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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Poema e Crônica Urbana




Mentira. Si lo hacía de engaños, 
y nada más. Ya está. De otro modo, 
también tú vas a ver 
cuánto va a dolerme el haber sido así. 

Mentira. Calla. 
Ya está bien. 
Como otras veces tú me haces esto mismo, 
pero yo también he sido así. 

A mí, que había tanto atisbado si de veras 
llorabas, 
ya que otras veces sólo te quedaste 
en tus dulces pucheros, 
a mí, que ni soñé que los creyeses, 
me ganaron tus lágrimas. 
Ya está. 

Mas ya lo sabes: todo fue mentira. 
Y si sigues llorando, bueno, pues! 
Otra vez ni he de verte cuando juegues.



Reflexões do Desespero
Nana Carneiro Da Cunha

Ontem eu tava exausta, chorei baldes. O negócio foi forte, tipo histérica, louca, desesperada. Andei pela casa, sentei no chão aos prantos, rezei, acalmei um pouco, desesperei de novo e entrei no chuveiro, meleca escorrendo pra todo lado e o ápice : aquela falta de ar de quem se esqueceu como é que se respira. Tipo assim a coisa tava braba mesmo. Daí parti pro S.O.S. Natureza e fui andar no Jardim Botânico. Cheguei numa arvrona que tem lá e que eu amo, olhei pra cima vendo aquele esplendor imenso e chorei mais baldes. Pensei, caramba essa árvore tá aqui há séculos, impávida, e a realeza dela me acalmou. Sentei numa das raízes e fiquei respirando de olhos fechados. Deu resultado. Melhorei horrores. Fiquei ali sentindo o solzinho do fim de tarde e achei que tinha passado o surto de desespero. Me dei por satisfeita e fui andando pra saída do parque. Passei por uma alameda que dá vista pro Cristo Redentor. E ao avistar aquela montanhona linda com a floresta em baixo e o céu azulíssimo atrás me debulhei de novo... botei os óculos escuros pra não dar muito na vista e segui andando e chorando dessa vez tranquilamente, não tão soluçante. Já tava numa boa, quase cantando quando um guarda veio de bicicleta e disse que o parque tava fechando. Eu disse que sabia e tava indo pra saída mesmo... Foi só abrir a boca pra falar que comecei a chorar de novo. E assim segui até a saída. Dali achei melhor continuar a terapia na Natureza e me embrenhei na mata em direção a cachoeira. Foi lindo porque tive que me concentrar muito no caminho que normalmente é fácil e conhecido, mas que tava um caos por causa da última chuva. Quase me arrependi da idéia quando vi aquele cenário pós torrente mas acabei encarando a parada e virei uma macaca. Não deu tempo mais de chorar. Segui. Suando. A cara vermelha e quente com o esforço da escalada pelos troncos imensos caídos pelo meio da trilha rio acima. Finalmente cheguei na gruta. Não tinha ninguém e já tava quase escurecendo. Entrei. Cantei baixinho, dei mais uma choradinha básica e finalmente um grito daqueles que se você escutar e não souber o que é vai te dar medo. Saí da gruta e fiquei quieta no silêncio da mata. Escutando os bichinhos da noite. Coisa boa de se fazer quando se está meio maluca. O escuro da noite chegando me fez pensar que tava de bom tamanho e comecei a voltar. Cheguei no asfalto já quase noite. Cheguei em casa exausta e bem mais relaxada. Comi um peixinho e dormi profundamente. Hoje acordei ótima e me dei conta de que além de todas as paradas desse fim de ano revolucionário que já bastariam pra uma leve enlouquecida na minha cabecita o que rolou ontem foi a TPM!!! Gente, é realmente incrível o poder dos hormônios na vida de uma pessoa. Mais incrível ainda o poder da Natureza na regeneração da saúde mental e física. Sem ela não consigo seguir. Floresta é a minha droga. E viva os hormônios!!! 


segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

ARTIGO

" A contraofensiva das elites dominantes "




Nils Castro nasceu no Panamá, é doutor em Letras e licenciado em História da Arte. Participou de iniciativas para o reestabelecimento da democracia em diversos países na América Latina. Foi professor em universidades no Panamá, Cuba e México, e diretor do Grupo de Contadora, coletivo integrado por México, Panamá, Colômbia e Venezuela como resposta à retomada política intervencionista norteamericana na América Central. Nils escreve para diversas publicações da região, inclusive do Brasil.


Em fins do século passado tivemos na América Latina um auge dos movimentos sociais, acompanhado de sucessivos êxitos eleitorais de determinadas organizações de esquerda. A conseguinte aparição de significativo numero de governos progressistas no início do século XXI, fez sentir que uma “nova esquerda” tinha entrado em cena. Contudo, esta expressão jornalística, mais que introduzir um novo conceito político, refletiu o fato de que em nossa América a realidade experimentava mudanças de crescente importância, ainda que não seja fácil defini-las em conjunto, pela diversidade de processos nacionais que tornaram factível que esses êxitos e governos acontecessem.

Não obstante, seria ingênuo supor que estes acontecimentos pudessem se repetir e consolidar sem suscitar uma reação dos interesses transnacionais e locais e relacionados com as direitas. Assim o demonstram o golpe militar perpetrado em Honduras em 2009, a conspiração para invalidar o governo da Guatemala em 2010, a intentona golpista cometida no Equador em setembro de 2012, assim como o golpe parlamentar no Paraguai. Em outro plano, as derrotas eleitorais infringidas à socialdemocracia no Panamá em 2009 e à Concertación chilena em 2010, bem como as tramoias que impediram a vitória do PRD mexicano e a participação da candidata da UNE guatemalteca.

Ao mesmo tempo se evidenciou que essa contraofensiva não se limita ao retorno das direitas tal como as conhecemos, mas que inclui vê-las voltar equipadas com outro discurso, formas e métodos e traçando para si metas mais radicais que podem estar acompanhadas tanto de poses socialdemocratas e até “lulistas”[i], como de descarados populismos neofascistas[ii]. Isso não quer dizer que todas as variantes da direita latino-americana já assumiram um novo padrão ou irão adotá-lo em seguida e de modo uniforme, mas que em cada circunstância o implementarão nas formas, combinações e ritmos que melhor às respectivas condições e conjunturas locais.

Não obstante, é necessário ter presente essa mudança, porque é parte de uma evolução que ainda dará bastante o que dizer. Em um mundo onde já não só campeia a globalização mas também a crise, as elites econômicas transnacionais e locais igualmente se adaptam e modificam, mudam suas formas de fazer negócios e associar-se, adotam novas tecnologias e estilos e, com isso, substituem atores e renovam formas e meios de apresentar e reproduzir sua hegemonia e de justificar suas tropelias[iii].

Sua atual acometida faz pensar que estamos diante de um conjunto –multifacetada mas consistente – de características e procedimentos políticos que dão forma a uma direita “nova”, quer dizer, a um adversário que renovou imagens e procedimentos, cuja evolução é preciso examinar.

As esquerdas: um processo incompleto

Os êxitos eleitorais que certas esquerdas latino-americanas alcançaram e mantiveram durante este período constituem uma das consequências das reações populares causadas pela deterioração da situação material e cultural sofrida durante os anos precedentes e, da conseguinte busca por respostas políticas que as grandes massas de latino-americanos começaram a reivindicar. Isto é, o que ocorreu reflete uma mudança no estado de ânimo desses setores populares, manifestado ao voltar a conquistar a oportunidade de reivindicar suas demandas através dos instrumentos democráticos disponíveis.

Trata-se de um fenômeno real, porém temporal e ainda incompleto. Com os matizes próprios das respectivas circunstâncias nacionais, seus êxitos foram alcançados especificamente no campo político, ou político-eleitoral, sem que – pelo menos até o momento – essas esquerdas contassem com as condições culturais e organizativas necessárias para remover as demais estruturas de suas respectivas sociedades.

Esta limitação se deve a que o desgosto dos eleitores ainda não teve oportunidade de amadurecer o desenvolvimento ideológico e organizativo que falta para propor-se objetivos de maior projeção. Em outras palavras, que sua cultura política ainda não elaborou outro modo de questionar a realidade, nem tampouco um projeto confiável com o qual tomar a decisão de transformá-la. Se o que ocorreu reflete uma mudança no estado de ânimo da massa de eleitores, isso significa que ainda não estamos diante de uma nova consciência que se distinga pela consistência de seus postulados, mas diante de uma maneira de raciocinar que em certo momento se expressou como voto de repúdio à situação precedente, mas que mais tarde poderá ir-se à deriva em outras direções.

Contudo, nestes anos as esquerdas latino-americanas demonstraram que – até o atual nível de inquietação e desenvolvimento sociopolítico de seus respectivos povos e região – elas não só adquiriram uma experiência de governo como também provaram ser capazes de administrar o regime capitalista melhor que as próprias direitas. E ao fazê-lo melhoraram significativamente as condições de vida e de participação de milhões de latino-americanos. Ainda que também ao mesmo tempo demonstraram que por esta via ainda não estamos com a capacidade para substituir o regime existente por outra formação histórica mais avançada.

Em outras palavras, agora estamos diante de processos que, por um lado, estão por consolidar-se e ainda sujeitos a uma contraofensiva das direitas. E que por outro, não conduzem, nem espontânea nem automaticamente, por si mesmos, a substituir o capitalismo por outro modo de produção o que obriga a pensar em que é o que falta para alcança-lo[iv].

Uma direita vencida mas não derrotada

Se bem no campo eleitoral o grande capital e seus políticos, partidos e meios de comunicação sofreram um importante revês em vários países latino-americanos, os núcleos medulares das elites econômicas e seus colaboradores políticos conservam seus instrumentos básicos de controle, atuação e poder. Apesar do desconcerto que esse revês lhes causou, eles ainda controlam importantes instrumentos do sistema político existente, bem como o domínio dos meios de comunicação mais poderosos[v]. Quer dizer que nestes anos as esquerdas venceram politicamente as formas tradicionais das direitas, mas não derrotaram a direita “como tal” posto que sua elite socioeconômica manteve as bases de seu poderio e os principais instrumentos midiáticos de sua influência.

Por fim, ao contrabalançar as experiências vividas, os talentos e os meios e comunicação das direitas – hoje hegemonizados pelo capital associado à manipulação neoliberal da globalização – já tiveram oportunidade de decantar e renovar suas alternativas estratégicas e de reatualizar suas opções políticas. Nestes últimos anos sua contraofensiva foi sendo reorganizada tanto nos países onde alguma corrente de esquerda ganhou as eleições ou esteve próximo disso, como também naqueles onde isso ainda está por ocorrer.

Isto não tem sido tramado em vão. O clima é propício para que essa contraofensiva possa afetar as camadas sociais subalternas, e também lhe favorece o ambiente de desencanto e desintegração ideológica e política ocorrida depois do refluxo dos projetos revolucionários dos anos 1970 e o colapso da URSS. Explorando esse ambiente potencializou-se a ofensiva neoconservadora dos anos 1980 e 1990, da qual ainda padecemos importantes sequelas ideológico-culturais. Refluxo e colapso que os representantes do capital transnacional utilizaram para justificar os “reajustes” neoliberais, diante da desorganização das propostas que neste momento poderiam as esquerdas contrapor e a temporal insuficiência dessas esquerdas para assegurar a nossos povos outra alternativa, apesar das calamidades sociais que tais reajustes em seguida começaram a provocar.

Naquela situação, as esquerdas em fins do século enfrentaram a ofensiva político-cultural da direita neoliberal mais com críticas do que com contrapropostas. Enquanto isso, essa direita, por sua vez, aproveitou a conjuntura como a oportunidade para recolher e agitar em seu favor uma parte significativa dos desgostos sociais que pouco antes ela mesma contribuiu para agravar, desorientando as demais forças políticas.

Porém agora não só presenciamos uma mudança nos pretextos, métodos e linguagens da elite dominante e seus operadores políticos, como também podemos observar como seus meios intelectuais e jornalísticos se esforçam por clausurar as esquerdas em uma agenda temática definida conforme o interesse estratégico da “nova” direita. Nesse afã participam paritariamente as agências de notícias, fundações privadas e interesses empresariais dos Estados Unidos e de certos países europeus. Assim sendo, não se trata só de desenvolver as ideias de interesse popular entre os temas em voga mas de colocar em voga os temas que são de maior interesse popular.

Do modelo autoritário ao neoliberal

Ao falar em surgimento de uma “nova” direita não sugerimos que esta seja uma corrente política, ideológica e metodológica homogênea em toda nossa diversidade de países, nem menos ainda que ela expresse um modo de pensar que se possa considerar inédito. Em realidade se trata de um conglomerado em que coincide uma variedade de interesses, cujos objetivos essenciais, métodos e discursos têm precedentes de velha data.

Em seu momento, as velhas direitas latino-americanas – como expressão política das elites socioeconômicas ou “oligárquicas” associadas a uma hegemonia estrangeira – estiveram intimamente ligadas aos regimes de democracia restrita e ditadura militar que predominaram nos anos da Guerra Fria, de duas formas. A primeira, quando diante das mobilizações democratizantes, nacionalistas e progressistas dos anos 1960, elas sem demora correram aos quarteis a solicitar a repressão e instaurar governos autoritários.

A segunda quando, ao amparo dos conseguintes regimes ditatoriais não só resguardaram seus antigos interesses – com frequência ligados à economia agroexportadora tradicional – como em seguida incursionaram nas novas oportunidades do capitalismo dependente, como as do setor financeiro, os serviços internacionais e a exploração de novas tecnologias, campos tanto mais lucrativos em tempos de globalização. Ademais de salvaguardar-se, empreenderam novas atividades, subordinaram-se a outros poderes transnacionais e, em consequência, assumiram novas aspirações e necessidades.

A abertura econômica, a privatização de valiosos patrimônios nacionais e a transferência de importantes empresas do país às companhias estrangeiras ou transnacionais modificaram a natureza das relações da burguesia local com o país e, por consequência, a integração e o perfil dessa burguesia.

Como o tempo não passa em vão, nos anos 1980 já não se podia esconder que as sociedades latino-americanas – assim como o próprio capitalismo – não só tinham crescido como se tornaram mais diversificadas e complexas, enfrentavam outros problemas, davam lugar a novos participantes e requeriam formas de gestão mais avançadas. Assim que demandavam outro gênero de governos, para isto e também para justificar as reformas neoliberais e até infundir esperanças em seus resultados, coordenar sua aplicação e administrar politicamente suas eventuais consequências mais detestáveis.

Como consequência, o processo de mudança das formas de governo não só respondeu ao incremento da complexidade sociocultural dos países, e à complexidade de suas relações com um mundo em globalização, como também à transição que vinha ocorrendo nos núcleos mais dinâmicos das elites econômicas locais e nas suas vinculações com o mercado transnacional. Parte significativa dos proprietários e dos capitais ligados à economia rural e às exportações tradicionais se deslocaram para os negócios característicos da economia de serviços, com substituição de suas conexões, dependências e subordinações internacionais e incorporação de tecnologias que exigiam diferente entorno institucional e instrumentos políticos.

Foi necessário organizar transições controladas, dirigidas a constituir regimes mais legitimados e eficientes e ceder determinados espações (e limites) para a distensão social, a circulação de ideias e a inovação. A disjuntiva estava entre ceder uma democratização dosificada ou ater-se às opções de desordem ou revolução que já começava incubar-se. Isso fez com que a própria elite socioeconômica e seus meios de expressão política levassem a cabo suas respectivas transições para novas formas de governar e de manejar a opinião publica. Onde a oligarquia local ainda estava infensa seus poderosos associados estrangeiros tiveram que intervir mais diretamente na tarefa de empurrar essa evolução[vi].

Nessa necessidade de dipor de novas alternativas políticas, esse foi um período de “modernização e mundialização política” propício, em muitos de nossos países, para as performances da democracia cristã. Como também a de conspícuos partidos e dirigentes com discursos socialdemocrata, vindos uns da reconversão de personalidades liberais e outros da cooptação de ex socialistas abrandados pelos rigores da Guerra Fria[vii].

Do descalabro neoliberal à nova direita

Porém, cedo ou tarde toda transição se esgota. Os novos regimes de democracia pactada e restrita, quase sempre ungidos na tarefa de administrar as reformas neoliberais – as aberturas e privatizações, bem como a redução e desmantelamento das faculdades e dos poderes do Estado, e de suas obrigações assistenciais -, pouco mais tarde tiveram que encarar sua responsabilidade pelos dramas sociais e os descontentamentos que essas reformas agravaram, e seus altos custos políticos. Regimes que durante algum tempo gozaram de bom nome e certa autoridade cívica alguns anos depois foram suplantados pela insatisfação popular[viii].

No final o que restou foi uma ampla percepção não só do descalabro econômico, mas também do descrédito do sistema político instaurado durante a “maré” democrática, inclusive o esgotamento de seus partidos e dirigentes representativos. Generalizou-se a tendência - também instigada pelos grandes meios de comunicação – de responsabilizar o sistema institucional, os partidos e estilos políticos, e aos parlamentos pelas consequências da gestão neoliberal: a fragilidade do emprego, a degradação dos serviços e a seguridade social, o individualismo não solidário, a corrupção, a insegurança nas ruas, a angústia das classes medias, etc.

Claro que, se ao Estado se lhe reduziram as faculdades e meios necessários para regular a economia e intervir em seu curso, isso concedeu ilimitadas liberdades aos investidores e especuladores estrangeiros e nativos para multiplicar os negócios lícitos e também os ilícitos. Com as atividades econômicas e financeiras sem nenhum controle também viria sua desmoralização, de efeitos conhecidos no campo da transnacionalização de velhas e novas formas de delinquência.

A quem culpar, depois, por esses malefícios? O que fazer para acabar com eles de uma vez por todas? Para a direita, os estragos que ela previamente causou agora deverão ser remediados apelando à “mão dura”. Porque para a crônica descuidada ou intencionalmente superficial a culpa está nos maus costumes e nos indivíduos desgarrados, já que é mais fácil culpar o mais aparente que revelar as estruturas sociais ou, melhor dizendo, para evitar que se questione essas estruturas. Assim, enquanto que a reflexão da esquerda investiga opções e constrói propostas, a “nova” direita se satisfaz com argumentos cosméticos e desembaraçados que podem ser mercantilizados sem exigir esforço intelectual.

Porque esta direita vem para salvar tanto os fundamentos como as aspirações do sistema socioeconômico com que ela se identifica, buscando não apenas preserva-lo mas “liberá-lo” do acervo de restrições que o humanismo, a tradição liberal ou as conquistas do movimento popular tenham interposto em qualquer tempo anterior, e a instaurar as formas de hegemonia e de gestão de classe que melhor lhe convenha. Isto é, ela se propõe a desembaraçar a economia capitalista e restabelecer as liberalidades do capitalismo selvagem para recuperar a taxa de lucro. E ela vem determinada a tomar os atalhos mais curtos para executar esse objetivo. Dai o estilo peremptório e “macho” dessa missão, que não quer perder tempo com escrúpulos nem controvérsias.

Tal como essa direita é “nova” por seus pretextos, métodos, estilos e procedimentos, suas intenções e conteúdos são mais reacionários que conservadores. Sem passados ocultos, suas intenções veem dos tempos da acumulação primitiva, anterior al desenvolvimentismo capitalista dos tempos do pós guerra. Mesmo com roupagem cintilante, seu conteúdo já não é velho mas sim antigo.

Se estas apreciações parecem exageradas, os próximos parágrafos ajudarão a avalia-las em seus contextos mais imediatos.

A (contra)revolução conservadora

Esta reatualização do pensamento, a firma e estilo da “nova” direita latino-americana ocorreu sob assídua influência das direitas estadunidense e espanhola, que igualmente se apresentam a si mesmas como as destinadas a garantir um roll back, seja atual ou preventivo.

Como se recordará, nos Estados Unidos a auto denominada “revolução conservadora” propôs acabar com as heranças do New Deal de Franklin D. Roosevelt e a Grande Sociedade de Lyndon B. Johnson. Estas representavam as conquistas sociais alcançadas pelos movimentos sociais e as reivindicações liberais norte-americanas, tais como uma ampliação dos direitos civis, a orientação keynesiana da economia e a regulamentação pública de determinados setores estratégicos como o complexo militar-industrial. Depois de vários decênios, levaram os estadunidenses a encarar o Governo Federal como um amigo paternalista.

Em contraste – de mãos dadas com Margaret Tatcher – o mandato reacionário de Ronald Reagan agitou o slogan de que “o Governo é o problema, não a solução”, e iniciou um brusco recorte das faculdades e serviços do setor público. A ofensiva neoliberal limitou a participação do Estado na economia através da desregulamentação e as privatizações, redução dos impostos para a minoria mais endinheirada e se incrementaram os gastos militares (e as políticas que os justificassem).

Uma política governamental muito ideologizada marginou os sindicatos e demais organizações sociais dos centros de decisão, argumentando que suas demandas eram incompatíveis com a racionalidade econômica e o interesse nacional. Aos que não comungavam com os dogmas de liberalização dos mercados, eliminação do setor público empresarial e equilíbrio orçamentário além dos ciclos econômicos, foram marginalizados dos meios acadêmicos, consultorias, organismos multilaterais e grandes meios de comunicação. Nos anos 1980 a hegemonia dessas teses chegou a ser tão asfixiante que imperaram como pensamento único, ao extremo de que até em nossos países ainda restam zombies que com elas circulam.

Não obstante, a “revolução” conservadora por fim perdeu folego, depois de afundar os Estados Unidos no maior déficit fiscal da história, gerar um aumento exponencial da desigualdade e exclusão sociais, e provocar uma sequência de crises financeiras que, como consequência da globalização tiveram efeitos de abrangência internacional. Na Inglaterra tanto como nos Estados Unidos, o desencanto social decidiu as seguintes eleições a favor da oposição. Mesmo assim, a volta dos democratas ao governo estadunidense e dos trabalhistas britânicos mostrou quanto essa “revolução” conservadora tinha afetado a cultura política das elites dominantes em ambas nações. Os governos de Tony Blair e Bill Clinton respeitaram as teses do conservadorismo conformando-se com adoçá-las com paliativos, no que Joaquin Estefanía qualificou como “um tatcherismo e um reaganismo de face humana”[ix].

Os “neocons”: a contrarrevolução permanente

Enquanto o Partido Democrata governou, os artífices estadunidenses da “revolução” conservadora permaneceram atrincheirados em diversas fundações e think tanks financiados por grandes transnacionais. E nesse lapso elaboraram o chamado Projeto para um novo século americano, sua proposta doutrinaria para lançar uma grande ofensiva neoconservadora para o século XXI – de onde lhes saiu o apelativo de neocons -.

Personagens como Cheney, Wolfowitz, Perle, Rumsfeld, Rice, Ashcroft, Kristoll e Kagan, junto com outros maquinadores do conservadorismo dos anos 1980, adotaram a George W. Bush como seu candidato, submeteram o “partido das ideias” ao “partido dos negócios” e ajudaram a derrotar a candidatura do democrata All Gore apesar de ter tido votação majoritária. Conceberam sua missão como uma cruzada dirigida a implantar uma era conservadora no plano cultural e moral, a erradicar a concepção laica da vida – desde a obrigatoriedade da reza nas escolas públicas até a proscrição da teoria de Darwin -, a combater o igualitarismo, o ecologismo e o feminismo, e a entronizar a prominência da segurança do estado sobre as liberdades civis.

Para impor essa nova era, os neocons idealizaram essa cruzada como uma contrarrevolução permanente destinada a impulsionar e consolidar sua perpetuidade[x]. Seu afã foi (e é) reverter o enfraquecimento da hegemonia estadunidense e a decadência de sua concepção de democracia para “restaurar” um corpo social ordenado, disciplinado e hierarquizado. Daí sua pressa por implementar algumas das principais requerimentos da “nova” direita: traduzir o sentimento de incerteza causada pela globalização e a crise a uma situação de temor coletivo pela segurança; converter as controvérsias políticas e socioeconômicas em conflitos étnico-culturais e religiosos; construir “inimigos” e ameaças que justifiquem generalizar medidas de exceção, e desqualificar sistematicamente a toda crítica e alternativa política.

Seu objetivo é varrer as restrições que as passadas reformas liberais e movimentos sociais antepuseram ao capitalismo selvagem. Esforçaram-se por beneficiar as grandes corporações, instigar o fundamentalismo cristão e entronizar a noção norte-americana de civilização e democracia por qualquer médio, inclusive o militar. O apogeu de sua influencia foi coroado com o máximo de aproveitamento da oportunidade oferecida pelos brutais atentados do 11 de setembro, que lhes facilitaram ampliar o controle sobre os meios de comunicação, regredir as liberdades públicas e desatar as guerra contra o Iraque e o Afeganistão.

A variante espanhola

A direita espanhola, por sua vez, tem na América Latina uma trajetória que vem desde os tempos da “hispanismo” franquista (de Francisco Franco) e abarca duas grandes experiências contrarrevolucionarias. A primeira remonta ao “levantamento” fascista contra a democrática República Espanhola e a sangrenta repressão que veio depois. Sua influencia em nossa América se prolongou em colaboração com as “oligarquias” que então dominavam em nossos países e com grande parte da hierarquia da Igreja católica da época.

A segunda deriva do papel que a direita espanhola assumiu depois da transição democrática e a europeização, em que voltou a se conceber como destinada a reverter os progressos sociais e políticos que os povos de seu país conseguiram recuperar durante o processo pós franquista. Esta “nova” direita aparece menos vinculada à hierarquia eclesiástica e dotada de uma linguagem mais contemporânea e midiática, em correspondência com seu vínculo com uma classe empresarial mais cosmopolita, em que os operadores das empresas transnacionais – e especialmente as espanholas – têm importante presença.

Também contribui para este esforço o fato de que na América Latina (como na Espanha) as velhas formas de hegemonia política e governabilidade estão muito questionadas, como demonstra a crise dos velhos partidos e a emergência de governos progressistas. No interesse de remoçar os métodos e estilos políticos a direita espanhola assessora e auxilia a suas congêneres latino-americanas, ao extremo de animar a mudança de nome de vários partidos conservadores e democrata-cristãos da região que agora, na moda de seu irmão mais velho peninsular passaram a partidos “populares”.

A preocupação diante da perda de eficácia dos sistemas políticos vigentes, de seus partidos e das instituições parlamentares – bem como diante da superficialidade dos meios de comunicação com relação às novas demandas sociais -, levou a buscar novos enfoques. Na América Latina a “nova” direita agora apela a se apresentar como uma opção antipolítica. Isto é, fazer-se ver como crítica do sistema estabelecido e, por consequência, como uma força extra-sistêmica supostamente disposta a mudá-lo. Isso obriga a um esforço por se apresentar como a opção para o “esquecido” homem comum, de seus medos e aspirações diante de um sistema político insensível e imóvel, diante do qual ela se promove como a alternativa de “mudança”. Tentativa que a leva a maquilar-se com o perfil populista que José María Aznar recomenda a seus pupilos latino-americanos, além da mera substituição do nome de seus partidos.

A direita norte-americana na hora do chá

A incapacidade do presidente Obama para atual a altura de suas promessas e rápido regresso a várias políticas do governo anterior, constituem motivos adicionais para animar a direita “popular” norte-americana a lhe cobrar o preço pelo revês eleitoral. Para preparar sua ofensiva nas eleições parlamentares de meio período em 2010, foram realizados separadamente os encontros do Tea Party Movement – o ramo mais rústico do fundamentalismo conservador – o do chamado Conservadorismo Constitucional – a direita elegante -.

Ambas as vertentes coincidiram no propósito de desencadear “a mais implacável campanha de descrédito e desgaste contra um governo eleito de que se tenha memória na política norte-americana”[xi], um governo que desde a primeira hora acusaram de “socialista”. Esses encontros mostraram que os neoconservadores não se conformariam com recuperar em seguida o controle do Congresso e logo o da Casa Branca, mais sua decisão de eliminar definitivamente os contrapesos institucionais e legais que anteriormente lhes havia obstruído o caminho ao neofascismo nesse país; ou seja, a mudar todo o sistema.

Muito do linguajar desses dois encontros logo impregnaria o discurso das direitas espanhola e latino-americana.

Sob a regência do presidente da Fundação Heritage, o Conservadorismo Constitucional proclamou a Declaração de Mount Vernon, que recuperou o essencial do Projeto para um novo século americano, de fins doa anos 1990. Esta declaração retoma o clássico recurso de invocar, a sua maneira, os princípios da Declaração de Independência e da Constituição, e usá-los para argumentar que nas últimas décadas esses princípios foram minados e adulterados por sucessivos extravios radicais e multiculturais na política, universidades e cultura estadunidenses. Isto plasma seu repúdio às conquistas obtidas desde meados do século passado, e não apenas às iniciativas que a administração Obama pudesse acrescentar.

Em consequência, a Declaração alega que urge uma “mudança” que volte a por o pais no rumo daqueles princípios. E para isso prega um conservadorismo “constitucional”, dirigido a conseguir um governo de salvação nacional “que garanta estabilidade interna e nossa liderança global”. Entre esses princípios se destacam, claro, não só a liberdade e a iniciativa individuais, mas a irrestrita liberdade de empresa e as reformas econômicas com base nas relações de mercado, ademais da tradicional litania sobre a defesa da família, a comunidade (local) e a fé religiosa.

O que nos coloca diante de um claro apelo não apenas a empreender uma contrarreforma mas a realizar a “contrarrevolução preventiva”[xii], e não só em escala norte-americana mas global, como de depreende da argumentação em que esse apelo se apoia e do dever que este movimento lhe atribui e aos Estados Unidos bem como da natureza da potencia em cujo nome se proclama esse relançamento de um “destino manifesto”.

Os meios: retóricas por realidades

O perfil populista da “nova” direita é reforçada através de seu persistente interesse em explorar os meios e as técnicas de comunicação e publicidade massivas como principal instrumento político, no lugar das debilitadas formas tradicionais de gestão político-eleitoral. O modo de fazer reflete sua afeição pelo estilo norte-americano para aproveitar os instrumentos midiáticos. Na América Latina, esta direita se apoia especialmente nesse recurso e o assume com assessoria de especialistas norte-americanos e de latino-americanos formados nas escolas estadunidense de pesquisa e manejo da opinião pública.

Hoje vivemos em meia a demandas e tensões sociais más complexas e dinâmicas que as existentes quando se formaram os atuais sistemas de representação e manejo político. Os procedimentos e partidos tradicionais perderam a confiança pública, enquanto que os meios de comunicação mais poderosos superam a capacidade dos partidos para contatar a uma massa plural de grupos sociais que carecem de outras vias para perceber e interpretar a realidade. Grande parte da população tem limitações para conhecer os acontecimentos como partes de um processo que a envolve e afeta, e no lutar de ver o conjunto apenas avista as imagens fracionadas que os meios oferecem.

Nestas circunstâncias, o populismo de direita assume a indústria da comunicação como veículo de performance que – substituindo a velha propaganda – entroniza uma retórica destinada a suplantar a realidade, ao mesmo tempo em que alinha os meios de maior penetração como instrumentos de poder político.

As retóricas midiáticas são exploradas como um sucedâneo que acomoda a substitui a realidade efetiva.. Quem domina os meios está em vantagem para impor os temas onde se dirige a atenção de grande parte da sociedade e para qualificar aos atores políticos e os conteúdos em discussão. O predomínio midiático permite destruir ou construir reputações, tanto de ideias e de pessoas como de propostas, assim como ignorar ou falsear opções e fazer que outras prevaleçam. Também permite substituir os temas relevantes com variadas sacadas de trivialidades.

Com esse apoio essa direita pode converter as novas formas de vestir a opção reacionária em uma alternativa mais difundidas “popular’ que as colocadas pelas esquerdas; sobretudo quando estas últimas não souberam renovar e promover suas propostas através de métodos e linguagens mais frescos e persuasivos.

No modelo midiático que articula essa combinação de lugares comuns sedutores coincidem tanto os neocons como os Berlusconi. Sem considerar que esses meios de comunicação “normalmente” são de propriedade – ou estão sob controle – de interesses sociais, econômica e ideologicamente afins às elites que patrocinam as campanhas conservadoras, que por sua vez constituem um conglomerado capaz de alçar as iniciativas de direita por cima dos antigos partidos conservadores.

Com isso finalmente a relação se inverte: o “estado maior” do conglomerado midiático – o “partido” midiático – é quem fixa a agenda para as organizações políticas, revolvendo os termos entre o supremo manipulador informativo e o partido que deve dar a cara por ele.

Como em família

Assim, cabe reconhecer um conjunto de características que as diferentes modalidades locais da “nova” direita em diferentes graus compartilham. Sem esgotar a lista, nem supor que todas estas características sempre estarão presentes em cada caso particular, sobressaem nove atributos comuns.

Procura-se generalizar a atmosfera de descrédito dos atores e organizações políticas conhecidas e se extrapolam as acusações de real ou presumida corrupção, insensibilidade, banalidade ou incompetência dos políticos, de seus partidos e parlamentares e da própria política. Para isso se explora a existência real de não poucos casos de atores e organizações que defraudaram as expectativas populares, para absolutizar o repúdio aos atores políticos e parlamentares e entronizar a imagem de que todos devem ser varridos da cena. Com isso se descarta a existência de líderes honestos e propostas válidas, e da política como atividade confiável para solucionar os problemas sociais. Se avaliza o clima de “todos para a rua” e propiciar sua substituição por outro gênero de agentes, supostamente “apolíticos”, cuja legitimidade corre por conta dos meios mais influentes.
O campo clássico da política é invadido por um personagem da elite empresarial, na direção de seus associados e operadores. O argumento é a suposição de que o estilo de mando da gestão empresarial é mais eficaz e pode ser aplicada à gestão pública. Esta invasão se justifica com o argumento de que tornará menos deliberativa e mais expedita a administração do Estado, como se os processos e confrontos sociais – e as opções de solução política – pudessem ser decretada por um chefe de empresa, como as decisões gerenciais[xiii].
A pretensão e o discurso messiânicos, segundo os quais a perpetuação da ordem sociocultural e econômico “ocidental e cristão” – ou alguma noção equivalente – está ameaçado pelos excessos do legado liberal, a permissividade, a decadência do sistema político ou das ideias socialistas, o que torna necessário uma cruzada preventiva ou corretiva para restaurar os valores tradicionais, reinstaurar a ordem, a disciplina e as hierarquias sociais, reestabelecer a segurança pública e, particularmente, melhorar a rentabilidade do capital para atrair investimentos[xiv].
Não obstante a prioridade da elite econômica que lidera essa direita não necessariamente é controlar o poder político para governar conforme o interesse global de sua classe, mas tomar o poder público para impor seus interesses pessoais ou de grupo, inclusive aos demais setores da burguesia, e até despojá-los, como Ricardo Martinelli, no Panamá. Este propósito inclui apelar sistematicamente ao suborno, chantagem, à intimidação, as penalizações extrajudiciais e o escracho destinado a amedrontar a terceiros, aplicados de forma seletiva, discreta ou ostensível de acordo com as conveniências do momento em que são empregadas.
Adota-se uma retórica e atuação agressivas que se destacam no debate publico como um pacote de advertências e um estilo cesarista e messiânico, para justificar medidas de exceção e instalá-las como rotina de governo. Por exemplo, o reiterado apelo que fazia George W. Bush de citações bíblicas como argumento para impor políticas de exceção e cercear direitos cidadãos com o argumento de combater espantalhos externos como o terrorismo internacional, fantasmas domésticos como o narcotráfico e os imigrantes. Em definitiva o que se combate não é o mau que se menciona mas o espectro construído com o qual o tema se presta para golpear a terceiros, inclusive mais que aos próprios causantes ou atores reais do perigo que se diz querer reprimir[xv].
Para implementar esse cesarismo, destaca o afã obsessivo e imperante por controlar e subordinar os outros Órgãos do Estado e demais instâncias da gestão pública, e concentrar o poder em mãos do Executivo. Adota-se um modo vertical de mando que reduz e estreita os âmbitos de consulta e deliberação, que margina as organizações da sociedade civil e põem em crise a institucionalidade democrática, desconhece seus âmbitos de autonomia, anula a segurança jurídica e desvanece os limites entre o público e o privado. Para isso a “nova” direita – enquanto que extrema direita – não reconhece a legalidade por seus méritos sociais, mas como instrumento que se pode implantar para fins particulares, ou como obstáculo que vale eludir ou remover quando convenha.
Se entroniza uma forma populista de mandar que, com apoio midiático massivo se arroga a representação da massa dos cidadãos anônimos. Espalha entre estes as promessas de ocasião que permitam aparecer diante das câmaras atendendo seus anseios, sem calcular a prioridade e sustentabilidade de tais oferecimentos, nem sua pertinência com relação a uma estratégia de desenvolvimento sustentável. Cultivar midiaticamente a imagem populista leva a apropriar-se dos temas, modismos e personagens de maior rating e instrumentá-los. Como parte do charm exigido, a “nova” direita faz uma prolixa exibição de atitudes, formas de vestir, procedimentos e extravagâncias que a façam se vista como “antipolítica”, mascarando-se com as características de um gênero atípico de liderança – resumidamente anti-sistêmico ou outsider – contrário aos hábitos característicos das instituições e dirigentes tradicionais[xvi].
Redirecionar as insatisfações sociais para outros alvos, escolhidos para a ocasião, o que implica mobilizar uma permanente ofensiva midiática em torno a determinadas ideias-força, selecionadas conforme os objetivos do regime, a conjuntura política a escolher e as características – e vulnerabilidades – dos adversários que se pretende desqualificar. Para isso se seleciona e caracteriza o inimigo a combater (seja a esquerda, os sindicatos, os corruptos, os negro, os judeus, os imigrantes, a delinquência, o terrorismo ou alguma combinação disso tudo) e se lhes dedica a atenção midiática do caso, para justificar medidas punitivas que na prática também afetarão a maioria das demais pessoas. Para isso a “nova” direita elege, estimula e teledirige mal estares reais existente na população e os perfila contra os alvos escolhidos para que sobre eles se canalize o mal estar coletivo[xvii]. Como, ao mesmo tempo, constrói metodicamente a imagem de uma liderança e um propósito desejáveis, tais como “a mudança” , a segurança nas ruas ou o cárcere para os anteriores governantes. Quem domina os meios não necessita explicar a natureza da “mudança” como tampouco provar a culpabilidade dos acusados, posto que os linchamentos midiáticos o dispensa.
Com frequência, a todo o anterior se agrega um persistente afã por anunciar e inaugurar obras ou ações monumentais, não necessariamente imprescindíveis mas sempre de notável impacto visual e alto custo. Esse afã da “nova” direita pelo monumentalismo repete uma característica típica do fascismo, como formas históricas da extrema direita.
O clima e a ocasião oportunos

Qual o transfundo motivador da “nova” direita nas Américas de nossos dias?

A universalização da crise que emergiu em 2008 – que não é só mundial por sua extensão mas também porque tem presença funesta em múltiplos campos da realidade[xviii] – exacerba as incertezas e frustrações próprias da declinação do capitalismo, pelo menos a do capitalismo que conhecemos.

Agregada à falta ou insuficiência de projetos alternativos, a crise acelera sentimentos coletivos de incerteza, pela precariedade do trabalho, da segurança pessoal, da saúde a velhice e de confiança nas expectativas. Na Europa e Estados Unidos, a crise tenciona a relação com pessoas e coletividades de outras etnias e culturas e exacerba o racismo.

Em um ambiente de flutuações econômicas, políticas e socioculturais imprevisíveis, uma plebe despojada e ofendida pelos efeitos da recessão porém extraviada, desloca-se no amplo espectro político de tal maneira que num dia elege a um mandatário e noutro dia o rechaça[xix]. Isso também proporciona ao ambiente psicológico propício ao discurso messiânico, demagogicamente prometedor de “mudanças” e de certezas cosméticas que a “nova” direita oferece pela boca de líderes machos que dizem saber o que fazem e ter a coragem (ou falta de inibições) para realizar imediatamente. Como também uns adversários convenientemente selecionados para quem desviar as insatisfações acumuladas pela situação[xx].

Porém, o autentico motor do assunto está no objetivo de garantir a segurança e a rentabilidade do capital, não só diante da crise mas diante do perigo de que a inconformidade social se traduza em transbordamentos e rebeliões, seja como caos ou como revolução. Quer dizer, o objetivo de proteger o capital adiantando-se a reimplantar as condições de ordem e hierarquização sociais que falta, não só para salvaguardar o regime capitalista, mas também para tirar de seu caminho as restrições que no último séculos limitaram a taxa de lucros: as normas de seguridade social e de direitos sindicais, de direitos a investigar e informar, organizar-se e rebelar-se, etc.

Por conseguinte, detrás dos bastidores o que há é um programa neofascista, mesmo que chamado de outra maneira. A “nova” direita não é conservadora mas extrema direita, tanto por seu projeto econômico como por sua fundamentação ideológica e política. O diferente está na época e no mode de se apresentar, agora equipada com outros instrumentos, os de um fascismo civil vestidos em formas más atraentes, para um público que os meios mantêm mais fragmentado e desmemoriado.

América Latina: uma contenda sobre terreno instável

Em grande parte da América Latina os movimentos e partidos progressistas mantêm a iniciativa política, so que agora se encontram diante dessa ampla contraofensiva de uma direita remoçada. Encontramo-nos diante de uma extensa pluralidade social que está em disputa e – como corresponde em tempos de transição – em que há uma diversidade de opções abertas. Por um lado, essa “nova” direita tende a prevalecer sobre as formações conservadoras tradicionais, mas sem descarta-las. Por outro lado, o panorama das esquerdas é mais variado, como é natural a sua natureza questionadora e criativa, que explora e propõem diversidade de caminhos.

Em nossa América os problemas desatados tanto pelas políticas neoliberais como por seu fracasso se superpõem com os feitos do anterior abandono dos projetos desenvolvimentistas, revolucionários e nacionalistas dos anos 1960 e 1970. E a insuficiência das novas propostas com que enfrentar os tempos que correm. A crise social está muito mais avançada que o desenvolvimento de novas propostas político-ideológicas.

Depois de tantos anos de insatisfações as pessoas estão fartas, sem que isso signifique que já estão conscientes de suas possíveis opções históricas. Assim sendo, esse difuso e multiforme mal estar tem contribuído a fortalecer o apoio eleitoral às ofertas progressistas, porem não necessariamente está preparado para aceitar alternativas mais radicais. A dor e a irrigação pelas consequências da desigualdade extrema, a precariedade do emprego e a miséria convivem com o descrédito dos partidos e sistemas políticos conhecidos e, ao mesmo tempo, com uma enorme sensação de temor que resulta da falta de certezas e a frustração de expectativas.

É nesse contexto que há que se medir força com uma direita remoçada que entra a disputar no campo político. E que vem com os recursos que já sabemos: predomínio midiático, boa orquestração continental e umas consignas populistas que têm as vantagens de uma brutal simplificação dos problemas e expectativas populares que facilita sua propagação[xxi], ao deslizá-las sobre o limo dos estenótipos do chamado sentido comum.

Em períodos assim o solo político é movediço: abundam os realinhamentos – táticos, programáticos e ideológicos – das direções dos partidos políticos e organizações, como também dos setores sociais que eles pretendem representar. Isto é um espaço propício para qualquer gênero de aventureiros, como antes foi Fujimori e depois Álvaro Uribe, Maurício Macri ou Otto Guevara. Quer dizer, da crise geral não só se pode sir pela esquerda, como também pela direita, como em seu tempo ocorreu com o fascismo depois do impacto da Grande Depressão.

Não obstante, isto não nega mas sim recorda que do lado das forças progressistas subsiste, como a parte visível do iceberg, uma enorme incubadora social espontaneamente orientada à esquerda. Está no seio da própria população. Sem bem seja certo que a crise – econômica, sociopolítica e ideológico-cultural – propicia confusões e recomposições, isso não conduz a um suposto “retorno à direita” tal como hoje predizem certos “analistas”[xxii]. Ao contrário, em nenhum país latino-americano existe um movimento de massas que apoie projetos contrarrevolucionários.

Embora aqui ou acolá a esquerda política ainda não conseguiu renovar e unir suas propostas, a vida sim impulsiona a uma esquerda social que se expande sob a superfície, mesmo não estando ainda conceitual e organizativamente desenvolvida. Se no lugar de perguntas nas pesquisas sobre as siglas dos partidos se perguntasse sobre os problemas diários, constatar-se-ia que é falto que nossos povos derivam à direita. Por isso mesmo as campanhas da “nova” direita se mostram tão necessitadas de remedar os discursos progressistas[xxiii].

O que ocorreu no Chile nas eleições de 2009 não demonstra outra coisa. A Concertación por la Democracia, que governo esse país durante 20 anos, não foi um exemplo de reativação que as esquerdas latino-americanas experimentaram a partir de finais dos anos 1990 em rechaço às teses e sequelas do neoliberalismo. Ao contrário. A Concertación foi produto de uma etapa anterior, de transição pactuada da ditadura à democracia neoliberal (que ocorreu paralelamente à claudicação da socialdemocracia diante do neoliberalismo). Sobrevivência do modelo pinochetista de Constituição, institucionalidade pública, sistema eleitoral e economia de mercado assim o comprova, ao mesmo tempo que representa o fantasma de uma transição democrática que ficou sem terminar.

A articulação desta ofensiva

Ainda que a tradição das esquerdas, o internacionalismo e a solidariedade ocupem um lugar relevante, na atualidade a maior parte de suas organizações latino-americanas consome seus escassos recursos em tarefas nacionais. Nos últimos lustros, depois da ofensiva neoconservadora dos anos 1990, todas não vão além do plano declaratório. As organizações e foros internacionais das esquerdas dão mais oportunidades periódicos para compartilhar reflexões, do que oportunidades para organizar cooperações de maior magnitude.

Na direita se instrumenta um internacionalismo mais prático. Hoje em dia a sustentação de cenários e atividades de instrução e colaboração política internacional é muito mais constante e efetiva para suas organizações. Para isto há um polo articulador: na América Latina todos os partidos direitistas de alguma importância têm vinculações com o Partido Republicano e com fundações e universidades conservadoras dos Estados Unidos, da mesma forma que o Partido Popular espanhol e as fundações que lhe são próximas[xxiv].

Os quadros jovens dos partidos de direita frequentam cursos patrocinados por fundações e universidades conservadoras, particularmente na área relacionada com o marketing político com ênfase na pesquisa e manejo da opinião pública e as técnicas para dirigir as comunicações sociais. Miami alberga um grande conglomerado de instituições e cursos de formação nessas especialidades par os novos quadros da direita latino-americana.

Além disso, é claro que essas jovens promessas político-empresariais estudam nas universidades estadunidenses. Uma notável proporção dos dirigentes das direitas latino-americanas são ex condiscípulos de formação, cursos e pós graduação nessas instituições.

Proliferam igualmente os eventos de capacitação político-ideológica que propiciam encontros das jovens promessas da direita com seus veteranos referenciais europeus, latino-americanos e estadunidenses. José Maria Aznar, por exemplo, sem que seja sequer um intelectual de médio brilho, passa o tempo voando, no sentido literal da palavra.

Por sua vez os mais importantes não só assistem as mesmas conferências nos Estados Unidos ou as proferidas por gurúes estadunidenses em cidades latino-americanas e, como se não bastasse, não poucas vezes em coincidências com reuniões da juntas diretoras e reuniões de acionistas das empresas. Empresas que a cada dia operam em maior número de países da região, e fundem seus respectivos interesses sob o guarda-chuva das transnacionais. Em consequência, não surpreende que pensem a nossa América com os mesmos parâmetros, assumam projetos políticos similares e se ponham de acordo para harmonizar suas atividades políticas.

As esquerdas latino-americanas não dispõem de nada parecido. Se bem seus encontros oferecem oportunidade a meritórios esforços de reflexão, não cobrem esse ambicioso espectro de homologação estratégica.

domingo, 26 de janeiro de 2014

FATOS


Catedrais do Capitalismo

O assunto central das preocupações políticas, sociais, econômicas e eleitorais brasileiras neste mês de janeiro está sendo os rolezinhos. Para os leitores não brasileiros, rolê (em São Paulo se diz rolé), palavra da gíria jovem do Brasil já registrada nos dicionários, significa passear, dar uma volta ou um giro, vagar sem compromisso, espairecer. Rolezinho é um pequeno rolê, mas ganhou outro significado nas últimas semanas: é um passeio de jovens, convocados nas redes sociais, em shopping centers. Um flash mob. A onda começou em 8 de dezembro, quando seis mil adolescentes decidiram passear no Shopping Itaquera, em São Paulo. A polícia foi acionada e houve confusão, o shopping fechou as portas antes da hora.
A partir daí os rolezinhos cresceram no Rio e em São Paulo e estão acontecendo em outras grandes cidades. A mídia e os acadêmicos tentam analisar o “problema”, os governos locais dizem que os jovens têm direito de passear nos shoppings contanto que não quebrem nem roubem, os comerciantes dizem que os shoppings são privados e quem tem obrigação de oferecer espaços de lazer aos jovens é o governo. Os shoppings conseguiram liminares na Justiça prevendo multas de 10 mil reais para quem participar dos rolezinhos, valor em muitos casos superior às indenizações que as empresas pagam por lesar consumidores 
O governo federal acusou a oposição, que pedia providências, de “discriminação social”, já que a maioria dos rolezeiros são ex-pobres em ascensão, a “nova classe média”. Em contraponto, a poderosa Associação Brasileira de Lojistas de Shopping (Alshop) pediu uma reunião com a presidente Dilma para demonstrar o prejuízo que as invasões de adolescentes causam aos centros comerciais. A reunião acontecerá no dia 29, não com a presidente e sim com alguns de seus ministros.
A meninada que promove e opera os rolezinhos são parte dos 40 milhões de brasileiros que, nos últimos 10 anos, elevaram-se da pobreza à classe C, são os ex-excluídos, os emergentes. Ascenderam, consomem, pagam altos impostos, exigem bons serviços de saúde, educação e cultura. E também lazer. Entendem que shopping é lugar para comprar, comer e se divertir (cinemas, teatros). Entendem que não há mais justificativas de discriminação porque estão perfumados (antes “cheiravam mal”) e com roupas de grife (“pano pesado” como eles dizem). Eles não vão abdicar de seu direito de conquistar mais espaço e mais audiência.
O que não se entende é porque os shoppings optam pelo caminho da repressão aos passeios e correrias dos jovens pelos seus corredores e escadas rolantes: afinal, eles são ou serão consumidores. Por medo a saques e arrastões, dizem os comerciantes. Aconteceram alguns poucos atos de vandalismo. As minorias vândalas estão por toda parte: nas manifestações populares, nos black blocs, nas torcidas organizadas. Os rolezeiros chamam a essa gente de “sem noção”, “rato” ou, no seu falar punk, “lóki”, expressão relacionada a bagunça sem sentido, sem lógica.
Uma salada de medos, preconceitos arraigados, conceitos superados, incompetência policial, açodamento jurídico, adequação da questão ao ano eleitoral. Tudo muito parecido com as reações iniciais às gigantescas manifestações de junho. Os rolezinhos são manifestações pequenas, então — por que tanto alvoroço? É que eles têm um aspecto especial, um frisson inesperado: os flash mobs acontecem em shoppings, templos do consumo, as Catedrais do Capitalismo, como definiu o cineasta filósofo Julio García Espinosa. É como um sacrilégio, uma profanação ao símbolo maior de uma civilização. E também um indício de que o tempo em que o mercado organizava a relação com o consumidor está chegando ao fim, cedendo caminho a um tempo em que será o consumidor (com sua parafernália tecnológica) a organizar essa relação. 

Por Orlando Senna

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

CAMPOS DOS GOYTACAZES

Quem eram os ÍNDIOS Goitacazes de Campos?

(Aqui estão essas passagens, encontradas no livro Capitães do Brasil, de Eduardo Bueno, páginas 106 e 107)

Os Goitacazes formaram um grupo indígena, hoje extinto, que habitava no século XVI a região costeira entre o rio São Mateus, no Espírito Santo e a foz do rio Paraíba, no Rio de Janeiro.   ”Goytacaz“ quer dizer corredor, nadador ou caranguejo grande comedor de gentes. 

Fisicamente possuíam pele mais clara; eram mais altos e robustos que os demais índios do litoral. Considerados muito perigosos entre outras características, por sua extraordinária força.

De acordo com o relato de frei Vicente do Salvador (1564-1639), os Goitacazes mais pareciam ”homens anfíbios do que terrestres”, que nenhum branco era capaz de capturar, pois “ao se verem acossados, metem-se dentro das lagoas, onde ninguém os alcança, seja a pé, de barco ou a cavalo. 

“Ainda conforme frei Vicente, os Goitacazes eram capazes de capturar peixes” a braço, mesmo que sejam tubarões, para os quais levam um pau que lhes metem na boca aberta, que não a pode cerrar com o pau; com a outra mão lhe tiram por ela as entranhas, e com elas a vida, e o levam para terra, não tanto para os comerem, como para dos dentes fazerem as pontas de suas flechas, que são peçonhentas e mortíferas”.

Se não comiam tubarões, os Goitacazes eram, segundo o francês Jean de Léry (1534-1611),  ”grandes apreciadores da carne humana que comem por mantimento e não por vingança  ou pela antiguidade de seus ódios”.  Para Léry, a tribo deveria ser considerada a mais bárbara, cruel e indomável das Nações do Novo Mundo: selvagens, estranhos e ferozes, que não só "não conseguem viver em paz entre si, como mantêm guerra permanente contra seus vizinhos e contra estrangeiros".

Embora rival de Léry, o cosmógrafo André Thevet (1502-1592) confirma o relato de seu desafeto.  Thevet afirmou que, após capturar um inimigo, os Goitacazes “imediatamente trucidam e o comem seus pedaços quase crus, como fazem com outras carnes”.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Exposição de Pintura

Lorenzato e o artista holandês Cornelius Keesman

AMADEO LUCIANO LORENZATO
Paulo Laender

São aproximadamente oito horas da manhã de um dia de semana qualquer.
Na casa do bairro Cabana do Pai Tomás aquele senhor de idade repete seu ritual diário:carregando sua pasta, como um executivo se dirigindo ao trabalho, atravessa o portão que separa sua casa do mundo exterior
Uma vez do lado de fora escolhe uma direção e, com seu caminhar cadenciado por um leve mancar , sequela de um acidente de trabalho da época em que pintava paredes, se distancia penetrando no movimento matinal da rua.
Naquela maleta leva seu equipamento de trabalho: seus lápis e cadernos de anotações .
Vai em busca dos motivos que o mundo em volta lhe apresentará e ele os colherá como imagens a serem trabalhadas depois, na intimidade e mistério do seu ateliê.
Ao rever essas imagens no documentário que realizamos sobre sua pessoa e obra, por volta de 1983, recordamos, com emoção, essa rotina, tão simples na sua essência ao mesmo tempo que  profunda e marcante no seu significado, que Lorenzato durante os muitos anos em que ali residiu, diariamente obedeceu com a fidelidade e dignidade que a sua alma dedicou `a arte.
Amadeu Lorenzato  nasceu em Belo Horizonte em 1900 e aqui faleceu em 1995 deixando uma obra e história de vida pouco comuns.
A história desse brasileiro , que se iniciou com a de Belo Horizonte , filho de pais italianos que aqui chegaram para trabalhar na construção da nova capital, revelaria acontecimentos pouco comuns `a maioria dos mortais.
Após uma infância de criança daquele tempo, entre estudos e brincadeiras no bairro Barreiro,`aquela época local de chácaras e sítos,  chega à juventude e  começa a trabalhar como pintor de paredes
Aos vinte anos Lorenzato foi para a Itália acompanhando os pais que para lá retornaram.
Em Roma exerce seu ofício de pintor de paredes e, `a noite, frequenta uma escola de arte onde aprende as técnicas da pintura decorativa ( estuque, “tromp l’oeil” etc.) e se inicia na pintura artística, de cavalete.
Torna-se esperantista o que, aos olhos da época equivaleria a grosso modo a um tipo de “hippismo” dos anos 60/70.
As fotos de então mostram sua bela face com os cabelos abaixo dos ombros e o olhar de sonho a vislumbrar a utopia.
Viaja por toda a Itália e parte da Europa e empreende, de bicicleta,  junto com outro amigo artista e também esperantista, uma viagem de estudos através do leste europeu cujo objetivo final seria a China.
A viagem se interrompe na Turquia por força de um conflito armado que aí os surpreende.
Na precipitação da fuga a dupla se separa e Lorenzato jamais volta a ter notícias deste companheiro.
Ainda nesse período Europeu presencia vários conflitos e revoluções e  viria a suportar os horrores da segunda guerra que o marcaram, e `a sua esposa, profundamente. Esta vindo a sofrer permanentemente de crises nervosas em função da lembrança dos bombardeios por que passaram.
Apesar de todas essas atribulações Amadeu Lorenzato jamais deixa de pintar artisticamente.
Mesmo quando, em Florença, uma bomba destroi sua casa ateliê e toda a sua produção que aí estava.
Enfim ,passada a guerra, em 1948  ele retorna ao Brasil.
Chega pelo Rio de Janeiro e lá consegue seu primeiro trabalho na obra da construção do Hotel Quitandinha em Petrópolis.
Alí permanece por breve período e logo vem para Belo Horizonte onde se estabeleceria até o final de sua vida.
Lorenzato estava então com 48 para 49 anos.
Narramos esses episódios de maneira breve , e certamente incompleta, na intenção de apresentar-lhes um pouco da riqueza de vivências e atribulações que esse sereno senhor enfrentou em seu percurso sem que, pelo que dele pudemos conhecer, em momento algum tais percalços, por mais dolorosos que possam ter sido, o afastaram do seu caminho e amor `a arte.
Uma vez aqui estabelecido voltou a trabalhar como pintor de paredes e a realizar reformas e construções para empresas especializadas da época até que um acidente de trabalho (a queda de uma escada ocasionando fratura múltipla de uma perna ) o impossibilitaria de trabalhar levando–o `a uma aposentadoria precoce.
A partir de então ele se entregou integralmente `a pintura  artística vindo a realizar sua primeira exposição individual  aos 54 anos de idade com Palhano Jr., revelado por Sérgio Maldonado e apresentado por Mari’Stella Tristão.
Tornou-se conhecido e admirado por um público pequeno e seleto na sua maioria composto por artistas e colecionadores atentos .
Passou a exercer ,e ainda exerce, tanto fascínio a ponto de aqueles que o admiram o transformarem, com toda justiça, num artista cultuado.

Desde 1977 quando, através da Galeria Memória, da qual fazíamos parte como sócio, realizamos ali uma memorável exposição de suas obras temáticas, já acompanhávamos e cultuávamos seu trabalho.
A essa época ele era considerado, classificado, pela crítica menos avisada, como pintor primitivo, “naif”, em vista das suas pinturas de favela ou do casario suburbano.
Galeristas de então, equivocadamente, lhe encomendavam quadros desse casario e das favelas imputando-lhe tal especialidade.
Lorenzato, dentro da sua simplicidade os realizava não deixando no entanto de pintar também aquelas outras telas que retratavam o cotidiano popular que o sensibilizava ou ainda, revelar as histórias e os mitos que seu conhecimento universal, agora passando pela ótica popular/brasileira, comparava com o que a vida ao seu redor lhe mostrava.
Surgiram , a nosso ver,dessa segunda experência os seus melhores trabalhos.
Essa exposição realizada então na Galeria Memória por volta de 1977, era composta por telas aos poucos adquiridas durante várias visitas a seu ateliê quando pedíamos-lhe que nos mostrasse esse outro lado do trabalho que não o do “casario”.
Através desses encontros e  convívio nos tornamos mais íntimos da sua pessoa e passamos a conhecer um pouco da sua vida e admirar sua personalidade, sua obra.
Lorenzato pintou de tudo foi um artista cuja sensibilidade e conhecimento captaram, de maneira e estilo particularíssimos ,a expressão da cultura popular em toda sua profundidade.
Foi capaz de, através das coisas mais simples como um varal de roupas, uma colcha de retalhos ou uma fachada policromada, revelar a riqueza artística da gente comum dos bairros periféricos.
Suas pinturas oníricas expressam os acontecimentos e as histórias que ecoam naqueles rincões.
Variados foram os temas em que ele se inspirou para realizar sua obra.
No noticiário cotidiano como por exemplo quando da conquista do espaço pelos astronautas; na flora e fauna brasileiras; na devastação da paisagem, sendo talvez dos primeiros artistas da sua época a manifestar uma preocupação com a ecologia; na figura da mulher através das suas vênus sedutoramente retratadas, pousadas nuas em seus leitos; nos parques de diversão da periferia ou no parque municipal; nos inúmeros e diferenciados pôres de sol; nas marinhas quando de suas viagens ao Espírito Santo e em muitos outros .
As estampas dos tecidos de chitão ou mesmo as pinturas decorativas que o imaginário popular lhe revelaram,  foram parte de inspiração para a criação de telas de um primoroso e estranho abstracionismo geométrico como também as intrincadas tramas que as árvores e a vegetação, como veias ou redes, se interpunham `a sua frente e ele as captou como histórias íntimas, reveladoras de um similaridade inconsciente.
Por fim registramos a  beleza das suas pinturas de flores, suas cores tropicais, o lirismo com que as anotou, o sentimento de delicada sensibilidade por esse brincos da natureza talvez só encontrado por aqui em outro mestre, o maior mestre, Guignard.
Mas ao contrário de Guignard, cuja imprevisão e a tristeza do abandono junto com o alcoolismo precipitaram a sua morte, Lorenzato viveu bastante.
E esta longevidade é uma das suas lições mais importantes que , a nós artistas principalmente, ele passou. A serenidade com que precavidamente administrou sua sobrevivência e a capacidade de adaptação a cada nova situação para que pudesse sempre , de maneira independente, conduzir sua obra.
Lorenzato jamais atingiu valores elevados no mercado, porque?
Acreditamos que sua postura foi sempre de indiferença com o comércio da arte.
Teve a segurança garantida pela aposentadoria dos anos de trabalho como pintor de paredes.
Morou em boa casa e pôde dar aos seus uma relativa qualidade de vida.
Pintou então por verdadeiro prazer e amor `a arte.
Para ele as especulações do mercado não lhe diziam muito.
Jamais imputou valores excessivos`as suas obras.
Essas , `as vezes vendidas por preços irrisórios, para quem quer que demonstrasse gosto e vontade de possui-las.
Assim viveu e morreu sem gerar disputas e sem depender do dinheiro das vendas de suas obras.
E  essa é mais uma das razões pelas quais acentuamos a importância e o fascínio de Lorenzato sobre nós.
Por tudo que foi, e ainda será capaz de nos passar, pela sua serenidade, seu espírito puro e pela obra que, a cada dia , se torna mais reconhecida e merecedora de livros e catalogação completa além, de uma avaliação crítica`a altura da sua importância.
Se os paulistas foram capazes de reconhecer e venerar Volpi como um de seus mestres, o nosso Lorenzato, como aquele ,artista do mesmo sangue brasileiro/italiano e trajetória similar ( pintor de paredes por sobrevivência, morador do subúrbio, e observador da cultura popular como fonte de informação e inspiração para a sua obra) merece sem a menor dúvida o mesmo reconhecimento e o título de mestre, embora conheçamos a tradicional indiferença e economia de aplauso mineiras.
O Centro de Arte Popular - CEMIG,á Rua Gonçalves Dias 1608, belo Horizonte, MG, inicia sua programação de 2014 com a exposição LORENZATO/AMADEO - Celebração do Cotidiano com curadoria e peças do acervo do colecionador Antonio Carlos Martins.
Lá se poderá ver uma coleção primorosa do melhor de sua pintura e uma visita a essa mostra é tudo que recomendamos a todos aqueles que o admiram e aos que ainda não o conhecem.
A esse velhinho de olhar profundo, caminhar meio capenga e sorriso de anjo a nossa gratidão pelo ensinamento e pela existência como artista maior.

Paulo Laender

Janeiro de 2014 (Paulo Laender é arquiteto/escultor/designer)

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

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