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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Vertigem


MUSEU VIRTUAL
http://ht.ly/3Yuf5

Portal japonês de 3D, rotaciona figuras móveis em uma variadade de poses para serem desenhadas. Em japonês e inglês.

http://bit.ly/uUaEG

A história é sobre uma princesa que atrai um garoto para a floresta, para que assim ele aqueça seu coração de gelo. Mas a forma de contar é diferente de tudo o que você já viu.
http://www.theicebook.com/Home.html


O declínio do cinéfilo público
Amir Labaki

A batalha em defesa do Cine Belas Artes, ao que parece perdida com o fechamento (definitivo?) ontem, diz muito mais sobre o estado das coisas no campo da fruição cinematográfica entre nós do que qualquer tentativa de polêmica em torno da tépida luta pelo Oscar deste ano, que se encerra neste domingo. Afinal, tenho me perguntado cada vez mais, por que ainda se vai ao cinema?As novas gerações baixam na internet, e danem-se as leis, os filmes que regularmente mais lhes interessam, muitas vezes antes que estejam estes acessíveis no circuito nacional. Outros preferem o mercado igualmente ilegal de dvds piratas, disponíveis nas calçadas do Oiapoque ao Chuí, por mais precárias tecnicamente sejam essas cópias.Os cinéfilos menos ansiosos e eticamente mais responsáveis não têm problema em esperar a difusão dos filmes no mercado de dvds, de pay-per-view ou mesmo dos canais de televisão por assinatura, com intervalos progressivamente menores entre suas estreias em salas e nessas outras janelas. A transmissão paga pela internet é outro meio de consumo que se tornará mais comum no futuro próximo.A experiência social do espetáculo cinematográfico cobra no Brasil um pedágio cada vez mais elevado, à parte o inflacionado preço dos ingressos, pelo desconforto do convívio concreto com os colegas de sessão. A domesticação da fruição fílmica, pela banalização das enormes TVs e dos potentes “home theaters”, parece ter eliminado a fronteira entre a sala de casa e a sala de cinema. Hábitos privados invadiram a esfera pública, tornando-se normal, por exemplo, falar alto e utilizar celulares durante as projeções.É possível, claro, ver neste fenômeno uma extensão para a sala de cinema da barbarização da vida cotidiana nas cidades. Todos os dias testemunhamos, quando não sofremos diretamente, a selvageria de motoristas que desrespeitam faixas de pedestres, avançam sobre transeuntes, desprezam semáforos e guerreiam outros carros. No mais das vezes, por aqui, são curiosamente aqueles que dirigem os automóveis mais caros e, quase sempre, empunham os celulares de última geração.A privatização egocêntrica da esfera pública tampouco se resume às poltronas dos cinemas. No mais sofisticado restaurante, somos submetidos aos detalhes da agenda pessoal ou das miudezas profissionais de portadores de celulares das mesas ao lado. O assalto à paz e aos bons modos é rotina em qualquer local de compras ou academia de ginástica, pouco importa a região da cidade. A sala de cinema é assim uma lâmina apenas talvez mais transparente colocada ao microscópio para se examinar o esgarçamento da civilidade na vida urbana.Para entendermos o que se passa nos cinemas, para além do espetáculo fílmico específico, antes que ler nossos críticos de predileção, é muito mais iluminador conhecer os argumentos do sociólogo americano Richard Sennett em “O Declínio do Homem Público – As Tiranias da Intimidade” (Companhia das Letras, 1988).No mundo contemporâneo, escrevia ele já em 1974, “originou-se uma confusão entre a vida pública e a vida íntima: as pessoas tratam em termos de sentimentos pessoais os assuntos públicos, que somente poderiam ser adequadamente tratados por meio de códigos de significação impessoal”.Cada pessoa, mergulhada em sim mesma, comporta-se como se fora estranha ao destino de todas as demais. Seus filhos e seus amigos constituem para ela a totalidade da espécie humana. Em suas transações com seus concidadãos, pode misturar-se a eles, sem no entanto vê-los; toca-os, mas não os sente. Existe apenas em si mesma e para si mesma.O parágrafo acima não foi escrito por Sennett sobre a Nova York dos anos 1970 ou por mim sobre a São Paulo atual. É uma citação de Alexis de Tocqueville, datada da primeira metade do século 19 e extraída do segundo volume de “A Democracia na América”, que serve de certeira epígrafe para “O Declínio do Homem Público”.Ao discutir como uma certa “geografia pública” nasceu com a definição dos comportamentos tidos como adequados para a participação numa platéia de teatro da burguesia ascendente nos séculos 18 e 19, Richard Sennett nos convida a esboçar uma releitura para os dias presentes, em que este outro “conjunto de estranhos”, os espectadores das atuais salas de cinema, ajudam a erodir a vida pública, pelas tiranias da intimidades e outras mais.Paradoxalmente, acho que as pessoas ainda vão ao cinema em busca de um certo tipo de comunhão social, provocados por um evento que passa pelas telas mas muito a transcende. Que tantos se empenhem em inviabilizá-la, talvez seja mais um dos processos de inversão pelos quais, segundo Sennett, o narcisismo se dá a conhecer.
25/02/2011

domingo, 27 de fevereiro de 2011

É preciso ler esse livro


UM POUCO SOBRE O CAPITAL

MARX

Terceira Parte

A Forma do Valor

As mercadorias vêm ao mundo sob a forma de valores-de-uso ou de objetos-mercadorias, tais como ferro, tecido, lã, etc. É essa, precisamente, a sua forma natural [vulgar]. Todavia, só são mercadorias na medida em que se apresentam sob um duplo aspecto: como objetos de uso e como suportes de valor. [Só podem, portanto, entrar em circulação como mercadorias ou sob a forma de mercadorias], na medida em que se apresentem sob uma dupla forma: a sua forma natural e a sua forma-valor.
A realidade do valor das mercadorias distingue-se da amiga de Falstaff, a viúva Quickly, pelo fato de não sabermos onde agarrá-la [13]. Em flagrante contraste com a materialidade palpável da mercadoria, não existe um único átomo de matéria que entre no seu valor. Podemos, pois, dar voltas e mais voltas a uma certa mercadoria: enquanto objeto de valor, ela permanecerá inapreensível. No entanto, se nos recordarmos que as mercadorias só possuem valor enquanto são expressão da mesma unidade social - trabalho humano -, que, portanto, o valor das mercadorias é uma realidade puramente social, torna-se evidente que essa realidade social também só se pode manifestar nas transações sociais, nas relações das mercadorias umas com as outras. De fato partimos do valor-de-troca ou da relação de troca das mercadorias para chegar ao seu valor, aí escondido. Temos agora de voltar a essa forma de manifestação do valor.
Toda a gente sabe, mesmo quando não se sabe mais nada, que as mercadorias possuem uma particular forma-valor [comum,] que contrasta das maneiras mais flagrantes com as suas múltiplas formas naturais - é a forma-dinheiro. Importa agora fazer o que a economia burguesa nunca tentou fornecer a gênese da forma-dinheiro, ou seja, seguir o desenvolvimento da expressão do valor contida na relação de valor das mercadorias, desde o seu esboço mais simples e menos aparente até essa forma-dinheiro que salta aos olhos de toda a gente. Com isso se resolve e se faz desaparecer ao mesmo tempo o enigma do dinheiro. Em geral, a única relação entre as mercadorias é uma relação de valor, e a mais simples relação de valor é, evidentemente, a relação de uma mercadoria com outra qualquer mercadoria de espécie diferente. A relação de valor ou de troca de duas mercadorias fornece, portanto, a uma mercadoria, a expressão mais simples do seu valor.

O Fetichismo da Mercadoria e o Seu Segredo

A primeira vista, uma mercadoria parece uma coisa trivial e que se compreende por si mesma. Pela nossa análise mostramos que, pelo contrário, é uma coisa muito complexa, cheia de subtilezas metafísicas e de argúcias teológicas. Enquanto valor-de-uso, nada de misterioso existe nela, quer satisfaça pelas suas propriedades as necessidades do homem. Querem que suas propriedades sejam produto do trabalho humano. É evidente que a atividade do homem transforma as matérias que a natureza fornece de modo a torná-las úteis. Por exemplo, a forma da madeira é alterada, ao fazer se dela uma mesa. Contudo, a mesa continua a ser madeira, uma coisa vulgar, material. Mas a partir do momento em que surge como mercadoria, as coisas mudam completamente de figura: transforma-se numa coisa a um tempo palpável e impalpável. Não se limita a ter os pés no chão; em face de todas as outras mercadorias, apresenta-se, por assim dizer, de cabeça para baixo, e da sua cabeça de madeira saem caprichos mais fantásticos do que se ela começasse a dançar. O caráter místico da mercadoria não provém, pois, do seu valor-de-uso. Não provém tão pouco dos fatores determinantes do valor. Com efeito, em primeiro lugar, por mais variados que sejam os trabalhos úteis ou as atividades produtivas, é uma verdade fisiológica que eles são, antes de tudo, funções do organismo humano e que toda a função semelhante, quaisquer que sejam o seu conteúdo e a sua forma, é essencialmente um dispêndio de cérebro, de nervos, de músculos, de órgãos, de sentidos, etc., do homem. Em segundo lugar, no que respeita àquilo que determina a grandeza do valor - isto é, a duração daquele dispêndio ou a quantidade de trabalho -, não se pode negar que essa quantidade de trabalho se distingue claramente da sua qualidade. Em todas as épocas sociais, o tempo necessário para produzir os meios de subsistência interessou necessariamente os homens, embora de modo desigual, de acordo com o estádio de desenvolvimento da civilização. Enfim, desde que os homens trabalham uns para os outros, independentemente da forma como o fazem, o seu trabalho adquire também uma forma social.
Donde provém, portanto, o caráter enigmático do produto do trabalho, logo que ele assume a forma-mercadoria? Evidentemente, dessa mesma forma. A igualdade dos trabalhos humanos adquire a forma [objetiva da igualdade] de valor dos produtos do trabalho; a medida do dispêndio da força de trabalho humana, pela sua duração, adquire a forma de grandeza de valor dos produtos do trabalho; finalmente, as relações entre os produtores, nas quais se afirmam as determinações sociais dos seus trabalhos, adquirem a forma de uma relação social dos produtos do trabalho.
[O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente em que ela apresenta aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como se fossem características objetivas dos próprios produtos do trabalho, como se fossem propriedades sociais inerentes a essas coisas; e, portanto, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho global como se fosse uma relação social de coisas existentes para além deles.] É por este quiproquó que esse produtos se convertem em mercadorias, coisas a um tempo sensíveis e supra-sensíveis (isto, é, coisas sociais) .Também a impressão luminosa de um objeto sobre o nervo óptico não se apresenta como uma excitação subjetiva do próprio nervo, mas como a forma sensível de alguma coisa que existe fora do olho. Mas, no ato da visão, a luz é realmente projetada por um objeto exterior sobre um outro objeto, o olho; é uma relação física entre coisas físicas. Ao invés, a forma mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho [na qual aquela se representa] não têm a ver absolutamente nada com a sua natureza física [nem com as relações materiais dela resultantes]. É somente uma relação social determinada entre os próprios homens que adquire aos olhos deles a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar algo de análogo a este fenômeno, é necessário procurá-lo na região nebulosa do mundo religioso. Aí os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, entidades autônomas que mantêm relações entre si e com os homens. O mesmo se passa no mundo mercantil com os produtos da mão do homem. É o que se pode chamar o fetichismo que se aferra aos produtos do trabalho logo que se apresentam como mercadorias, sendo, portanto, inseparável deste modo-de-produção.
[Este caráter fetiche do mundo das mercadorias decorre, como mostrou a análise precedente, do caráter social próprio do trabalho que produz mercadorias.]
Os objetos úteis só se tornam em geral mercadorias porque são produtos de trabalhos privados, executados independentemente uns dos outros. O conjunto destes trabalhos privados constitui o trabalho social [global]. Dado que os produtores só entram em contacto social pela troca dos seus produtos, é só no quadro desta troca que se afirma também o caráter [especificamente] social dos seus trabalhos privados. Ou melhor, os trabalhos privados manifestam-se na realidade como facções do trabalho social global apenas através das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por intermédio destes, entre os produtores. Daí resulta que para estes últimos, as relações [sociais] dos seus trabalhos privados aparecem tal como são, ou seja, não como relações imediatamente sociais entre pessoas nos seus próprios trabalhos, mas antes como
[relações materiais entre pessoas e] relações sociais entre coisas.
Somente pela troca é que os produtos do trabalho adquirem como valores, uma existência social idêntica e uniforme, distinta da sua existência material e multiforme como objetos úteis. Esta cisão do produto do trabalho, em objeto útil e objeto de valor, só teve lugar na prática a partir do momento em que a troca adquiriu extensão e importância bastantes para que passassem a ser produzidos objetos úteis em vista da troca, de modo que o caráter de valor destes objetos é já tomado em consideração na sua própria produção. A partir desse momento, os trabalhos privados dos produtores adquirem, de fato, um duplo caráter social. Por um lado, como trabalhos úteis [determinados], devem satisfazer uma determinada necessidade social, afirmando-se, portanto, como partes integrantes do trabalho global, isto é, do sistema de divisão social do trabalho que se forma espontaneamente; por outro lado, só satisfazem as diversas necessidades dos próprios produtores, na medida em que cada espécie de trabalho privado útil é permutável - isto é, é equivalente a - qualquer outra espécie de trabalho privado útil. A igualdade de trabalhos que diferem toto coelo uns dos outros só pode consistir numa abstração da sua desigualdade real, na redução ao seu caráter comum de dispêndio de força humana, de trabalho humano abstrato, e é somente a troca que opera esta redução, pondo em presença uns dos outros, num pé de igualdade, os produtos dos mais diversos trabalhos.
O duplo caráter social dos trabalhos privados apenas se reflete no cérebro dos produtores sob as formas em que se manifestam no tráfico concreto, na troca dos produtos; [o caráter socialmente útil dos seus trabalhos privados, no fato de o produto do trabalho ter de ser útil, e útil aos outros; e o caráter social de igualdade dos diferentes trabalhos" no caráter comum de valor desses objetos materialmente diferentes os produtos do trabalho. Quando os produtores relacionam os produtos do seu trabalho a título de valores, não é que eles vejam neles um simples invólucro sob o qual se esconde um trabalho humano idêntico; pelo contrário, ao considerarem iguais na troca os seus diversos produtos, pressupõem com isso que os seus diferentes trabalhos são iguais. Eles fazem-no sem o saber. Portanto, o valor não tem,escrito na fronte, o que ele é. Longe disso, ele transforma cada produto do trabalho num hieróglifo [social]. Somente com o tempo o homem procurará decifrar o sentido do hieróglifo, penetrar nos segredos da obra social para a qual contribui, pois a transformação dos objetos úteis em valores é um produto da sociedade, tal como o é a linguagem.
A recente descoberta científica, de que os produtos do trabalho, enquanto valores, são [objetiva] pura e simplesmente a expressão do trabalho humano gasto na sua produção, marca uma época na história do desenvolvimento da humanidade, mas não dissipou de modo algum a fantasmagoria que faz aparecer o caráter social do trabalho como uma qualidade das coisas, dos próprios produtos. O que é verdadeiro apenas para esta forma particular de produção, a produção mercantil – a saber, que o caráter [especificamente] social dos mais diversos trabalhos [privados, independentes uns dos outros], consiste na sua igualdade como trabalho humano, e reveste uma forma objetiva, a forma-valor dos produtos do trabalho -, isso parece aos olhos dos homens imersos nas engrenagens das relações da produção de mercadorias, hoje como antes daquela descoberta, tão definitiva e tão natural como a forma gasosa do ar que permaneceu idêntica mesmo depois da descoberta dos seus elementos químicos.
O que na prática interessa em primeiro lugar aos que trocam produtos é saber que quantidade [de produtos alheios] é que obterão em troca dos seus produtos, isto é, as proporções em que eles se trocam. A partir do momento em que estas proporções passaram a ter uma certa fixidez, produzida pelo hábito, elas parecer-lhe-ão provir da própria natureza dos produtos do trabalho. Parece existir nessas coisas uma propriedade de se trocarem em proporções determinadas, tal como as substâncias químicas se combinam com proporções fixas [;por exemplo, uma tonelada de aço e duas onças de ouro têm igual valor, tal como uma libra de ouro e uma libra de ferro têm igual peso, apesar das suas diferentes qualidades físicas e químicas] .
De fato, o caráter de valor dos produtos do trabalho só se fixa quando eles se determinam como grandezas de valor. Estas últimas mudam sem cessar, independentemente da vontade e das previsões [e das ações] daqueles que trocam mercadorias, aos olhos de quem o seu próprio movimento social toma assim a forma de um movimento de coisas, movimento que os dirige em vez de serem eles a dirigi-lo. É necessário que a produção mercantil se tenha completamente desenvolvido, para que da própria experiência decorra esta verdade científica: - que os trabalhos privados executados independentemente uns dos outros, mas inteiramente interdependentes como ramificações espontâneas do sistema da divisão social do trabalho, são constantemente reduzidas à sua medida socialmente proporcional. E por quê? Porque nas relações de troca, acidentais e sempre variáveis, dos seus produtos, o tempo de trabalho social necessário à sua produção impõe-se forçosamente como lei reguladora natural, tal como a lei da gravidade se faz sentir a qualquer pessoa quando a sua casa desaba sobre a sua cabeça. A determinação da grandeza de valor pela duração do trabalho é, portanto, um segredo escondido sob o movimento aparente dos valores [relativos] das mercadorias; mas a sua descoberta, mostrando embora que a grandeza de valor não se determina ao acaso, como poderá parecer, não faz com isso desaparecer a forma que representa esta quantidade como uma relação de grandeza entre as coisas, entre os próprios produtos do trabalho.
A reflexão sobre as formas da vida social, e, por conseguinte a sua análise científica segue um caminho completamente oposto ao do movimento real. Começa depois dos fatos consumados, já com os resultados do processo de desenvolvimento. As formas que imprimem aos produtos do trabalho a marca de mercadorias e que por isso são pressuposto da sua circulação, possuem, também elas, já a fixidez de formas naturais da vida social, antes que os homens procurem dar-se conta, não do caráter histórico destas - que, pelo contrário, se lhes apresentam já como imutáveis-, mas do seu sentido último. Assim, foi somente a análise do preço das mercadorias que conduziu
à determinação da grandeza do valor, e somente a comum expressão das mercadorias em dinheiro levou à fixação do seu caráter de valor. Ora, é precisamente esta forma acabada do mundo das mercadorias, a sua forma-dinheiro, que, em vez de revelar, dissimula o caráter social dos trabalhos privados e as relações sociais entre os produtores. Quando digo que o trigo, um fato, botas se relacionam com o tecido como encarnação geral do trabalho humano abstrato, a falsidade e o absurdo desta expressão saltam logo à vista. Mas quando os produtores destas mercadorias as relacionam ao tecido - ou ao ouro ou à prata, o que vem a dar no mesmo -, como equivalente geral, as relações entre os seus trabalhos privados e o conjunto do trabalho social [global] aparecem-lhes precisamente sob esta forma absurda. [São formas destas que constituem as categorias da economia burguesa.] As categorias da economia burguesa são formas de pensamento que têm uma verdade objetiva, enquanto refletem relações sociais reais, mas estas relações pertencem somente a esta época histórica determinada, em que a produção mercantil é o modo de produção social. Se encararmos outras formas de produção, logo veremos desaparecer todo este misticismo [,sortilégio e magia] que obscurece os produtos do trabalho no período atual.
Uma vez que a economia política gosta das robinsonadas, visitemos então Robinson na sua ilha. Embora naturalmente modesto, nem por isso tem menos necessidades diferentes a satisfazer, sendo-lhe necessário executar trabalhos úteis de várias espécies, por exemplo, fabricar móveis, fazer utensílios, domesticar animais, pescar, caçar, etc. Acerca das suas orações e outras bagatelas semelhantes nada temos a dizer, pois que o nosso Robinson encontra nisso o seu prazer, considerando essas atividades como uma distração tonificante. Apesar da variedade das suas funções produtivas, ele sabe que elas são apenas as diversas formas pelas quais se afirma o próprio Robinson, isto é, são simplesmente modos, diversos de trabalho humano. As próprias necessidades obrigam-no a dividir o seu tempo pelas diferentes ocupações. O fato de uma ocupar um maior, e outra um menor lugar no conjunto dos seus trabalhos, depende da maior ou menor dificuldade que tem de vencer para conseguir o resultado útil que tem em vista. É a experiência que lho ensina, e o nosso homem que salvou do naufrágio relógio, livro-razão, pena e tinta, não tarda,como bom inglês que é, a anotar todos os seus atos diários. O seu inventário contém a descrição dos objetos úteis que possui, dos diferentes modos de trabalho que a sua produção exigiu e,finalmente, do tempo de trabalho que lhe custaram, em média, determinadas quantidades destes diversos produtos. Todas as relações de Robinson com as coisas, que formam a riqueza que ele próprio criou, são de tal modo simples e transparentes que qualquer pobre de espírito as poderia compreender sem grande esforço intelectual. E, no entanto, estão aí contidas todas as determinações essenciais do valor. Passemos agora da ilha luminosa de Robinson para a sombria Idade Média européia. Em vez do homem independente, todos aqui se encontram dependentes: servos e senhores, vassalos e suseranos, leigos e clérigos. Esta dependência pessoal caracteriza tanto as relações sociais da produção material, como todas as outras esferas da vida assentem sobre ela. E é precisamente porque a sociedade se baseia na dependência pessoal que todas as relações sociais nos aparecem como relações entre pessoas. Por isso, os diversos trabalhos e os seus produtos não têm necessidade de assumir uma figura fantástica distinta da sua realidade. Surgem [no mecanismo social] como serviços e prestações em espécie. É também a forma natural do trabalho, a sua particularidade e não a sua generalidade, o seu caráter abstrato, como na produção mercantil -, que é aqui a sua forma [diretamente] social. A corvéia, tal como o trabalho que produz mercadorias, é igualmente medida pelo tempo; mas todo o camponês sabe muitíssimo bem - sem necessidade de recorrer a um Adam Smith - que é uma quantidade determinada da sua força de trabalho pessoal que ele dispense ao serviço do seu senhor. O dízimo a pagar ao cura é bem mais claro que a bênção deste. Como quer que julguemos os papéis que os homens desempenham nesta sociedade [uns perante os outros], as relações sociais das pessoas nos seus trabalhos respectivos afirmam-se com toda a nitidez como as suas próprias relações pessoais, não se dissimulando em relações sociais das coisas, dos produtos do trabalho.
Para encontrarmos o trabalho comum, diretamente social, ou seja, a associação imediata, não precisamos de nos reportar à sua forma natural primitiva [,espontânea], tal como nos aparece no limiar da história de todos os povos civilizados. Temos um exemplo bem perto de nós, na indústria rural e patriarcal de uma família de camponeses que produz, para as suas próprias necessidades, gado, trigo, tecido, linho, vestuário, etc. Estes diferentes objetos apresentam-se à família como os produtos diversos do seu trabalho, não se apresentando reciprocamente como mercadorias. Os diferentes trabalhos que criam estes produtos - agricultura, criação de gado, tecelagem, confecção, do vestuário, etc. - são, desde logo, na sua forma natural, funções sociais, pois que são funções da família que, tal como a produção, de mercadorias, tem a sua [espontânea] divisão do trabalho. São as condições naturais, variáveis com a mudança das estações, bem como
as diferenças de idade e de sexo, que regulam na família a distribuição do trabalho e a sua duração para cada membro da família. O dispêndio das forças de trabalho individuais medido pelo tempo da sua duração aparece aqui diretamente como caráter social dos próprios trabalhos, uma vez que as forças de trabalho individuais funcionam [naturalmente] apenas como órgão da força [de trabalho] comum da família.
Figuremos finalmente uma reunião de homens livres, trabalhando com meios de produção comuns,e despendendo, de acordo com um plano concertado, as suas numerosas forças [de trabalho] individuais como uma única força de trabalho social. Tudo o que dissemos do trabalho de Robinson repete-se aqui; mas agora socialmente e não individualmente. Todos os produtos de Robinson eram seu produto pessoal e exclusivo e portanto objetos de utilidade imediata para ele. O produto total da referida reunião de trabalhadores é um produto social. Uma parte serve de novo como meio de produção, permanecendo social ; mas a outra parte é consumida [ como meio de subsistência] , devendo, por isso, repartir-se entre todos. O modo de repartição variará segundo o organismo de produção da sociedade e o [correspondente] nível de desenvolvimento histórico dos trabalhadores.
Suponhamos, apenas para estabelecer um paralelo com a produção mercantil, que a parte a repartir por cada trabalhador seja proporcional ao seu tempo de trabalho. O tempo de trabalho desempenhará assim um duplo papel. Por um lado, a sua distribuição [socialmente planificada] na sociedade regula a justa relação das diversas funções com as diversas necessidades; por outro lado, serve de medida à parte individual de cada produtor no trabalho comum e, ao mesmo tempo, à porção que lhe compete na parte do produto comum reservada ao consumo. Neste caso, as relações sociais dos homens com os seus trabalhos e com os produtos do trabalho permanecem simples e transparentes, tanto na produção como, na distribuição.
O mundo religioso não é mais do que o reflexo do mundo real. Uma sociedade em que o produto do trabalho toma geralmente a forma de mercadoria e em que, portanto, a relação mais geral entre os produtores consiste em comparar os valores dos seus produtos e, sob esta forma material, em comparar entre si os seus trabalhos privados a título de trabalho humano igual, uma tal sociedade encontra no cristianismo, com o seu culto do homem abstrato - e sobretudo nos seus tipos burgueses, protestantismo, deísmo, etc. -, o complemento religioso mais conveniente. Nos modos de- produção da antiga Ásia, e da antiguidade em geral, a transformação do produto em mercadoria e, portanto, a existência do homem como produtor de mercadorias desempenha apenas um papel secundário que, no entanto, adquire tanto mais importância quanto as comunidades se aproximam da dissolução. Povos mercadores, propriamente, apenas se encontram nos interstícios do mundo antigo, à maneira dos deuses de Epicuro, ou como os judeus nos poros da sociedade polaca. Aqueles antigos organismos sociais são, sob o ponto de vista da produção, infinitamente mais simples e mais transparentes do que a sociedade burguesa; mas eles têm por base, ou a imaturidade do homem individual - por assim dizer, a história ainda não cortou o cordão umbilical que o liga à comunidade natural de uma tribo primitiva -, ou condições de despotismo e de escravagismo. O baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas do trabalho que as caracteriza e que por isso impregna toda a esfera da vida material, a estreiteza das relações dos homens, quer entre eles quer com a natureza, refletem-se idealmente nas velhas religiões nacionais. Dum modo geral, o reflexo religioso do mundo real só poderá desaparecer quando as condições do trabalho e da vida prática apresentarem ao homem relações transparentes e racionais com os seus semelhantes e com a natureza. A vida social cuja base é formada pela produção material e pelas relações que ela implica só se libertará da nuvem mística que a envolve, no momento em que ela se apresente como o produto de homens livremente associados, agindo conscientemente [,segundo um plano,] e senhores do seu próprio movimento social. Mas isto exige um conjunto de condições de existência material [,uma base material] da sociedade, que por sua vez só pode ser produto [espontâneo] de um longo e penoso desenvolvimento.
É certo que a economia política, embora de uma forma muito imperfeita, analisou o valor e a grandeza do valor [e descobriu o conteúdo escondido nessas formas]. Mas nunca pôs a questão de saber [porque é que esse conteúdo reveste essa forma, por que é que o trabalho se representa no valor, e a medida do trabalho pela sua duração na grandeza do valor dos produtos. Fórmulas, que logo à primeira vista mostram pertencer a uma formação social em que a produção e as suas relações comandam o homem em vez de serem por ele comandadas, surgem à sua consciência burguesa como uma necessidade tão natural como o próprio trabalho produtivo. Nada de espantar que as formas de produção social que precederam a produção burguesa sejam tratadas da mesma maneira que os Padres da igreja tratam as religiões que precederam o Cristianismo.
O que, entre outras coisas, mostra a ilusão produzida sobre a maior parte dos economistas pelo fetichismo inerente ao mundo mercantil ou pela aparência material dos atributos sociais do trabalho, é a longa e insípida querela travada a propósito do papel da natureza na criação do valorde-troca. Ora, dado que o valor-de-troca é apenas uma determinada maneira social de exprimir o trabalho empregue na produção de um objeto, ele não pode conter mais, elementos materiais do que, por exemplo, a cotação dos câmbios.
Na nossa sociedade, a forma econômica mais geral e mais simples que se liga aos produtos do trabalho - a forma-mercadoria - é tão familiar a toda a gente que ninguém vê mal nisso.
Consideremos outras formas econômicas mais complexas. Donde provinham, por exemplo, as ilusões do sistema mercantilista? Evidentemente do caráter fetiche que a forma-dinheiro imprime aos metais preciosos [;segundo esse sistema, o ouro e a prata na sua função de dinheiro não representavam uma relação social de produção, antes eram objetos naturais com peculiares propriedades sociais]. E a economia moderna que se tem em alta conta e não se cansa de zombar, insipidamente, do fetichismo dos mercantilistas, será ela menos vítima das aparências? O seu primeiro dogma não consiste em considerar que estas coisas (instrumentos de trabalho, por exemplo) são, por natureza, capital, e que, pretender despojá-las deste caráter puramente social, é cometer um crime contra a natureza? Finalmente, os fisiocratas, tão superiores em tantos aspectos, não imaginaram que a renda fundiária não é um tributo arrancado aos homens, mas um presente feito pela própria natureza aos proprietários? Mas não nos antecipemos e contentemo-nos com mais um exemplo a propósito da própria forma mercadoria. Se pudessem falar, as mercadorias diriam: «Pode o nosso valor-de-uso interessar ao homem, que para nós, enquanto, objetos, isso é-nos indiferente. O que nos interessa é o nosso valor. Demonstra-o a nossa relação recíproca como coisas de venda e de compra. “Só nos relacionamos umas com as outras como valores-de-troca». O economista parece exprimir a própria alma das mercadorias, quando diz: «o valor [valor-de-troca] é uma propriedade das coisas; a riqueza [valor-de-uso] é uma propriedade do homem. “O valor neste sentido, pressupõe necessariamente a troca, a riqueza, não». «A riqueza [valor-de-uso] é um atributo do homem; o valor, um atributo das mercadorias. Um homem ou uma comunidade são ricos, uma pérola ou um diamante possuem valor... “Uma pérola ou um diamante possuem valor enquanto pérola ou diamante». Até hoje nenhum químico descobriu ainda valor-de-troca numa pérola ou num diamante. Os economistas que descobriram ou inventaram substâncias químicas deste gênero e que se reclamam da sua profundidade, acham que o valor-de-uso das coisas lhes pertence, independentemente das suas propriedades materiais; enquanto que o valor lhes pertence na sua qualidade de coisas. O que lhes vem confirmar esta opinião é a circunstância particular de o valor útil das coisas se realizarem para o homem sem troca, quer dizer, numa relação imediata entre a coisa e o homem, enquanto que, ao invés, o seu valor apenas se realiza na troca, isto é, numa relação social. A quem é que isto não faz lembrar o bom Dogberry e a lição que deu ao guarda noturno - «(Ser um homem bem parecido, é um dom da fortuna; mas saber ler e escrever é um dom da natureza.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

UM POUCO SOBRE O CAPITAL

Marx

PARTE DOIS

Duplo Caráter do Trabalho Representado na Mercadoria

Numa primeira aproximação, a mercadoria apareceu-nos sob um duplo aspecto: valor-de-uso e valor-de-troca. Vimos em seguida que todas as características que qualificam o trabalho enquanto produtor de valores-de-uso, desaparecem quando ele se exprime no valor propriamente dito. Este duplo caráter do trabalho consubstanciado na mercadoria foi posto em relevo, pela primeira vez, por mim. Como a economia política gira à volta deste ponto, precisamos de analisá-lo mais detalhadamente. Tomemos duas mercadorias, por exemplo, um fato e 10 metros de tecido; admitindo que a primeira tinha o dobro do valor da segunda, então se 10 metros de tecido = x, o fato = 2 x.
O fato é um valor-de-uso que satisfaz uma necessidade particular. Resultam de um gênero particular de atividade produtiva, determinada pelo seu fim, modo de operação, objeto, meios e resultado.
Ao trabalho que se manifesta na utilidade ou valor-de-uso do seu produto chamamos nós, muito simplesmente, trabalho útil. Sob este ponto de vista, ele é sempre considerado com referência à sua utilidade prática. Assim como o fato e o tecido são duas coisas úteis diferentes, [valores-de-uso qualitativamente distintos,] também o trabalho do alfaiate que faz o fato se distingue [qualitativamente] do trabalho do tecelão que faz o tecido. Se estes objetos não fossem valoresde-uso de qualidade diferente e, portanto, produtos de trabalhos úteis de qualidade diversa, não poderiam contrapor-se como mercadorias. Não se troca um fato por um fato igual, um valor-de-uso pelo mesmo valor-de-uso.
Ao conjunto dos valores-de-uso de todas as espécies corresponde um conjunto de trabalhos úteis igualmente diversos, conforme o gênero, a espécie, a variedade - uma divisão social do trabalho.
Esta é condição de existência da produção de mercadorias, embora reciprocamente a produção de mercadorias não seja condição de existência da divisão social do trabalho. Nas antigas comunidades da Índia, o trabalho encontra-se socialmente dividido sem que por isso os produtos se tornem mercadorias. Ou, tomando um exemplo mais familiar, em cada fábrica existe uma divisão sistemática do trabalho, mas a essa divisão não corresponde a troca, entre os trabalhadores, dos seus produtos individuais. Somente os produtos de trabalhos privados [autônomos] e independentes uns dos outros se apresentam uns perante os outros como mercadorias, reciprocamente permutáveis.
Em suma: o valor-de-uso de cada mercadoria contém um trabalho útil especial ou provém de uma atividade produtiva que responde a um fim particular. Não se podem contrapor valores-de-uso como mercadorias a não ser que contenham trabalhos úteis de diferente qualidade. Numa sociedade em que os produtos assumem em geral a forma de mercadoria, isto é, numa sociedade de produtores de mercadorias, a diferença entre os diversos géneros de trabalho útil, executados independentemente uns dos outros como assunto particular de produtores autônomos, conduz a um sistema multi-ramificado, a uma divisão social do trabalho. De resto, é totalmente indiferente para o fato ser usado pelo alfaiate ou por um dos seus clientes; em ambos os casos, serve de valor-de-uso. A relação entre o fato e o trabalho que o produz também não se altera absolutamente em nada pelo facto de a sua confecção constituir uma profissão particular, um elo da divisão social do trabalho. Desde que a necessidade de se vestir a isso o forçou, o homem confeccionou vestuário durante milhares de anos, antes que alguém se tornasse alfaiate. Mas a existência do tecido ou fato, ou de qualquer elemento da riqueza material não fornecida pela natureza, sempre pressupôs um trabalho produtivo especial destinado a adaptar as matérias naturais às necessidades humanas. O trabalho enquanto produtor de valores-de-uso, enquanto trabalho útil é, independentemente das formas de sociedade, condição da existência do homem, uma necessidade eterna, o mediador da circulação material entre a natureza e o homem [isto é, da vida humana].
Os valores-de-uso tecido, fato, etc. - isto é, os corpos das mercadorias - são combinações de dois elementos, matéria e trabalho. Se lhes retirarmos a soma total dos diversos trabalhos úteis que contêm, sempre resta um resíduo material. Qualquer coisa fornecida pela natureza e que nada deve ao homem. Ao produzir, o homem só pode agir tal como a própria natureza; quer dizer, ele apenas pode modificar as formas da matéria. Mais: nessa obra de simples transformação, ele é ainda constantemente coadjuvado pelas forças naturais. O trabalho não é, portanto, a única fonte dos valores-de-uso que produz, da riqueza material. Ele é o pai e a terra a mãe, como diz William Petty.
Deixemos agora a mercadoria enquanto objeto útil e voltemos ao seu valor. Segundo a nossa hipótese, o fato vale o dobro do tecido. Todavia, trata-se apenas de uma diferença quantitativa que, de momento, não nos interessa. Note-se, pois, que se 1 fato é igual a duas vezes 10 metros de tecido, 20 metros de tecido são iguais a 1 fato. Enquanto valores, o fato e o tecido são coisas da mesma substância, expressões objetivas de um trabalho idêntico. Mas a confecção dos fatos e a tecelagem são trabalhos [qualitativamente] diferentes. Existem, contudo, situações sociais em que a mesma pessoa é alternadamente alfaiate e tecelão, em que, portanto, estas duas espécies de trabalho são simples modalidades do trabalho de um mesmo indivíduo, e não funções fixas de indivíduos diferentes, tal como o fato que o nosso alfaiate faz hoje e as calças que fará amanhã são apenas variações do mesmo trabalho individual. Um simples olhar mostra ainda que, na nossa sociedade capitalista, de acordo com as flutuações da procura de trabalho, uma dada porção de trabalho humano é fornecida ora sob a forma de confecção de vestuário, ora sob a forma de tecelagem. É possível que essas variações da forma do trabalho não possam efetuar sem atritos; contudo, elas são inevitáveis.
Em última análise, se abstrairmos do seu caráter útil, toda a atividade produtiva é apenas um dispêndio de força humana. A confecção do vestuário e a tecelagem, apesar da sua diferença [qualitativa], são ambas um dispêndio produtivo de cérebro, músculos, nervos, mãos do homem e, neste sentido, trabalho humano. [Trata-se apenas de duas formas diferentes de despender trabalho humano.]
Sem dúvida, a força humana de trabalho, que não faz mais que mudar de forma nas diversas aditividades produtivas, tem de estar mais ou menos desenvolvida para poder ser despendida sob esta ou aquela forma. Mas o valor das mercadorias representa simplesmente trabalho do homem, um dispêndio de força humana em geral. Ora, tal como na sociedade civil um general ou um banqueiro desempenham um grande papel, enquanto que ao homem vulgar cabem apenas funções secundárias, o mesmo se passa com o trabalho humano: é um dispêndio da força de trabalho simples que [em média,] todo o homem comum, sem desenvolvimento especial, possui no seu organismo. É certo que o trabalho simples médio muda de caráter conforme as regiões e as épocas, mas numa dada sociedade é sempre determinado. O trabalho complexo (skilled labour, trabalho qualificado) é apenas trabalho simples potenciado, ou melhor, multiplicado, de modo que uma dada quantidade de trabalho complexo corresponde a uma quantidade maior de trabalho simples. A experiência mostra que esta redução se faz constantemente. Mesmo quando uma mercadoria é produto do trabalho mais complexo, o seu valor equipara-a numa proporção qualquer ao produto de um trabalho simples, representando, portanto, apenas uma quantidade determinada de trabalho simples. As diversas proporções segundo as quais as diferentes espécies de trabalho são reduzidas ao trabalho simples, como sua unidade de medida, estabelecem-se na sociedade sem que os produtores disso se apercebam, parecendo-lhes, portanto, estabelecidas pelo costume. Daí resulta que, na análise do valor, todas as variedades de força de trabalho devem ser consideradas como força de trabalho simples. Portanto, do mesmo modo que nos valores tecido e fato se abstrai da diferença dos seus valoresde-uso, igualmente se abstrai, no trabalho que estes valores representam, da diferença das suas formas úteis: confecção e tecelagem. E tal como os valores-de-uso tecido e fato são combinações de atividades produtivas especiais com o fio e a fazenda, enquanto que, ao invés, os valores destas coisas são meras cristalizações de um trabalho idêntico -, assim também os trabalhos contidos nesses valores relevam, não pela sua relação produtiva com o fio e a fazenda, mas apenas como um dispêndio da mesma força [ de trabalho] humana. A tecelagem e a confecção criam o tecido e o fato [como valores-de-uso] precisamente porque têm qualidades diferentes; mas [a substância de] os valores do fato e do tecido, criam-na apenas na medida em que possuem uma qualidade comum: a qualidade de trabalho humano. Contudo, o fato e o tecido não são apenas valores em geral, mas valores de uma grandeza determinada; e, de acordo, com a nossa hipótese, 1 fato vale o dobro de 10 metros de tecido.Como se explica esta diferença? A explicação está no facto de o tecido conter apenas metade do trabalho do fato, de modo que, para a produção deste último, a força de trabalho deve ser despendida durante o dobro do tempo exigido pela produção do primeiro.
Se, portanto, quanto ao valor-de-uso, o trabalho contido na mercadoria apenas é relevante qualitativamente, já no que se refere à grandeza do valor, ele apenas releva quantitativamente [uma vez que já foi reduzido a trabalho humano puro e simples]. No primeiro caso, trata-se de saber como se processa o trabalho e o que é que produz; no segundo, trata-se de saber a quantidade, a sua duração. Como a grandeza de valor de uma mercadoria representa apenas a quantidade de trabalho nela contido, daí resulta que todas as mercadorias, numa certa proporção, devem ter sempre valores da mesma grandeza. Se a força produtiva, por ex., de todos os trabalhos úteis exigidos pela confecção de um fato, permanecer constante, então a grandeza do valor dos fatos aumenta com o seu número. Se 1 fato representa x dias de trabalho, 2 fatos representarão 2x, e assim por diante. Mas admitamos que a duração do trabalho necessário à produção de 1 fato aumente para o dobro, ou se reduza a metade; no primeiro caso, 1 fato passa a ter tanto valor como anteriormente 2, e no segundo, 2 fatos passam a ter apenas o valor de 1, embora em ambos os casos o fato continue a prestar os mesmos serviços e o trabalho útil nele contido continue a ser da mesma qualidade. Mas a quantidade de trabalho gasto na sua produção, essa não permanece a mesma.
Uma quantidade maior de valores-de-uso constitui, evidentemente, uma maior riqueza material; com dois fatos podem vestir-se dois homens, com um fato, apenas um; etc. Todavia, a um acréscimo da massa da riqueza material pode corresponder um decréscimo simultâneo do seu valor. Este movimento contraditório deriva do duplo caráter do trabalho. A eficácia de um trabalho útil, num certo espaço de tempo, depende da sua força produtiva ou produtividade [12]. Por isso, o trabalho útil torna-se uma fonte mais ou menos abundante de produtos na razão direta do aumento ou da diminuição da sua força produtiva. Pelo contrário, uma variação desta força não afeta nunca diretamente o trabalho representado no valor. Uma vez que a força produtiva pertence ao trabalho concreto e útil, já não poderá afetar o trabalho desde que se abstraia dessa forma concreta e útil. Quaisquer que sejam as variações da sua força produtiva, o mesmo trabalho, no mesmo tempo, produz sempre o mesmo valor. Porém, num mesmo espaço de tempo, o mesmo trabalho produz mais valores-de-uso se aumentar a sua força produtiva, e menos se ela diminuir. Qualquer variação da força produtiva que aumente a fecundidade do trabalho e, por conseguinte, a massa dos valores-de-uso por ele produzidos, faz também diminuir o valor dessa massa assim aumentada, se reduzir o tempo total de trabalho necessário à sua produção. E vice-versa. Das considerações precedentes, resulta que, embora se não possa falar propriamente em duas espécies de trabalho na mercadoria, todavia o mesmo trabalho apresenta-se nela sob dois aspectos opostos, conforme se reporte ao valor-de-uso da mercadoria, como seu produto, ou ao valor dessa mercadoria, como sua pura expressão objetiva. Todo o trabalho é, por um lado, dispêndio, no sentido fisiológico, de força humana, e é nesta qualidade de trabalho igual,[abstrato,] que ele constitui o valor das mercadorias. Todo o trabalho é, por outro lado, dispêndio da força humana sob esta ou aquela forma produtiva, determinada por um objectivo particular, e é nessa qualidade de trabalho concreto e útil que ele produz valores-de-uso ou utilidades. Tal como a mercadoria tem, antes de tudo, de ser uma utilidade para ser um valor, assim também o trabalho tem de ser, antes de tudo, útil, para ser considerado dispêndio de força humana, trabalho humano, no sentido abstrato do termo.
Estão agora determinadas a substância do valor e a grandeza de valor. Resta analisar a forma do valor.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

UM POUCO SOBRE O CAPITAL

Karl Marx

PARTE UM

Valor-de-Uso e Valor-de-Troca ou Valor Propriamente Dito

A riqueza das sociedades em que domina o modo-de-produção capitalista apresenta-se como uma «imensa acumulação de mercadorias»
A análise da mercadoria, forma elementar desta riqueza, será, por conseguinte, o ponto de partida da nossa investigação. A mercadoria é, antes de tudo, um objeto exterior, uma coisa que, pelas suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. Que essas necessidades tenham a sua origem no estômago ou na fantasia, a sua natureza em nada altera a questão. Não se trata tão pouco aqui de saber como são satisfeitas essas necessidades: imediatamente, se o objeto é um meio de subsistência, [objeto de consumo,] indiretamente, se é um meio de produção. Todas as coisas úteis, como o ferro, o papel, etc., podem ser consideradas sob um duplo ponto de vista: o da qualidade e o da quantidade. Cada uma delas é um conjunto de propriedades diversas, podendo, por conseguinte, ser útil sob diferentes aspectos. Descobrir esses diversos aspectos e, ao mesmo tempo, os diversos usos das coisas, isso é obra da história.
Assim, a descoberta de medidas sociais para quantificar as coisas úteis: a diversidade destas medidas decorre, em parte,da natureza diversa dos objetos a medir, em parte, de convenção. A utilidade de uma coisa transforma essa coisa num valor-de-uso.
Mas esta utilidade nada tem de vago e de indeciso. Sendo determinada pelas propriedades do corpo da mercadoria, não existe sem ele. O próprio corpo da mercadoria, tal como o ferro, o trigo, o diamante, etc., é, consequentemente, um valor-de-uso, e não é o maior ou menor trabalho necessário ao homem para se apropriar das qualidades úteis que lhe confere esse caráter. Quando estão em causa valores-de-uso, subentende-se sempre uma quantidade determinada, como uma dúzia de relógios, um metro de tecido, uma tonelada de ferro, etc. Os valores-de-uso das mercadorias constituem o objeto de um saber particular: a ciência e a arte comerciais. Os valores-de-uso só se realizam pelo uso ou pelo consumo. Constitui o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social dessa riqueza. Na sociedade que nos propomos examinar, são, ao mesmo tempo, os suportes materiais do valor-de-troca. O valor-de-troca surge, antes de tudo, como a relação quantitativa, a proporção em que valores-deuso de espécie diferente se trocam entre si, relação que varia constantemente com o tempo e o lugar. O valor-de-troca parece, portanto, qualquer coisa de arbitrário e de puramente relativo; um valor-de-troca intrínseco, imanente à mercadoria, parece ser como diz a escola, uma contradictio in adjecto. Vejamos a questão mais de perto. Uma mercadoria particular (por exemplo, um alqueire de trigo)troca-se por outros artigos nas mais diversas proporções. [Portanto, o trigo tem múltiplos valores-de-troca, em vez de um só. No entanto, o seu valor-de-troca permanece imutável, independentemente da maneira por que se exprime: em x de cera, em y de seda, em z de ouro, etc. [Uma vez que cada uma dessas coisas - x cera, y seda, z ouro - é o valor-de-troca de 1 alqueire de trigo, elas têm de ser - por sua vez - valores-de-troca permutáveis entre si e iguais. Daqui resultam duas coisas: em primeiro lugar, os valores-de-troca válidos para uma mesma mercadoria exprimem uma igualdade; em segundo lugar, porém,] o valor-de-troca tem de ter um conteúdo distinto dessas diversas expressões.Tomemos agora duas mercadorias, trigo e ferro, por exemplo. Qualquer que seja a sua relação de troca, ela pode ser sempre representada por uma equação em que uma dada quantidade de trigo é considerada igual a uma quantidade qualquer de ferro (por exemplo, 1 alqueire de trigo = a quilos de ferro). Que significa esta equação? Significa que em dois objetos diferentes, em 1 alqueire de trigo e em a quilos de ferro, existe algo de comum. Ambos os objetos são, portanto, iguais a um terceiro que, em si mesmo, não é nem um nem outro. Cada um deles deve, enquanto valor-detroca, ser redutível ao terceiro, independentemente do outro. Um exemplo extraído da geometria elementar ilustra isso claramente. Para medir e comparar as superfícies de qualquer figura retilínea, decompô-la em triângulos. Depois reduzimos o triângulo a uma expressão completamente diferente do seu aspecto visível: ao semi-produto da base pela altura. Do mesmo modo, os valores-de-troca das mercadorias devem ser reduzidos a qualquer coisa de comum, de que representam um mais ou um menos. Este elemento comum não pode ser uma propriedade natural qualquer - geométrica, física, química, etc. - das mercadorias. As qualidades naturais destas só são tomadas em consideração,na medida em que lhes conferem uma utilidade que as torna valores-de-uso. Mas, por outro lado, é evidente que na troca se faz abstracção do valor-de-uso das mercadorias, sendo a relação de troca caracterizada precisamente por essa abstração. Na troca, um valor-de-uso vale precisamente tanto como qualquer outro, desde que se encontre na proporção adequada. Ou, como diz o velho Barbon: «Uma espécie de mercadoria é tão boa como outra, quando o seu valor-de-troca é igual; não existe nenhuma diferença, nenhuma distinção entre coisas de igual valor-de-troca». Como valores-de-uso, as mercadorias são, sobretudo, de qualidade diferente; como valores-de-troca só podem ser de quantidade diferente [e não contêm, portanto, um só átomo de valor-de-uso]. Ora, se abstrairmos do valor-de-uso das mercadorias, resta-lhes uma única qualidade; a de serem produto do trabalho. Então, porém, já o próprio produto do trabalho está metamorfoseado sem o sabermos. Com efeito, se abstrairmos do seu valor-de-uso, abstraiu também de todos os elementos materiais e formais que lhe conferem esse valor. Já não é, por exemplo, mesa, casa, fio, ou qualquer outro objeto útil; já não é também o produto do trabalho do marceneiro, do pedreiro, de qualquer trabalho produtivo determinado. Juntamente com os caracteres úteis particulares dos produtos do trabalho, desaparece o caráter útil dos trabalhos neles contidos e as diversas formas concretas que distinguem as diferentes espécies de trabalho. Apenas resta, portanto, o caráter comum desses trabalhos; todos eles são reduzidos ao mesmo trabalho humano, [trabalho humano abstrato a um dispêndio de força humana de trabalho, independentemente da forma particular que revestiu o dispêndio dessa força. Consideremos agora o resíduo dos produtos do trabalho. Eles assemelham-se completamente uns aos outros. Todos eles têm uma mesma realidade fantástica, invisível. Metamorfoseados em sublimados idênticos, frações do mesmo trabalho indistinto, todos estes objetos manifestam apenas uma coisa: que na sua produção foi despendida uma força de trabalho humano, que neles está acumulado trabalho humano [independentemente da forma concreta do trabalho. Enquanto cristais dessa substância social comum, são considerados valores [,valores-mercadoria].
[Na própria relação de troca das mercadorias o seu valor-de-troca aparece-nos como algo de completamente independente dos seus valores-de-uso. Ora, se abstrairmos efetivamente do valor-de-uso dos produtos do trabalho, teremos o seu valor, tal como acaba de ser determinado.] O que há de comum nas mercadorias e que se mostra na relação de troca ou no valor-de-troca é, pois, o seu valor. Vimos que um valor-de-uso ou um artigo qualquer só tem valor na medida em que nele está objetivado, materializado trabalho humano [abstrato]. Ora, como medir a grandeza do seu valor? Pela quantidade da substância «criadora de valor» nele contida, isto é, pela quantidade de trabalho. Por sua vez, a quantidade de trabalho tem por medida a sua duração, e o tempo de trabalho mede-se em unidades de tempo, tais como a hora, o dia, etc. Poder-se-ia imaginar que, se o valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho gasto na sua produção, então quanto mais preguiçoso ou inábil for um homem mais valor terá a sua mercadoria, pois emprega mais tempo na sua produção. Contudo, o trabalho que constitui a substância do valor das mercadorias é trabalho igual e indistinto, um dispêndio da mesma força de trabalho. A totalidade da força de trabalho da sociedade, que se manifesta no conjunto dos valores, só releva, por conseguinte, como força única, embora se componha de inúmeras forças individuais. Cada força de trabalho individual é igual a qualquer outra, na medida em que possui o caráter de uma força social média e funciona como tal, isto é, emprega na produção de uma mercadoria apenas o tempo de trabalho necessário em média, ou o tempo de trabalho socialmente necessário.
O tempo socialmente necessário à produção das mercadorias é o tempo exigido pelo trabalho executado com um grau médio de habilidade e de intensidade e em condições normais, relativamente ao meio social dado. Depois da introdução do tear a vapor na Inglaterra, passou a ser necessário talvez apenas metade de trabalho que anteriormente era necessário para transformar em tecido uma certa quantidade de fio. O tecelão manual inglês, esse continuou a precisar do mesmo tempo que antes para executar essa transformação; mas, a partir desse momento, o produto da sua hora de trabalho individual passou a representar apenas metade de uma hora social, não criando mais que metade do valor anterior. É, pois, somente a quantidade de trabalho ou o tempo de trabalho necessário numa dada sociedade para a produção de um artigo que determina a grandeza do seu valor. Cada mercadoria particular conta em geral como um exemplar médio da sua espécie. As mercadorias que contêm iguais quantidades de trabalho ou que podem ser produzidas no mesmo tempo têm, portanto, um valor igual. O valor de uma mercadoria está para o valor de qualquer outra como o tempo de trabalho necessário à produção de uma está para o tempo de trabalho necessário à produção da outra. Como valores, as mercadorias são apenas medidas determinadas de tempo de trabalho cristalizado. A grandeza de valor de uma mercadoria permaneceria, evidentemente, constante se o tempo necessário à sua produção permanecesse constante. Contudo, este último varia com cada modificação da força produtiva ou produtividade do trabalho, que, por sua vez, depende de circunstâncias diversas: entre outras, da habilidade média dos trabalhadores, do desenvolvimento da ciência e do grau da sua aplicação tecnológica, das combinações sociais da produção, da extensão e eficácia dos meios de produção e de condições puramente naturais. A mesma quantidade de trabalho é representada, por exemplo, por oito alqueires de trigo se a estação é favorável e por quatro alqueires somente, no caso contrário. A mesma quantidade de trabalho extrai mais metal das minas ricas do que das minas pobres, etc. Os diamantes só raramente aparecem na camada superior da crosta terrestre; para encontrá-los, torna-se necessário, em média, um tempo considerável, de modo que representam muito trabalho num pequeno volume. É duvidoso que o ouro tenha alguma vez pago completamente o seu valor. Isto ainda é mais verdadeiro no caso dos diamantes. Segundo Eschwege, o produto total da exploração das minas de diamantes do Brasil, durante oitenta anos, não tinha ainda atingido em 1823 o preço do produto
médio de um ano e meio das plantações de açúcar ou de café do mesmo país, embora
representasse muito mais trabalho e, portanto, mais valor. Com minas mais ricas, a mesma quantidade de trabalho representaria uma maior quantidade de diamantes, cujo valor baixaria. Se se conseguisse transformar com pouco trabalho o carvão em diamante, o valor deste último desceria talvez abaixo do valor dos tijolos. Em geral: quanto maior é a força produtiva do trabalho, menor é o tempo necessário à produção de um artigo, menor é a massa de trabalho nele cristalizada, menor é o seu valor. Inversamente, quanto menor é a força produtiva do trabalho, maior é o tempo necessário à produção de um artigo, maior é o seu va1or. A grandeza de valor de uma mercadoria varia, pois, na razão directa da quantidade e na razão inversa da produtividade do trabalho que nela se realiza
Conhecemos agora a substância do valor: é o trabalho. Conhecemos a medida da sua grandeza: é a duração do trabalho. [Resta analisar a sua forma, que qualifica o valor precisamente como valorde-troca. Antes disso, porém, importa precisar as definições a que já chegamos. Uma coisa pode ser um valor-de-uso e não ser um valor: basta que seja útil ao homem sem provir do seu trabalho. Assim acontecem com o ar, prados naturais, terras virgens, etc. Uma coisa pode ser útil e produto do trabalho humano e não ser mercadoria. Quem, pelo seu produto, satisfaz as suas próprias necessidades, apenas cria um valor-de-uso pessoal [,mas não uma mercadoria] .Para produzir mercadorias, tem não somente de produzir valores-de-uso, mas valores-de-uso para os outros, valores-de-uso sociais. [E não basta produzir para os outros. O camponês medieval produzia cereais para pagar o tributo ao senhor feudal e o dízimo à igreja. Mas nem o tributo nem o dízimo, embora produzidos para outrem, eram mercadorias. Para ser mercadoria é necessário que o produto seja transferido para outrem, que o utilize como valor-de-uso, por meio de troca.
Finalmente, nenhum objeto pode ser um valor se não for uma coisa útil. Se é inútil, o trabalho que contém é gasto inutilmente [não conta como trabalho] e, portanto, não cria valor.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Poesia

CONSELHO 1966

Se minha vida
nesse mundo idiota
medrasse alguns devaneios
agradar-me-ia a lorota
do amigo a dar conselhos

Ora, quem sabe o que sente
explode em vertentes
de águas sem fim

Mas quem sente o que sabe
sacode e invade
o tédio infinito
que sinto em mim.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Creative Commons é entreguismo

Os nacionalistas da cultura
Pablo Ortellado

Texto Original - http://www.gpopai.org/ortellado/?p=13

A ascensão de Ana de Holanda para o Ministério da Cultura com a promessa de reavaliar a revisão da lei de direitos autorais “em defesa dos autores” gerou um acirrado debate que tem animado as páginas dos cadernos de cultura. No debate, tem aparecido com orquestrada frequência uma curiosa tese: os críticos da nova política do ministério são ingênuos manipulados pelas grandes empresas de Internet que querem se apropriar da cultura brasileira sem pagar pelo conteúdo. A revisão da lei de direitos autorais ampliando exceções e limitações, a supervisão estatal das sociedades de gestão coletiva (como o ECAD) e o estímulo ao licenciamento livre (por meio de licenças como as Creative Commons) causariam apenas prejuízo aos autores brasileiros. As grandes corporações do mundo digital, ao contrário, seriam as grandes beneficiadas, já que explorariam o acesso livre a esses conteúdos por meio de publicidade. Contra essas políticas inovadoras, seria preciso manter as regras e políticas de direito autoral atualmente em vigor que protegem razoavelmente bem os autores e são uma plataforma adequada para a projeção internacional da cultura brasileira.A linguagem anti-imperialista surpreende, vindo de onde vem. Os defensores da tese são os sócios locais da indústria cultural internacional, sobretudo do setor fonográfico – empresas nada nacionais como a Warner, a Sony, a EMI e a Universal. Obviamente, a acusação é apenas um jogo retórico, mas como tem encontrado algum eco, não seria despropositado relembrar alguns fatos básicos.No mercado de música brasileiro, os autores são brasileiros, mas as empresas são estrangeiras. O discurso pseudo-nacionalista só pode funcionar porque o Brasil tem uma situação ímpar: é o único país, fora os Estados Unidos, onde o consumo de música nacional é superior ao de música estrangeira. No entanto, essa música nacional é explorada por empresas majoritariamente estrangeiras: a Warner, a Sony, a EMI e a Universal. O que temos, portanto, é uma associação entre os grandes autores nacionais (os velhos nomes da MPB e os novos nomes do pop e do sertanejo) e as grandes empresas internacionais.Os intermediários, em boa parte estrangeiros, se apropriam de mais de 50% do direito autoral. A venda de discos e a execução pública (rádio, TV e shows) movimentam juntos pelo menos 400 milhões de reais anuais em direito autoral. Esses valores são distribuídos para os atores da cadeia produtiva da música: de um lado, criadores strictu sensu como compositores, arranjadores, intérpretes e músicos e, de outro, intermediários como empresas fonográficas, associações de autores, produtores e o escritório de arrecadação (ECAD). Na divisão dos recursos do direito autoral, os intermediários ficam com 51% e a menor parte dos recursos é dividida entre os criadores.O Brasil é altamente deficitário em direito autoral. Se há ainda alguma dúvida que a exploração do direito autoral é interesse estrangeiro, basta olhar a balança comercial de direito autoral do país com os Estados Unidos. Todos os anos enviamos mais de 2 bilhões de dólares como pagamento de direito autoral (em todos os setores – não apenas música). Os americanos, por sua vez, nos pagam apenas 25 milhões.A remuneração aos autores brasileiros é concentrada, distorcida e segue critérios obscuros. A distribuição dos recursos de direito autoral no Brasil é, antes de tudo, distorcida pelo jabá, mecanismo pelo qual as empresas pagam para ter a música executada nas rádios e TVs para depois receberem o direito autoral de execução e vendas como “retorno”. Além disso, o escritório de arrecadação tem procedimentos obscuros que não podem ser auditados e que concentram a distribuição em muito poucos autores.O que temos então é uma indústria predominantemente estrangeira que se apropria da maior parte dos recursos de direito autoral em detrimento dos verdadeiros criadores e os remete ao exterior para as matrizes. No entanto, como remunera bem alguns poucos autores brasileiros segundo procedimentos obscuros, estes agem como porta-vozes nacionais desta estrutura internacional de exploração da cultura brasileira.Se tudo isso ainda não é suficiente, uma última e conclusiva evidência pode ser encontrada na contribuição da IIPA (International Intellectual Property Alliance) para o relatório 301. O relatório 301 é um mecanismo comercial do governo americano por meio do qual tenta interferir nas políticas de direito autoral de “países em desenvolvimento”. Esse relatório avalia se a política de direito autoral desses países, no entender dos Estados Unidos, é adequada – e se ele considerar que a de algum país não é, pode punir com sanções comerciais unilaterais. A IIPA que é uma organização que reúne as indústrias do software, do disco, do filme, do livro e dos games nos Estados Unidos, no seu último relatório defende exatamente as mesmas posições quanto à reforma da lei de direito autoral que o atual ministério da cultura – motivo pelo qual as posições da ministra são diretamente elogiadas.É no mínimo curioso que agentes das grandes multinacionais utilizem um discurso nacionalista e até anti-imperialista para atacar os ativistas da cultura livre. É evidente que se trata de má-fé orientada a atingir resultados políticos. Mas como a mentira e a má-fé se disseminam talvez valha a pena esclarecer algumas coisas:O movimento de cultura livre defende a independência dos criadores, não a indústria – nova ou velha. Embora o movimento seja uma rede mais ou menos solta de ativistas, sem um programa explícito, me parece claro um objetivo comum: o de produzir uma nova economia da cultura, na qual os criadores e não os intermediários sejam os principais beneficiários dos dividendos econômicos e na qual os bens culturais possam circular livremente sem barreiras de direito autoral, permitindo o acesso de todos ao patrimônio cultural. A cultura que se vislumbra é uma cultura na qual os criadores sejam remunerados e, simultaneamente, o público tenha acesso às obras. Há várias experiências bem sucedidas em curso sobre como realizar esse objetivo – principalmente aquelas na qual há deslocamento da fonte de remuneração do criador, do direito autoral para serviços, como shows e apresentações ao vivo. Esse movimento não pretende que os intermediários da velha indústria (gravadoras, editoras, etc.) sejam simplesmente substituídos por novos intermediários (empresas de Internet, editoras digitais, etc.), nem que os criadores não sejam remunerados. O movimento de cultura livre defende um modo de produzir cultura descentralizado, diverso, esteticamente autônomo, economicamente sustentável e no qual os bens culturais sejam acessíveis a todos.O mundo que os novos intermediários vislumbram é diferente. É um mundo no qual o acesso às obras, gratuito ou apenas mais barato, é organizado por grandes empresas que comandam indiretamente a cadeia produtiva e geram dividendos com a venda da privacidade dos usuários para publicidade dirigida. É um mundo onde se pode ler livros ou escutar música na Internet gratuitamente sacrificando a privacidade pessoal para a venda de publicidade. Esse modelo traz grandes riscos para uma liberdade civil fundamental que é a privacidade, coloca em risco a autonomia econômica e estética dos criadores e ameaça a diversidade de oferta de obras para os consumidores.Como se vê, o programa dos defensores da cultura livre é muito diferente do programa da nova indústria cultural. Mesmo assim, os defensores do velho modo industrial de produção da cultura tentam desqualificar o movimento de cultura livre apresentando-o como agente das novas empresas.Não podemos ficar presos, no entanto, a duas alternativas corporativas, que subtraem, cada uma a seu modo, a autonomia de criadores e consumidores. O processo de mudanças nos modos de produção da cultura não nos leva a ter que escolher entre a EMI e a Google. Ele abre uma janela de oportunidades para novas práticas e novas políticas que emancipem e protejam os autores frente ao poder econômico dos grandes intermediários e que apoiem as potencialidades de acesso à cultura trazidas pelas novas tecnologias. É esse tipo de visão que esperamos do Ministério da Cultura.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

MEMÓRIA


Depois de assistir o filme do Rosemberg fiquei com o meu passado na cabeça. Retirei então do baú de ossos um poema de 1980 que fala desse tempo e me serve hoje para exorcizar essas belas lembranças.

Ela Chora como Criança


Oh! Paula Nestorov

O sol poente se esconde
por trás das montanhas
de Minas
da praia eu vejo
ao longe
Ouro Preto, Barbacena, Leopoldina.

Ah! polonesa bailarina
ao seu lado vou me deitar
deslizando-me na pele branca e fina
suave e luxuriosa menina
passo o dia a pensar:

- Se a rosa traz amor a quem lhe poda
por mais puro que se apresenta tê-la
sucumbir nos espinhos pouco importa
tocá-la nesta noite é querer vê-la.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Carta a um filho distante


Meu querido filho estou saudoso de ti.
Outro dia estava pensando o mesmo que você a respeito de tudo e da inutilidade da vida criativa. Pensava: o que adianta você nascer inteligente, sensível, ler e entender o saber humano, a sua infinitude, a boa arte, se a grande maioria dos humanos são totalmente imbecilizados?
Ninguém pode imaginar o labirinto existencial quando essas questões são colocadas.
A primeira coisa que me vem a cabeça, como defesa natural a essa ignomínia, é o sono, a cama, a preguiça “macunaímica”, típica do homem do trópico, como um índio chateado que foi excluído da festa, com o espírito castigado, se deita na rede.
Agora o que não pode é ceder aos inimigos, que também disputam a primazia do intelecto e do saber, com as trapaças químicas das células. Cultivar o bode. Isso é que nos leva a depressão. Ai é a derrota. Sabemos que não nascemos para isso. Nascemos para lutar até a morte. E esse é o grande barato da vida.
Quanto mais nos aproximamos da verdade, maior é a luz, agora muito maior ainda é a sua projeção e a sua sombra. Mas é como eu costumo dizer: toda a luz cria uma sombra, mas nenhuma sombra pode criar o que seja uma simples luz de vela.
Tudo o que você faz serve para mim para alguma coisa. Não despreze o seu trabalho de criação e nem o do amigo que está ao seu lado. Ambos são guerreiros audazes nesta merda cultural em que vivemos. Mas se isso chegar a nos importar, tenha cuidado, pois vamos acabar sujando as nossas mãos. Sacou bicho!

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Memória

Esta mulher derreteu o coração de muitos marmanjos na época. Retirei essa foto de um cartão que pertencia a minha atriz Vera Barreto Leite. Não é demais!

sábado, 19 de fevereiro de 2011

AMOR SUPREMO com trilha de José Vieira

Esse clipe que eu intitulo de "celukino" (de edição rápida) é uma colagem em homenagem ao cineasta Luis Rosemberg e as suas atrizes Paula Nestorov e Adriana de Figueredo, no seu sensacional filme "O Santo e a Vedete".

Notícias de Cinema na Net

Noilton Nunes

Amigas e amigos do Cosme Alves Neto. Convidado para participar de encontro em Bogotá na Universidade da Colômbia, para discussões sobre o futuro do cinema,por causa dos meus últimos filmes postados no youtube, Caravanas, Daime e Stédile MSTela, falarei sobre Cinema na Internet. Sabendo que ia encontrar aqui amigos do Cosme, resolvi então postar o vídeo que fizemos para abertura da Jornada da Bahia que prestou homenagem ao nosso querido Cosme. Aí está. Foi gravado na Cinemateca do MAM e tem depoimentos carinhosos de muita gente boa. Será exibido no Festival Internacional de Cinema de Cartagena, o mais antigo da América Latina, na próxima semana. Apreciem. Abs. Noilton

http://www.youtube.com/watch?v=M15vlDzmrsA

1a. A PRONTA AÇÃO - detalhes do que aconteceu no dia 10 de fevereiro na Rua do Teatro – Rio de Janeiro

VEJA E COMENTE


A próxima será realizada na quinta feira dia 17 de março - depois doCarnaval - 18 horas - na Rua do Teatro - Centro Rio

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

O cinema é o meu legado


Estou acabando o meu texto cinematográfico sobre o irlandês James Joyce. Quebranto. Agora quero escrever um texto de filme onde o universo dos 33 contos do grande autor mineiro Murilo Rubião será o meu personagem principal.

Um pouco de Murilo Rubião...

“O realismo mágico,também chamado de fantástico, é um movimento literário contemporâneo cunhado e difundido no meio do século XX. Nasceu na América Latina, mas foi influenciado por movimentos e escritores do mundo inteiro, tais como Kafka e Edgar Allan Poe.
No Brasil o movimento teve escritores grandes mas pouco conhecidos, como J. J. Veiga e Murilo Rubião. Infelizmente a curta obra de Murilo – são apenas 33 contos não foi fortemente divulgada e apreciada.
Murilo foi um dos precursores do realismo fantástico de modo geral. Seu primeiro livro (O ex-mágico) foi publicado somente em 1947, quando a literatura hispano-americana teria seu ápice. Murilo admitiu ser fortemente influenciado por Machado de Assis, E.T.A. Hoffman, Edgar Allan Poe e, apesar de agnóstico, pela Bíblia. Sua pequena obra é intensa, de um realismo que seduz o leitor e traz à tona o desconforto provocado pelos acontecimentos que sua narrativa toma.
O escritor mineiro passou despercebido pelo público até meados dos anos 70, quando publicou “Os dragões e outros contos”, sendo então apreciado por literários e escritores, mas nem por isso tornou-se sucesso de vendagens, o que infelizmente continua sendo uma realidade.
Rubião foi um escritor extremamente meticuloso, conhecido por alterar e reescrever seus contos diversas vezes até achar a perfeição. Levou 26 anos para concluir o inquietante e sombrio conto “O Convidado”, onde o personagem é recebido em uma festa, mas não sabe de quem partiu o convite. Outros textos, como “Os comensais”, “Aglaia” e “Elisa” mostram a capacidade de Rubião em relacionar seus contos com as angústias humanas de modo nebuloso e curioso para o expectador. Talvez seu conto mais conhecido seja o Pirotécnico Zacarias.
A editora Companhia das Letras publicou todos os contos de Murilo dividindo-os em três livros: O Pirotécnico Zacarias e outros contos, A Casa do Girassol Vermelho e outros contos e O Homem do Boné Cinzento e outros contos. Alguns textos de Murilo já foram traduzidos para o espanhol, inglês e alemão, e quatro de suas histórias já foram adaptadas para o cinema como curtas-metragens”.
( recebido pela internet sem o nome do autor)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

POESIA


Fechando o Ciclo

Quero morrer na Grécia
Falar com Homero de Ilíada e Odisséia
Discutir com Heródoto sobre o Egito que ele visitou
Ouvir os poemas de Anacreonte
Defender os sofistas, beber com Aristóteles, brigar com Platão
Comer no seu banquete e passear com Sócrates.
Viajar pelo tempo e voltar a Roma
Buscar a natureza das coisas
Lucrecio, Catulo e Virgílio
Depois do silêncio obscurantista quero estar aqui
Ao lado de Dante e sua divina, Bocaccio e Petrarca
Atravessar os oceanos com Camões
Visitar na velha ilha Shakespeare
Cavalgar com Cervantes por Andaluzia
Dominar Castela, salvar Montaigne
Elevar-me as máximas alturas
E do alto, do inatingível, contemplar o inaudito
Done, Sousândrade e Vieira, o novo mundo
Mas antes passear por Paris com Molière
Satirizando o avarento e o burguês religioso
Encontrar em um café Diderot, Voltaire, Russeau
Em outra mesa Arthur Rimbaud e Charles Baudelaire.
Filosofar navegando pelo etéreo ao lado de Willian Blake
Lendo Poe, Leopardi, Garrett, Flaubert, Dostoievski, Tolstoi
Marx e de binóculos ver o mundo e todas as suas contradições
Passando por Portugal visitar Cesário Verde, Mário de Sá-Carneiro,
Fernando Pessoa e Thomaz Cabreira tomando ginjinha
Esbanjando saber e talento para tudo aprender
Ir ao Brasil de Machado de Assis e Aluísio de Azevedo
Voltar ao alto e rondar a noite do século passado
E se abraçar a Joyce, Kafka, Faulkner, Maiakovski
Retornar ao realismo histórico e reatar a revolução perdida
Lenine, Trotski, Oswald de Andrade, Sartre e Camus
Os livros vermelhos de Mao
A quem mais devo encontrar antes de atingir o caos, ao nada?
Ginsberg, Kerouac, Nietsche, Borges, Cortázar, Fuentes,
Augusto e os Anjos, Murilo Mendes, Cendras,Marlamé
Verlaine, Drumond, Artaud
Todos eles estavam ali prosando pelos jardins do éden.
Foi Darcy Ribeiro quem me deu um Cascudo para não ficar nesta loucura
Se houver no mundo a oportunidade cíclica de uma Nova Grécia, Platão,
Atlântida, é aqui que ela vai existir
Heureca! Este é o lugar!Tenho certeza, não vou mentir
Aqui encontrarei os poetas mais uma vez nas festas de então
Nas ilhas do grande continente tomado pelo mar em fúria

domingo, 13 de fevereiro de 2011

ASSUNTINA COM O SANTO E A VEDETE

O Cinema anárquico, revolucionário e inimaginável de Luis Rosenberg.

O mundo pessoal é feito como uma grande coleção de cacos de imagem e som.
Assim, ao nascer do sol, todos nós, aos poucos, descobrimos os sons que nos rodeiam e pouco depois as imagens, em seguida as línguas faladas, as formulações das orações, o pensamento, as associações das idéias, o bem e o mal, o diálogo e finalmente podemos contemplar o sonho onírico do caos no grande espetáculo da vida.
No universo da criação, da arte, do saber, os movimentos são ciclos que explodem sem nunca se encontrarem e quase sempre são os mesmos, constituídos da mesma matéria.
É a história do eterno retorno: Nascer. Construir. Esgotar. Renascer...
O artista é fonte de inspiração do que vem a seguir...
Você pode ser prosa, mas também você pode ser poesia.
Só o futuro é moderníssimo e é sempre para ele que o grande artista volta o seu olhar.
No futuro não se vê, têm-se visões.
Só no passado pode ser visto o que em um instante presente nos parece real.
Quando se registra uma imagem de rua, com ou sem som, em qualquer tempo, você guarda um momento do presente e teoricamente eterniza-o.
Agora, quando se cria, ou se inventa uma realidade para registro, com encenação, representações, ação determinada em uma urdidura controlada, trabalhando-se com coisas passadas e aprendidas durante um longo tempo de reflexão e sofrimento pacientemente sendo editada na somatória de tudo isso, com arte e coragem, chamamos isso de cinema, e ai você tem um bom ou um mau filme para ver.
A releitura de um filme produzido há mais de trinta anos é tarefa árdua, pois junto dele caminha a história, todos os fatos de uma época, nuances de um tempo, cacos de imagens e de sons muitas vezes recheados de gritos de horror.
A história do homem moderno, seja medíocre ou sábia, foi registrada antes no nitrato de prata, depois em celulóide, hoje, magnética, binária e digital, é fonte inesgotável de bons filmes em todas as épocas de sua existência e é um prazer inenarrável quando chegam as nossas mãos, aos nossos olhos e ouvidos, a nossa boca, um banquete de idéias e reflexões criativas que estavam guardadas, preservadas no óleo da perseverança, na força do cinema e na alma do seu criador, durante tanto tempo.
“ASSUNTINA & O SANTO E A VEDETE”.
Estavam ali na telinha do meu computador, como dois livros raros, esses dois filmes de longa-metragem ainda desconhecidos para mim e também, acredito, para o seu grande público oculto. Filmes estes que não foram, ou foram poucos exibidos e que o artista cinematográfico, meu amigo, Luis Rosenberg, gentilmente me remeteu via correio.
Eu, dos filmes da década de setenta, só tinha assistido “CRÔNICA DE UM INDUSTRIAL” que gostei muito na época, mas confesso que preciso e quero revê-lo hoje, com outros olhos, outros ouvidos.
Toca-me pelo ouvido, na rádio MEC, neste momento em que estou te escrevendo, o genial Michael Legrand, e e seus belíssimos temas de filmes...
Não me canso de ouvi-los.
Nesta trilha vou navegando na memória do tempo com esse grande artista do cinema.
Certos filmes e suas trilhas, compostas com bom som, eu não me canso de revê-los e de ouvi-los, quando são exibidos. A boa música é fundamental nos nossos filmes
No cinema de arte poética que fazemos, vejo sempre, de cara, a trilha, o som das palavras na sua construção seqüencial em cada uma de suas metátese cinematográficas, as trocas lingüísticas no mesmo plano, as mesmas palavras nos seus poéticos diálogos, a consubstanciação de uma mesma matéria, a matéria do homem em sua luta eterna entre o saber e o ignorar.
Um bom filme, um bom livro, um bom quadro, uma boa música, um bom teatro, sempre que apresentado, tem que trazer saber ao espírito da arte, uma novidade, uma sensação nova de prazer, de descobrir o novo que já foi antigo e hoje é mais novo que o antigo que já foi novo. Assim me senti assistindo aos dois filmes, um depois do outro, do cinema inimaginável de Luis Rosenberg.
Seus filmes são concebidos em plano-sequência de idéias, pois em cada um deles está contada uma história completa, mas não definitiva. São planos que se justapõem em conflitos estéticos entre uma loucura e outra e vão, aos poucos, desenlaçando a rede e reconstruindo a trama de um grande poema épico.
É tudo filmado de forma clássica, com a câmera muito bem posicionada... um bom diretor tem de saber primeiro o equilíbrio do quadro, o que se pode notar de cara em um filme na maneira de se enquadrar uma cena. Rosemberg tem a noção de enquadramento adquirido pelo alto conhecimento de uma paixão em busca de uma linguagem própria, anárquica e ao mesmo tempo subversiva, em uma época de horror em que viveu a nossa geração.
Dois filmes diferentes sobre uma só juventude.
Eu nunca havia visto em toda a minha história de visões cinematográfica nada igual.
Com a inteligência de uma mente privilegiada, Rosenberg chega às vezes ao limite de suas obsessões ao retratar a bandalheira humana e despudoradamente se abre para o mundo desnudando na tela o seu país, a sua época, ele mesmo.
Todo santo é uma vedete. Todas as mulheres querem se regenerar. Todos os homens querem mamar. Toda vedete tem um santo. Isso ninguém pode negar. Assuntina, minha nêga! Acertei no milhar...
Este não é um filme datado, navega com desenvoltura fora do seu tempo.
Todo bom filme se distingue pela apresentação das suas primeiras sequências.
- O que me diz das cenas regadas a sangue na voz radiofônica de Carmem Miranda cantando as belezas do Brasil?
- No filme Assuntina, Rosenberg gosta de trabalhar com as peças da memória presente, matéria viva, ele não concede ao espectador o tempo de perceber que a morte senta-se ao seu lado, pois vai construindo a sua colagem cinematográfica com os cacos de situações muito bem estudadas no seu contexto estético, retratando a vida caótica com discursos filosóficos, políticos, ideológicos e muitas vezes panfletários, mas nunca óbvios na linguagem comum a um cinema novelesco, mesmo dito marginal, udigrude, pois estes são elaborados sem a informação histórica, sem a sensibilidade, a rebeldia necessária a criação da grande arte.
O poeta Murilo Mendes dizia que um poeta escreve sempre a mesma poesia e eu digo que um cineasta faz sempre o mesmo filme, buscando encontrar em todos os seus personagens aquilo ainda está perdido pelo saber, pelo ser.
Posso dizer ainda que a arte cinematográfica de Rosenberg apega-se as tradições cariocas do samba, da algazarra, da gozação, da anarquia, do desleixo, da melancolia, do sexo, do desejo e do carnaval.
O seu cinema não é uma salada oculta, não é para poucos o prazer das suas descobertas, o luxo do entender, a magnificência do sentir.
Eu digo a ele como artista o que o papa disse sobre o Padre Vieira como católico: graças a deus ele existe e está do nosso lado.
Mesmo sem tê-lo antes conhecido, o seu cinema me influenciou bastante, vejo nos dois filmes situações que me lembram alguns dos meus melhores filmes.
A cena em que Nelson Dantas, com sua cara nordestina, dançando roliude na seca, me é qualquer coisa de sensacional. Ela me passa a emoção cênica do grande ator desempenhando, sem dúvidas, o seu melhor papel.
A anarquia brasileira no seu maior desempenho.
Assuntina tem muito do meu filme Bandalheira, até algumas locações são as mesmas.
A época é a mesma. Havia uma sintonia em um só pensamento: liberdade...
Neste nosso cinema toda a nudez não será castigada.
Quando Rogério Sganzerla me perguntou um dia qual era o filme do Welles que eu mais gostava, imaginando a resposta clichê do Cidadão Kane, eu disse a ele, de pronto, que gostava era do outro Cidadão, o Arkadin, do Confidencial Report, ele não se espantou. Agora se me perguntarem quais desses dois filmes do Rosemberg eu mais gostei, eu direi, sem dúvida, que é do segundo que assisti nesta noite “O Santo e a Vedete”. É um filme espetacular, uma obra prima da comédia burlesca brasileira.
Assuntina é a morte que dança nas ruas do Rio. Tiros e mais tiros ecoam pelos seus becos mascarados. Liberdade dolente de carnavais passados. Orgia de Momo. Janus deus bifronte que protege as entradas e as saídas, o interior e o exterior. Tabu oswaldiano exposto em imagens, colagens de contrários, como nos ensinou o cinema revolucionário de inomináveis gênios.
No desenrolar do filme o espectador fica supostamente perdido nas entranhas de suas combinadas sequências, onde se cria um labirinto onírico de personagens inebriados de desejos reprimidos onde não existe saída a não ser a morte.
Já em “O Santo e a Vedete...” todo o mais é previsível...
Em Assuntina, a orgia em que o país havia se metido é elaborada na mentira, na galhofa e é de trágica memória.
Já “O Santo e a Vedete” é uma chanchada da melhor qualidade, um filme universal, único, debochado com tudo e com todos, com muito humor inteligente e ótimos diálogos, o mais puro cinema brasileiro, que faz sucesso no mundo, da mesma forma que um bom pasticho italiano dirigido por Pasoline faz sucesso na Itália.
Em Assuntina a escolha da trilha sonora é o espírito da terra, chega a ser paranasiano, como o poema de Bilac que serve de prólogo para a opereta trágica “porque ufano do meu país ao contrário”, muito bem representada, exposta e cantada pela beleza deslumbrante, sensual, de Analu Prestes, uma grande atriz.
O filme “O Santo e a Vedete” inicia-se com um gago, ou seria uma gague de palanque?
A televisão é o seu principal objeto de cena. O filme é paradoxalmente dirigido ao mercado e faria um grande sucesso se hoje fosse lançado. O ator Lutero Luis está impagável. Ele é o nosso Otelo. A trilha sonora criada pelo arguto Jardes Macalé, e a montagem ágil e correta de Marta Luz, além da equilibrada e sensível fotografia de Pedro Moraes, já valiam o ingresso na grande sala escura das obras que ficam.
Nota Pessoal:
“Se isso não bastasse, esse filme ainda me proporcionou um reencontro, uma viagem ao passado, aos finais dos anos setenta, quando conheci essa menina linda, deslumbrante, sensual, amorosa bailarina que por um ano inteiro me encantou. Não consegui filmá-la, mas confesso que era o que mais queria. Não foi possível para mim, mas Rosemberg, em um encontro casual a convidou e ela aceitou participar de seu filme, falo da Paula Nestorov... Menina você está linda, discreta no personagem, correta na postura e nas inflexões pedidas pelo texto difícil. Paula você é talentosa como eu te imaginava, porque não seguiu no cinema, que desperdiço...”
A Adriana de Figueiredo é um caso a parte. Uma estrela de primeira grandeza. Sensacional! Senti a falta de mais Wilson Grey, podia tê-lo matado mais tarde.
Enfim, meu querido Rosemberg, você está de parabéns, faz muito tempo que não vejo um bom filme e os seus são os melhores que ultimamente tenho assistido.
É preciso lançar esses filmes, não é possível se esconder tão preciosa obra por tanto tempo.
Tudo se anistia nesse país menos a inteligência de um cinema que pode mexer com as pessoas, martelar suas cabeças ocas com imagens e sons que provoquem risos e dor.
Rosemberg cuidado com os que fingem não saber o que se passa, pois estes não passam de “pentelhos fantasiosos da alienação”, nada significam para nós, e mais dia, menos dia, perderão os seus falsos anéis de nobreza e soberba.
Vamos fazer cinema!
O brasileiro tem o direito de conhecer esses seus dois filmes, todos nós temos o dever de saber, de opinar, de criticar, de defender e até de escrever melhor do que eu escrevo sobre o cinema de primeira, inimaginável, que fez e faz o artista Luis Rosemberg. Ponto. Acabei. O resto eu deixo pra depois do carnaval.

JoseSette
Cabo Frio, fevereiro de 2011.

Assista ao

DJALIOH - TRAILLER

http://www.youtube.com/watch?v=9a78esQjeLI

DJALIOH adaptação livre do conto QUIDQUID VOLUERIS de Gustave Flaubert

com: Bárbara Vida -- Mariana Fausto -- Octávio Terceiro --Atores Convidados: Helena Ignez -- Tonico Pereira -- participação especial: Catia Costa

um filme de Ricardo Miranda

Fotografia e Câmera: Antonio Luiz Mendes

edição do trailer: Pedro Bento