tire que o que está tirando é tempo da vida humana mal gasto, derrotando questões inúteis. Pensem que a vida humana é um milagre. Que estamos vivos por milagre e nada vale mais do que a vida. E que nosso dever biológico acima de todas as coisas é respeitar a vida e impulsioná-la, cuidar dela, procriá-la e entender que a espécie é a nossa gente.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

CRÔNICA MUDANA



O computador e o analfabeto

 Gilberto Felisberto Vasconcellos

Álvaro Vieira Pinto critica o deslumbramento contemporâneo com a tecnologia, livrando-a da condição de panacéia ou de causadora dos males modernos

Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de "A Salvação da Lavoura" (Casa Amarela). Artigo publicado no caderno Mais! da Folha de SP:

O Conceito de Tecnologia", sem sombra de exagero, monumental não por ser copioso em número de páginas é o maior acontecimento editorial brasileiro das últimas décadas, porque versa com engenho e estilo a respeito de uma coisa que pouquíssima gente sabe: tecnologia.

Karl Marx intentou escrever uma história crítica da tecnologia, só que não teve tempo de fazê-lo.

Darcy Ribeiro deixou alguma coisa em seu "O Processo Civilizatório" (Cia. das Letras), porém quem abordou a questão da tecnológica do ponto de vista filosófico foi Álvaro Vieira Pinto, uma das mais iluminadas inteligências do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), fundado em 1955 e extinto em 1964, que denunciou o mata-borrão de estrelas e medalhões estrangeiros:

"Fulano de tal representa Derrida, sicrano vai de Wittgenstein, aquele outro responde por Adorno"; todavia é difícil encontrar alguém pensando com a sua própria cabeça, sozinho ou acompanhado.

"No país subdesenvolvido, o filósofo, como só registra o que foi pensado e dito nos centros metropolitanos, pode ser chamado de tabelião das idéias. A cultura, em conjunto, constitui o cartório dos acontecimentos alheios."

A pergunta foi por ele colocada: o que significa ser filósofo num país pobre e carente de soberania nacional?

"No mundo subdesenvolvido e na maior extensão analfabeto, o filósofo, para pensar autenticamente a realidade, precisa ser analfabeto." 

O paradoxo de um filósofo "analfabeto alfabetizado" não é provocação da parte de um autor que leu tantos livros quanto Hegel ou Mallarmé.

O editor César Benjamin teve a sorte de encontrar as 1.400 páginas datilografadas no RJ. Essas páginas inéditas poderiam ter sido perdidas, e o fato de serem editadas em livro agora é motivo de júbilo para os leitores.

Depois da publicação deste livro a cultura brasileira tem de ser repensada em sua totalidade material e espiritual. As reflexões de Álvaro Vieira Pinto sobre a tecnologia, a técnica e a cibernética têm alcance universal.

Ele rompe o preconceito de que a filosofia em sua essência é grega e que somente a Europa tem acesso à visão universal do pensamento filosófico.

O autor não demoniza a tecnologia, a "ciência da técnica", como um dispositivo anti-humanista e anti-espiritual, tampouco embarca na mistificação, tão assídua nos dias de hoje, de achar que o computador seja o motor da história, que a técnica ou cibernética decida o destino da humanidade, como se houvesse um juízo final dirigido pelos computadores de Bill Gates.

Ideologia

Hegeliano-marxista, Álvaro Vieira Pinto acredita que a técnica é mediação, e que o homem é o verdadeiro autor de seu destino, e não a tecnologia. 

Ele nega que estaríamos atualmente vivendo numa prodigiosa "era tecnológica", isso simplesmente porque toda época possui a tecnologia a que pode ter acesso. 

Esse deslumbramento traz embutida a falsa idéia de que a história é um produto da técnica; trata-se de uma ideologia das nações metropolitanas e imperialistas para deixar embasbacada a periferia do mundo, conforme se observa nos filmes norte-americanos das últimas décadas em que o computador é invariavelmente o principal protagonista dos enredos.

Merece destaque a reflexão sobre a clivagem entre metrópole e colônia, principalmente porque ela desapareceu do mapa mental contemporâneo. 

Ainda que exerça um raio de ação cada vez mais devastador e abrangente, o imperialismo paradoxalmente tornou-se invisível e inabordável. 

Acredita-se piamente que é a falta de técnica a causa da fome, de modo que chegou o momento de dar técnica a quem passa fome.

A alienação que traz o pacote tecnológico externo é completada pelo investimento do capital estrangeiro.

A transferência de tecnologia é um engano, assim como a importação de tecnologia não leva ao desenvolvimento.

"Tão importante quanto elaborar a teoria do atraso do povo pobre é elaborar a da superioridade das nações metropolitanas", escreveu profeticamente Vieira Pinto.

O sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos nasceu em 1949 em Santa Adélia, interior de São Paulo. Filho de médico sanitarista, seu Zolachio Vasconcellos, e de professora primária, dona Adelaide Felisberto. Em 1968, entrou para o curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP), formando-se em 1972. Da efervescência dos anos de chumbo passou incólume. Nunca se interessou pelo movimento estudantil. Mergulhou nos estudos sobre Escola de Frankfurt, psicanálise, literatura, Karl Marx, György Lukács e teoria da dependência. Considerado aluno prodígio, doutorou-se na mesma universidade em 1977 com a tese A Ideologia Curupira: uma análise do integralismo à luz da obra do professor Fernando Henrique Cardoso.1